segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

JACQUES RIVETTE, QUESTÃO DE VIDA E MORTE


A natureza é passado. Hoje, tudo está destruído
Pascale Ogier em A Ponte do Norte

Tudo é possível nos filmes de Jacques Rivette. Para além da sua rigorosa mise en scène, das recorrentes indicações de tempo e lugar (Paris, aurora, noite, lua cheia, fim de inverno, primavera...) ou do uso preciso de números e palavras a conjurar uma natureza (via de regra) negligenciada das coisas e dos sentimentos, preserva-se, quase sempre, a potência narrativa das hipóteses, a sensação de que as coisas poderiam ter outro rumo, começar de outra maneira, que “deveriam prosseguir”. 

Naturalmente, Rivette não acredita na mise en scène como um sistema fechado, totalizante ou previamente determinado. Sua obra, em grande medida, é um compartilhamento minucioso do processo artístico, acatando e incorporando as contingências do percurso, o risco. Nos seus filmes, somos cúmplices nesse desnudamento austero (às vezes doloroso) dos meandros da criação, presenciamos e, sobretudo, ouvimos os atritos do artista com os meios (as ferramentas), a reverberação no mundo, da luta íntima que antecede e molda o ato de criar. 

E, neste sentido, o campo sonoro ocupa um espaço privilegiado na poética rivettiana. Há algo de violento e quase sobrenatural no som do vento em obras comoNoroeste, Hurlevent e Merry-go-Round ou no ruído que emana da escrita quando o religioso guia o desenho do nome (a assinatura) de Jeanne D’Arc (em A Donzela – As batalhas), conferindo-lhe neste gesto sua própria existência histórica (ela usará como inscrição apenas o xpara renegar seus atos na curva final de sua trajetória). E, ainda, a cortante melodia produzida pelo estalar do assoalho dos inúmeros palcos teatrais que abrigam suas tramas, evidenciando a presença física dos atores (em algumas situações mais forte até que a imagem deles), além de vários outros exemplos que culminam nos inesquecíveis sons dos rascunhos em A bela intrigante, onde o único indício que teremos do que foi, de fato, a pintura criada ao longo do filme, essa tela emparedada por escrúpulo ao nosso olhar (e não apenas para “proteger” a modelo ali exposta). 

Sim, o cinema de Rivette é casto. Se não sabemos o que vai acontecer no plano seguinte, o destino de tal personagem e aspectos de sua personalidade, não é tanto pelo suspense ou mistério que isso pode gerar, é mais por pudor em devassar, aclarar por demasiado o que vemos, as pessoas e cidades que conhecemos através de sua filmografia. E nós mesmos. Para não constranger nossa maneira mais mundana de ver a vida, nossa sensibilidade, capacidade de concentração e apreensão. Acontece tanta coisa nos seus filmes, são tantos os desdobramentos de sua obra que a (longa) duração da maioria de suas realizações é relativizada pelo intenso trabalho mental que implica habitá-las pelo tempo da projeção. Quer dizer: podemos ir para a sala de exibição para não fazer nada (e qualquer curta-metragem vai nos parecer interminável) ou operar com os filmes, vivê-los, pensarmos com eles e quatro, cinco horas em companhia de Rivette se torna algo muito maior que uma simples evasão. 

Dá a impressão que nos tornamos mais aptos, capazes de aprender, quer uma dança (Paris no Verão), uma música e até outros idiomas. A começar pela forma como as palavras são pronunciadas. O som delas é tão detalhado que por mais que não dominemos o idioma utilizado, temos a impressão de este nos ser familiar, acessível. Há muitos movimentos (e nos sentimos seguros o suficiente para completar cada um deles) e tantas línguas em  Rivette: francês, inglês, espanhol, italiano e até português – entrecortadas, coexistentes, às vezes, numa mesma frase. O bando das quatro, por exemplo, nos permite experimentar, do outro lado do espelho, esse poder encantatório da pronúncia no universo rivettiano:  a atriz lusitana Inês de Medeiros evoca, em bom português, uma espécie de canção de ninar (“ A noite, a lua, as árvores, o vento. A noite é menina e não quer bailar”) para acalmar os fantasmas do casarão onde mora. A opção em manter a língua materna da intérprete já denota a crença de Rivette nessa comunicação ancestral, além do mais é difícil imaginar que alguém que desconheça o português não se sinta próximo dele ao fim da sequência. 

Por tudo isso, o cinema de Jacques Rivette nos propõe questões (hipóteses) de vida e morte. O “jogo redescoberto” em A Ponte do Norte  traz um  mapa em forma de tabuleiro,  no qual a “casa”  que representa o túmulo também pode reconduzir o jogador ao ponto de partida e não apenas ao fim. É um jogo do passado, “hoje um túmulo, é somente um túmulo”, constata  Bulle Ogier. Cabe a nós, diante das possibilidades oferecidas, percorremos cada casa dessa topografia rivettiana, reconfigurando a partir das inúmeras hipóteses que seus filmes preservam, a nossa posição diante do cinema. Estamos também no palco, como na peça encenada nos cômodos da mansão em O Amor por terra, em que o espectador, o seu olhar, faz parte do plano, da mise-en-scène. Ou em Celine e Julie vão de Barco, nas visitas que as protagonistas fazem a uma velha casa habitada por fantasmas e,  depois de se familiarizarem com aqueles personagens, reorientam a própria narrativa encenada: “ não é mais melodrama”, avisa Juliet Berto –  e como não pensar naquele casarão ainda como a Cinemateca Francesa e Rivette como aquele que entra nessa imensa morada do cinema para mover as peças e as histórias conforme sua poética? 

Adolfo Gomes
(Texto original: 
http://www.contracampo.com.br/100/pgrivetteadolfo.htm)

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