sexta-feira, 13 de março de 2015

“Godard, Glauber e o Vento do leste: alegoria de um (des)encontro”¹ (fragmento)

Por Mateus Araújo*
(...)

III. Um Cristo e duas moças na encruzilhada

Em seus primeiros 50 minutos, Vent d’est nos mostra uma série de vinte e poucas cenas filmadas em exteriores italianos (rurais) no verão. Elas se sucedem ou se alternam num fluxo bastante descontínuo, a meio caminho entre a narrativa e o ensaio.25 No mais das vezes plácidas e calmas, as imagens mostram um grupo de seis personagens nunca nomeados mas cuja caracterização (figurinos, gestos, falas) e cuja interação em paisagens amplas tendem a evocar figuras e situações de um western. Em constante desacordo com a imagem, a banda sonora complexa traz a intervenção de várias vozes over, ora em francês (puro ou com sotaque italiano), ora em italiano, falando sobretudo das lutas operárias, de modo a trazê-las também para a ficção. Assim, três atores evocam um soldado Yankee, uma mocinha burguesa e um índio vindos do western, e os três outros evocam um casal de jovens revolucionários e um personagem que a banda sonora sugere ser um líder sindical. Conjugando estes dois universos em dois gêneros igualmente distintos (uma narrativa de western evocada sobretudo nas imagens, um ensaio sobre a greve e as lutas operárias esboçado sobretudo na banda sonora), o filme vai avançando de maneira descontínua, mostrando os personagens em separado, em grupos de dois ou três ou todos juntos, de modo a sugerir um confronto entre, de um lado, o Yankee, o líder sindical e a moça burguesa e, de outro, o índio e o casal de revolucionários. Pontuando o fluxo, e empurrando-o para o terreno do ensaio, algumas cenas mostram as próprias filmagens (atores se maquiando, assembléia da equipe discutindo como usar uma imagem de Stalin, etc) e muitos planos trazem inserts de cartazes anunciando blocos do filme, mostrando fotos rabiscadas e repetindo slogans políticos.26 No som, as vozes femininas predominam, sobretudo uma, dita “revolucionária” na transcrição da banda sonora (cf. GODARD; GORIN, 1972: 33, 36, 38, 39 etc.), que comenta em over todo o fluxo das imagens e dos sons, pontuando toda esta primeira parte como um fio reflexivo em meio aos embates entre revisionistas e revolucionários, às evocações de lutas operárias e episódios históricos (antigos ou recentes) e às palavras de ordem. A questão que se repete vem de Lênin (“Que fazer”?), e sua resposta aponta para uma prática revolucionária cujo caminho passa pela tematização da greve, do líder sindical, das minorias ativas, da assembleia geral e da repressão.
O comentário feminino em over se torna ainda mais importante na segunda parte do filme, mais ensaística, que começa aos 49’ e se organiza como uma (auto)crítica à primeira, num procedimento recorrente nos filmes de Godard desde Le gai savoir até pelo menos a sérieFrance tour détour (1977-1978).27 Agora, aquela voz se dirige a um “tu” que estaria fazendo o filme, para criticá-lo e comentar sua démarche (nota do Guaci: procedimento), o que soa estranho, pois o filme é de Godard e de Gorin. Aos poucos, vamos inferindo que ela se dirige a Godard e, mais importante, que ela parece exprimir a posição e o discurso de Gorin, explicitando assim na textura mesma do filme um debate interno ao grupo Dziga Vertov que poderíamos definir como uma autocrítica dialógica. Que este diálogo entre Godard e Gorin passe pela mediação de vozes ou personagens femininos não surpreende, pois Godard já instituíra em seus filmes uma espécie de paridade das vozes num constante diálogo masculino-feminino. Le gai savoir tornava este gesto explícito, e os filmes seguintes o sistematizavam, especialmente através da dupla Vladimir e Rosa, que aparece em Pravda antes de reaparecer no filme homônimo, interpretada por Godard e Gorin.
Abrindo a segunda parte, a voz feminina cobra de Godard um exame da primeira, e encadeia uma série de críticas severas à insuficiência do seu método e da sua démarche desvinculada das massas e das lutas reais. Diante de imagens documentais que irrompem no filme pela primeira vez (trabalhos agrícolas, fábricas, favelas, prédios, canteiros de obras), a voz é implacável em sua crítica, que resumo:
você não pesquisa… você faz sociologia burguesa… você faz cinema-verdade… teu cinema é o das televisões burguesas e seus aliados revisionistas… você nem chegou a pensar tua situação concreta. De onde você parte? Não há cinema acima da luta de classes, a classe dominante cria as imagens dominantes que reforçam sua dominação. Quer trabalhar para Nixon-Paramount (ou suas filiais imperialistas na França, na Itália, na Alemanha) ou para Brejnev-Mosfilm (e seus agentes revisionistas no leste), você trabalha sempre para o mesmo patrão, que encomenda sempre o mesmo filme, que chamamos, não por acaso, de western”.
Neste momento, a voz feminina anuncia um breve exercício de teoria. Nele, sobre imagens paródicas do oficial Yankee a cavalo, trazendo o índio amarrado pelas mãos, a voz esboça um esquema geopolítico do cinema mundial, dividindo-o em três pólos que ela critica severamente: 1) Hollywood, Nixon-Paramount; 2) Brejnev-Mosfilm e suas zonas de influência (Argélia, Cuba); 3) Underground. Os três pólos deste esquema, cuja tripartição conjuga parâmetros geográficos (EUA x URSS) e estéticos (underground, com vários núcleos de irradiação), são criticados e aparecem como caminhos sem saída, inimigos ou obstáculos para a emergência de um cinema materialista.
É exatamente neste momento, e sem transições, que aparece a cena de Glauber, cuja duração não excede dois minutos (57’–59’). Seu contexto imediato no filme é portanto a dura autocrítica de Godard e sua crítica severa a três grandes modelos de um cinema ocidental comprometido (ou compatível) com o imperialismo e emblematizado pelo western. Quando Glauber surge no filme, ele parece anunciar uma quarta via, o cinema do terceiro mundo,28 de modo a completar uma espécie de transposição cênica, mais precisa, de um esquema já presente no manifesto de Godard pelos dois ou três Vietnãs no cinema, de 1967. Escrito por ocasião da Chinoise, e ecoando a divisa “criar dois, três… muitos Vietnãs”, que Che Guevara usara no título de seu artigo publicado em Havana num suplemento especial da revista Tricontinental de abril de 1967 (e traduzido na França em Dossier Partisan, 1967), tal manifesto dizia:
Cinquenta anos depois da revolução de Outubro, o cinema americano reina sobre o cinema mundial. Não há muito a acrescentar a este fato, salvo que, em nossa modesta escala, devemos nós também criar dois ou três Vietnãs no seio do imenso império Hollywood – Cinecittà – Mosfilms – Pinewood – etc. E devemos fazê-lo tanto economicamente quanto esteticamente, ou seja, lutando em duas frentes, criando cinemas nacionais, livres, irmãos, camaradas e amigos” (GODARD, 2006: 88).
A transposição cênica do manifesto de 1967 neste momento do Vento do leste acrescenta oUnderground como um subproduto ou uma variante do cinema imperialista e elege o terceiro mundo como representante dos cinemas nacionais, mas o movimento geral do argumento é o mesmo: ataque ao cinema imperialista em suas várias versões seguido de um apelo a um outro cinema. Glauber encarnará por um instante esta promessa de um outro cinema. Passemos à sua cena.
Plano geral fixo, não muito aberto, de paisagem campestre atravessada por uma estradinha de terra em forma de “V”, em cujo vértice, no centro do quadro, vemos Glauber de corpo inteiro, de frente para a câmera. Ao fundo, o céu claro e o capim em torno da estrada. À sua esquerda, uma vegetação mais densa, contrabalançando a secura da paisagem. De calça e camisa compridas, em primeiro plano, Glauber tem os braços abertos,29 como se sinalizasse desde já os caminhos que apontará logo depois, mas evocando ao mesmo tempo a figura do Cristo crucificado (sem a cruz, como notou MACBEAN, 1971: 144; 2005: 58) e um gesto expansivo muito recorrente dos personagens de seus filmes,30 dentre os quais o primeiro a nos vir à mente é o Corisco no fim de Deus e o diabo, de braços também abertos e gritando “mais fortes são os poderes do povo!”. Glauber canta em português e à capella, desde o inicinho do plano, com alguma desafinação – numa entonação a meio caminho entre a melodia e a simples recitação dos versos -, o refrão ligeiramente modificado31 da canção Divino maravilhoso de Caetano Veloso e Gilberto Gil:
Atenção! É preciso estar atento e forte / não temos tempo de temer a morte / É preciso estar atento e forte / não temos tempo de temer a morte / Atenção! é preciso estar atento e forte / não temos tempo de temer a morte / é preciso estar atento e forte / não temos tempo de temer a morte”.
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Texto na íntegra (e notas): http://guaciara.com/2009/03/29/godard-glauber-e-o-vento-do-leste-alegoria-de-um-desencontro-por-mateus-araujo/

Um comentário:

  1. Ter assistindo Vento do Leste foi uma experiência bem interessante, e ao meu ver muito positiva, principalmente por ter sido a primeira vez que assisti. É uma pena que o debate não tenha rolado muito, fazendo com que o Haoni tenha tocado a linha de praticamente toda discussão.
    Acho que dá/dava pra fomentar para caralho o debate sobre o assunto. Uma das análises que tive sobre o filme, foi que essa profusão de imagens e sons, de maneira maçante e subvertendo a ordem hollywoodiana, colocando ideias marxistas e da luta de classes, deixa o filme bem pesado e maçante. Mas acho que isso reflete o que é a própria militância, que é algo difícil, cansativo, processual, angustiante por vivermos contradições diárias no sistema capitalista etc. É uma análise pessoal mas me chamou atenção, também o fato do diretor ter atingido em diferentes níveis, pessoas com diferentes avanços de consciência.
    Também analisando, a tentativa do Goddard de desconstruir o próprio cinema (além de sua autocrítica constante), numa forma de "anti-cinema"; não numa forma que Duchamp faz anti-arte (sem absolutamente nenhuma função social), mas sim no sentido de analisar a realidade e o momento histórico e perceber que o cinema (pelo menos como reproduzido dentro do capitalismo) não faz sentido. Considerar que subverter ou até mesmo 'abandonar' o próprio cinema, faria muito mais sentindo para a luta de classes.
    Pra finalizar, não poderia deixar de pontuar que a cena da encruzilhada é uma das cenas mais brilhantes do filme, e que quem assistir deveria tirar um tempo pra refletir especialmente sobre ela, porque exemplifica muito o momento da relação do próprio Godard com o cinema em geral e o cinema-político, além de ter o Glauber Rocha de quebra.
    Valeu!

    Diogo Sabóia

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