O
culto, que tem crescido a olhos vistos desde há uns anos para cá, em torno
deste filme de Sam Peckinpah nem sempre tem contribuído para nos elucidar sobre
o seu lugar específico no contexto geral da obra do realizador de Wild
Bunch (A Quadrilha Selvagem, 1969). A maior tentação será
criticar esse fenómeno cultalgo redutor,
como na maioria todos são, mas, neste caso particular, ele será mais a
manifestação de um sintoma do que a causa do problema que Straw
Dogs (Cães de Palha, 1971) nos coloca, desde logo, na
leitura da sua sinopse.
No
papel e de facto, “isto não é” um western ou
um filme de guerra, a acção desenrola-se na actualidade e localiza-se numa
aldeia inglesa e o protagonista é um matemático norte-americano que vê na ideia
de ir viver para a terra de origem da sua jovem mulher uma boa oportunidade
para, longe da cidade e usufruindo da serenidade e ar puro do campo, se
adiantar na escrita de um livro. Em suma, “isto é” tudo aquilo que,
provavelmente, o espectador atento não estaria à espera de encontrar num filme
de Peckinpah. Todavia, este filme não só tem a assinatura personalizada do seu
cinema como o leva mais longe nos seus pressupostos.
Tanto Major
Dundee (1965), como o clássico (ferozmente anti-clássico!) Wild
Bunch e depois The
Ballad of Cable Hogue (Balada do Deserto, 1970) tinham no
centro homens de barba rija que não viravam a cara a uma batalha e que, sem
pudor, buscavam prazer na bebida ao mesmo tempo que se serviam em abundância de
prostitutas que tratavam como animais… Todos estes títulos celebravam de um
modo ambíguo a masculinidade na sua feição mais desbragada. Ora, Straw Dogs versa
sobre a masculinidade não como “dado adquirido” mas como “provação”. O seu
protagonista, interpretado por Dustin Hoffman (não tenham dúvidas de que este é
um dos castings mais certeiros na história do cinema
moderno), pode ser descrito como uma autêntica avis rara, mais concretamente, um bom
totó dos números que parece estar mais interessado no quadro negro onde
escreve uns arabescos matemáticos do que na sua voluptuosa companheira, “mulher
fatal” com corpo e cabeça de adolescente (ambos muito bem trabalhados pela
actriz inglesa Susan George).
A
personagem de Hoffman é bem cedo posta em cheque por esse facto: como é que um
“caixa d’óculos” daqueles tem uma mulher daquelas, cheia de looks e com tão poucos brains?
A interrogação será colocada, desde logo, pelos locais. E será colocada compreensível
e legitimamente,
o que introduz o primeiro elemento de desconforto neste filme: por muito que
não nos reconheçamos, e desprezemos eventualmente, o grupo de gente rude,
bêbada e selvagem que ali habita (típica local people, como reza a célebre sitcom inglesa The League of Gentlemen),
a verdade é que acabamos por partilhar com ele, desde os primeiros instantes, o
tal sentimento de “estranheza” face à imagem daquele casal. Esta cumplicidade
inicial vai ser motivo de múltiplas manipulações e jogos (como o xadrez que
entretém o casal no filme…) por parte de Peckinpah, pelo que ao protagonista se
vão montando as mais matreiras armadilhas para se saber, enfim, até onde vai a
sua não tão evidente quanto isso manhood.
Com
efeito, o que se passa em Straw Dogs é que o herói parece passar por uma
longa via sacra de provações à sua masculinidade para se aferir em que medida
este é ou não é digno de entrar num (se for um verdadeiro…) Peckinpah movie,
relativizando-se, para complicar a vida ao espectador, os elementos da culpa e
da inocência dos vários intervenientes, sejam eles locais ou forasteiros. É que
se é compreensível e legítima a estranheza face ao estranho, também é
compreensível e legítima a atracção dos homens da aldeia por aquela mulher
esbelta e insinuante e também será compreensível e legítima a sua algo
prazerosa cedência, muito controversa na época em que o filme saiu, à violação
por dois conterrâneos, já que o seu marido parece amar mais um quadro negro
cheio de fórmulas ilegíveis do que ela. Mais: também é compreensível a acção
desmiolada do pai bêbado e os seus filhos/capangas em quererem acertar contas
com o pedófilo que roubou a vida à filha pequena daquele. E essa acção é tão
compreensível quanto a reacção da personagem de Dustin Hoffman, ao fazer tudo
para impedir a entrada de qualquer um deles na sua casa, na qual dá guarida ao pederasta
que atropelou por acidente.
O
que nos desafia na narrativa de Straw Dogs é que a tal “estranheza face ao
estranho” (perfeitamente natural) degenera num jogo de poderes perverso em que
todas as personagens são culpadas e inocentes, indistintamente, quase ao mesmo
tempo. O que muda na narrativa de Straw Dogs é que Hoffman que era um bananas no
início vira um Peckinpah hero no fim; é que Hoffman que era o
forasteiro no começo, quando recusa a entrada em sua casa, torna forasteiros
“os locais” que no começo, compreensível e legitimamente, “estranharam” a sua
vinda. No centro de tudo está, assim, uma perspectiva cultural, muito cara
ao western fronteiriço
peckinpahniano, sobre o conceito algo instável de soberania, representado,
denotativamente, pelos limites da casa e, conotativamente, pela implosão
(lenta?) da virilidade reprimida do nosso herói. A primeira, a casa, é invadida
no fim (apesar da cena do gato constituir uma primeira, e muito decisiva,
intrusão), ao passo que a segunda, a sua masculinidade, vai sendo minada de
dúvidas (inclusivamente pela sua mulher) ao longo do filme.
Peckinpah
é ardiloso a construir esta tensão física versus psicológica na vida do protagonista e,
para mal dos nossos pecados, a sua resolução moral acaba reenviada ao espectador
sob a forma de uma espécie de equação impossível (ou sabotada…), próxima
daquelas que “enfeitiçam” o protagonista no quadro do seu trabalho enfadonho:
local/forasteiro = homem/não-homem. Não sabe do que raio estou a falar? Pois
então faça o favor de se submeter ao teste, assim que lhe for possível.
(Teto original: http://apaladewalsh.com/2012/07/29/straw-dogs-1971-de-sam-peckinpah-2/)
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