sábado, 23 de janeiro de 2016

Allan Dwan

por Serge Daney

Discreto a ponto de passar desapercebido, frequentemente identificado com o que em profundidade ele não é, Allan Dwan não é nem o último sobrevivente da grande fase da Triangle  (o autor do famoso Robin Hood com Douglas Fairbanks) nem o pau mandado incansável, o símbolo característico dos diretores de filmes B. Ou melhor: ele é mais que isso. Ao curso de uma abundante (e desigual) produção de filmes igualmente fracassados, interpretados por atores de terceira ordem, marcados por uma mesma precariedade de meios, se delineia aquilo pelo qual ele deve ser chamado: um certo olhar sobre o mundo.


É que a modéstia e a paciência são suas qualidades: cineasta maldito, Dwan faz da maldição o tema de seus filmes. Maldição estranha, que faz com que ninguém jamais seja julgado segundo suas motivações. Vemos correntemente em Dwan um dos representantes típicos do cinema de aventuras; ora, o que torna seu cinema precioso é, ao invés do culto da aventura, o momento onde esta se dilui e se perde. O momento também que o cineasta suspende-lhe o desenrolar para substituí-lo por intermináveis digressões. Os filmes de Dwan são feitos destas digressões, destes parênteses: tal filme que começa com uma cena de violência se coloca, dez minutos mais tarde, sob os traços de um melodrama familiar ou de uma comédia leve. Haviam julgado mal Dwan: se esquecemos nele os remendos da intriga (ou antes: se estas são tão pouco ocultadas), é para melhor descobrir os fios da aventura, a verdadeira, aquela que se tece na intimidade dos seres.

Secreta, a arte de Dwan já o seria por sua modéstia, por sua recusa ao exibicionismo, se os heróis também não reivindicassem para eles esta mesma vontade de se calar, este mesmo empenho em salvaguardar- no próprio seio da violência- a intimidade dos dramas pessoais. Exigência de pudor, onde os mal-entendidos valem mais que as indiscrições, onde a incompreensão é preferível à exposição dos sentimentos. O verdadeiro problema se coloca, desde logo, não nas peripécias da ação, mas todas vezes que a vida íntima dos heróis é ameaçada. Cada um vive com seu segredo, a coisa que lhe pertence intimamente, e de onde tira a gravidade de seus gestos e de suas palavras. Perder este segredo é um pouco como perder a sua razão de viver, sua justificação no mundo. Daí o empenho em preservá-lo. Para impedir seu amigo de se casar com uma piranha, John Payne está disposto, em Tennesse’s Partner, a correr os maiores riscos, a sacrificar tudo, até mesmo esta amizade. Em Surrender, onde a situação é a mesma, há perpetuamente um décalage (um hiato, um desnível) entre o herói e o xerife que o persegue: em nenhum momento o xerife compreende as motivações verdadeiras do outro, e isto até o fim do filme, quando ele o mata. É ainda, em Slightly Scarlet, a amizade entre duas ruivas, Rhonda Fleming disposta a tudo para que o passado de sua irmã permaneça em segredo. Em outros, são estas vinganças pessoais, silenciadas até o fim (Cattle Queen of Montana) ou ainda, em Sweetharts on Parade, o que para os outros é um simples “esbarrão” constitui para o herói comoventes reencontros. Assim, sempre os atos serão mal interpretados, suas razões profundas insondáveis, mas em Dwan, é este segredo, esta possibilidade de intimidade o que faz a diferença.

Para além dos inevitáveis mal-entendidos, as últimas cenas de Tennesee’s Partner- a obra-prima do nosso autor- nos dão a melhor imagem desta cumplicidade reencontrada, deste segredo enfim compartilhado, definitivamente recusado aos outros. O movimento dos seus filmes é, portanto, este: obrigar seus personagens, excessivamente fechados, muito vulneráveis, a se abrir lentamente. Cada filme é um pouco a aventura de um segredo e de sua desaparição: ou o levamos conosco para o túmulo, ou o dividimos com os outros. A partir daí, uma ligação simples se instala entre criador e criaturas: estas desejariam se precipitar, atravessar a tela, sem olhar em torno de si: um atirador rápido não tem tempo a perder, mas o cineasta tem todo o tempo a sua disposição. Exemplar em relação a isso é The Restless Breed, que é também a história de uma vingança secreta. Desde o momento em que Scott Brady decidiu vingar seu pai, o cineasta se esforça em suscitar à sua passagem tudo o que o possa retardar ou distrair: um padre, uma dançarina, um velho xerife lhe exortam para que deixe a cargo da justiça o direito de vingá-lo.

Aí, as digressões, o tempo perdido, os saltos no tom não são mais os caprichos de um cineasta sem rigor, mas a prova que mesura a importância dos segredos. O caminho mais curto entre dois pontos não é mais a reta; é o meandro que é necessário; o filme se torna um longo desvio entre o ultraje e a reparação. Ao curso dos encontros, o cineasta parece esquecer seu filme, e os personagens seus projetos: nesta vasta “cavidade” (creux), tudo pode acontecer, o acaso torna-se cúmplice do cineasta que o serve e que dele se serve.

Assim se explica que Dwan, capaz de se virar com qualquer coisa (faire feu de tout bois), se acomoda da melhor forma possível à precariedade de meios: inversamente, não é seguro afirmar que ele conservaria, no âmbito de uma superprodução, esta parte de invenção que lhe é necessária. Cinema disponível onde sempre chega o inesperado. Onde tudo é pretexto para descobertas. Descobertas cuja mais simples consiste na constatação de que o tempo é o bem mais precioso; é preciso perdê-lo em demasia para lhe dar valor. Nada de espantoso, portanto, em que Dwan, o Decano dos cineastas de aventura, é também aquele que se arrisca mais.

Dicionário do cinema, Éditions Universitaires, 1966.
Tradução: Luiz Soares Júnior

(Texto originalmente publicado em http://dicionariosdecinema.blogspot.com.br/2009/06/allan-dwan-por-serge-daney.html)

Nenhum comentário:

Postar um comentário