por Serge Daney
Discreto a ponto de passar desapercebido, frequentemente identificado com o que em profundidade ele não é, Allan Dwan não é nem o último sobrevivente da grande fase da Triangle (o autor do famoso Robin Hood com Douglas Fairbanks) nem o pau mandado incansável, o símbolo característico dos diretores de filmes B. Ou melhor: ele é mais que isso. Ao curso de uma abundante (e desigual) produção de filmes igualmente fracassados, interpretados por atores de terceira ordem, marcados por uma mesma precariedade de meios, se delineia aquilo pelo qual ele deve ser chamado: um certo olhar sobre o mundo.
É que a modéstia e a paciência são suas qualidades:
cineasta maldito, Dwan faz da maldição o tema de seus filmes. Maldição
estranha, que faz com que ninguém jamais seja julgado segundo suas motivações.
Vemos correntemente em Dwan um dos representantes típicos do cinema de
aventuras; ora, o que torna seu cinema precioso é, ao invés do culto da
aventura, o momento onde esta se dilui e se perde. O momento também que o
cineasta suspende-lhe o desenrolar para substituí-lo por intermináveis
digressões. Os filmes de Dwan são feitos destas digressões, destes parênteses:
tal filme que começa com uma cena de violência se coloca, dez minutos mais tarde,
sob os traços de um melodrama familiar ou de uma comédia leve. Haviam julgado
mal Dwan: se esquecemos nele os remendos da intriga (ou antes: se estas são tão
pouco ocultadas), é para melhor descobrir os fios da aventura, a verdadeira,
aquela que se tece na intimidade dos seres.
Secreta, a arte de Dwan já o seria por sua modéstia, por
sua recusa ao exibicionismo, se os heróis também não reivindicassem para eles
esta mesma vontade de se calar, este mesmo empenho em salvaguardar- no próprio
seio da violência- a intimidade dos dramas pessoais. Exigência de pudor, onde
os mal-entendidos valem mais que as indiscrições, onde a incompreensão é
preferível à exposição dos sentimentos. O verdadeiro problema se coloca, desde
logo, não nas peripécias da ação, mas todas vezes que a vida íntima dos heróis
é ameaçada. Cada um vive com seu segredo, a coisa que lhe pertence intimamente,
e de onde tira a gravidade de seus gestos e de suas palavras. Perder este
segredo é um pouco como perder a sua razão de viver, sua justificação no mundo.
Daí o empenho em preservá-lo. Para impedir seu amigo de se casar com uma
piranha, John Payne está disposto, em Tennesse’s
Partner, a correr os maiores riscos, a sacrificar tudo, até mesmo esta
amizade. Em Surrender, onde a
situação é a mesma, há perpetuamente um
décalage (um hiato, um desnível) entre o herói e o xerife que o persegue:
em nenhum momento o xerife compreende as motivações verdadeiras do outro, e
isto até o fim do filme, quando ele o mata. É ainda, em Slightly Scarlet, a amizade entre duas ruivas, Rhonda Fleming
disposta a tudo para que o passado de sua irmã permaneça em segredo. Em outros,
são estas vinganças pessoais, silenciadas até o fim (Cattle Queen of Montana) ou ainda, em Sweetharts on Parade, o que para os outros é um simples “esbarrão”
constitui para o herói comoventes reencontros. Assim, sempre os atos serão mal
interpretados, suas razões profundas insondáveis, mas em Dwan, é este segredo,
esta possibilidade de intimidade o que faz a diferença.
Para além dos inevitáveis mal-entendidos, as últimas
cenas de Tennesee’s Partner- a
obra-prima do nosso autor- nos dão a melhor imagem desta cumplicidade
reencontrada, deste segredo enfim compartilhado, definitivamente recusado aos
outros. O movimento dos seus filmes é, portanto, este: obrigar seus
personagens, excessivamente fechados, muito vulneráveis, a se abrir lentamente.
Cada filme é um pouco a aventura de um segredo e de sua desaparição: ou o
levamos conosco para o túmulo, ou o dividimos com os outros. A partir daí, uma
ligação simples se instala entre criador e criaturas: estas desejariam se
precipitar, atravessar a tela, sem olhar em torno de si: um atirador rápido não
tem tempo a perder, mas o cineasta tem todo o tempo a sua disposição. Exemplar
em relação a isso é The Restless Breed,
que é também a história de uma vingança secreta. Desde o momento em que Scott
Brady decidiu vingar seu pai, o cineasta se esforça em suscitar à sua passagem
tudo o que o possa retardar ou distrair: um padre, uma dançarina, um velho
xerife lhe exortam para que deixe a cargo da justiça o direito de vingá-lo.
Aí, as digressões, o tempo perdido, os saltos no tom não
são mais os caprichos de um cineasta sem rigor, mas a prova que mesura a
importância dos segredos. O caminho mais curto entre dois pontos não é mais a
reta; é o meandro que é necessário; o filme se torna um longo desvio entre o
ultraje e a reparação. Ao curso dos encontros, o cineasta parece esquecer seu
filme, e os personagens seus projetos: nesta vasta “cavidade” (creux), tudo pode acontecer, o acaso
torna-se cúmplice do cineasta que o serve e que dele se serve.
Assim se explica que Dwan, capaz de se virar com qualquer
coisa (faire feu de tout bois), se
acomoda da melhor forma possível à precariedade de meios: inversamente, não é
seguro afirmar que ele conservaria, no âmbito de uma superprodução, esta parte
de invenção que lhe é necessária. Cinema disponível onde sempre chega o
inesperado. Onde tudo é pretexto para descobertas. Descobertas cuja mais
simples consiste na constatação de que o tempo é o bem mais precioso; é preciso
perdê-lo em demasia para lhe dar valor. Nada de espantoso, portanto, em que
Dwan, o Decano dos cineastas de aventura, é também aquele que se arrisca mais.
Dicionário do cinema, Éditions Universitaires, 1966.
Tradução: Luiz Soares
Júnior(Texto originalmente publicado em http://dicionariosdecinema.blogspot.com.br/2009/06/allan-dwan-por-serge-daney.html)
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