domingo, 7 de agosto de 2016

Do épico-pedagógico ao documentário

 
Quem vem acompanhando as lutas dos boias-frias de São Paulo, a degradação dos trabalhadores nordestinos nas “frentes de trabalho”, as previsões de gigantesca mortalidade infantil no campo, há de indagar o que foi a propalada “modernização” da economia brasileira nos últimos vinte anos. Os mais jovens talvez queiram saber o que teria ocorrido, no início dos anos 1960, para que um presidente da República decidisse abandonar o posto para evitar “derramamento de sangue” no país. Nada melhor, para uma avaliação desses vinte anos, do que o filme de Eduardo Coutinho Cabra marcado para morrer.                  
Pouco antes do golpe de 1964, Eduardo Coutinho e um grupo de jovens cineastas do CPC (Centro Popular de Cultura) da UNE foram a Pernambuco com o intuito de filmar a vida e a morte de João Pedro Teixeira, líder das Ligas Camponesas de Sapé, assassinado em 1962, pelo latifúndio. As filmagens foram interrompidas pelo golpe, o grupo precisou abandonar no local equipamentos, copião, fotos, roteiro, livros e os personagens do cinema-verdade: líderes camponeses e suas famílias, Elizabeth, mulher de João Pedro, e seus oito filhos. Em 1980, graças a Ofélia Amorim, advogada das Ligas, presa pelo 4° Exército, o copião foi entregue a Coutinho, que resolveu retomar o antigo trabalho, voltando ao local das lutas e  filmagens.
Cabra marcado para morrer, título do antigo filme conservado pelo documentário de agora, intercala passado (cenas do filme, fotos, recortes de jornais) e presente (depoimentos e conversas dos sobreviventes). Sabemos agora que Elizabeth fugiu, viveu todos esses anos clandestina (passou a chamar-se Marta e saiu de Pernambuco), que uma de suas filhas se suicidou por não suportar o assassinato do pai e as pressões exercidas sobre a mãe, que conservou consigo apenas um filho, que os outros (dois deles com sérios problemas psicológicos, vistos ou mencionados no documentário) foram dispersados, distribuídos a membros da família, alguns sem lembrança do pai e da mãe, todos marcados pelo signo daquele que fora “o marcado para morrer”. Ficamos sabendo, pela boca dos antigos protagonistas, sobreviventes da luta vencida, como foram os dias imediatamente posteriores ao golpe (buscas policiais, prisões, torturas, mortes) e as lembranças que ficaram do tempo das filmagens, conferidas, agora, pela mostra de fotos e partes do antigo filme aos seus atores.                                     
Momentos cômicos: polícia e Exército procurando pelos "cubanos e armas”, indagando se os “forasteiros” falavam o português ou o castelhano, se “falavam como a gente”; recortes de jornais anunciando a apreensão de armas e farto “material subversivo” no local das filmagens (isto é, câmera, holofotes, fotos, livros), criando o fato inexistente, orwellianos malgré eux-mêmes. Momentos comoventes: um dos sobreviventes, menino na época das filmagens, retira de uma velha mala um velho livro que guardara, pertencente a um dos membros da equipe do CPC. Livro de Malaparte, que redigira um diário sobre a dominação nazista e a resistência, na esperança de que (lê com dificuldades o nordestino) o “camponês o conserve como testemunho” de uma época. Momentos dramáticos: os filhos de Elizabeth relatam suas vidas em dispersão; sobreviventes das Ligas narram prisões e mortes.                                          
Qual a diferença entre o filme de 1964 e o documentário de hoje? 
Na linha cultural do CPC, o filme de 1964 pretendia ser exemplar: épico e pedagógico, lição de política e construção de heróis, lutadores, clara partição entre o bem e o mal, personagens funcionando mais como arquétipos do que como seres humanos reais. Em contraponto, o documentário nos coloca na presença de criaturas de carne e osso, com dúvidas e indecisões, medos e esperanças, meditando sobre o passado e avaliando o presente. Ao filme épico-pedagógico sucedeu o documentário preciso, conciso e dramático: a saga da família destruída, o recuo de alguns camponeses face ao passado revolucionário, a ironia de alguns no relato dos eventos de 1964 e a esperança de outros, como João Virgínio, após a narrativa da tortura, afirmando: “Não se pode tratar o povo dessa maneira. Deus está vendo. Nada como um dia depois do outro, com uma noite no meio”. Longa noite.                                                                        
A complexidade real é, por vezes, insuportável para o público juvenil (como o que esteve presente na exibição feita na Folha), que reclama apontando a “incoerência” de homens e mulheres que Coutinho não mais permitiu ficassem reduzidos a modelos e fórmulas, próprios de quem possui a “linha justa” porque imagina conhecer “as leis necessárias do desenvolvimento histórico”, perante as quais os seres humanos são apenas “suportes empíricos” de um “sentido inelutável”. Em outras palavras: simples marionetes.                                                                                                                        
Talvez sob a influência da epopeia Jango, de Sílvio Tendler, uma parte do público desejasse uma espécie de reparação simbólica: visto ter havido “derramamento de sangue”, deseja-se um “final feliz”. Coutinho foi interpelado por pessoas que queriam saber por que ele não reunira a família dispersa, já que encontrara todos os seus membros. No fundo, inconscientemente talvez, parte do público espere que o cineasta seja o executor da “vontade histórica”, que ocupe o lugar vago do demiurgo, do caudilho salvador, do messias que redime um povo de sua própria história e anule o estilhaçamento de tantas vidas.                     
Como se cada uma das pessoas que vemos e ouvimos no documentário não possuísse a densidade da vida pessoal, das contas a acertar com seu próprio passado e da compreensão acerca de seu presente. Como se o documentário em cores, contrastando com o branco e preto do antigo filme, o asfalto cobrindo as velhas estradas de terras nordestinas, a camioneta substituindo as montarias de 1964, devesse ser a “correção justa” da “modernização injusta” – milagre por milagre, olho por olho, dente por dente.                                                                                                                              

Cabra marcado para morrer realiza reflexões. Por um lado, enquanto obra de arte e de comunicação, realiza a reflexão do projeto anterior: da epopeia ao drama documentado, dos arquétipos perfeitos à complexidade real, da intenção pedagógica à percepção do outro como consciente de si.            
Por outro lado, reflexão histórica: ouvimos a voz dos vencidos escutando seu silêncio. Sabemos que Marta-Elizabeth fugiu e viveu clandestina, que se sente conhecida pela anistia e pela abertura. Curiosamente, porém, vemos Marta-Elizabeth lavando roupa num ribeirão, alfabetizando crianças e auxiliando no sindicato local. Basta que nos lembremos do que significou a alfabetização no Nordeste (tanto assim que o governo federal tentou apagar a memória da educação popular impondo o projeto fracassado do Saci-Exern, como tão bem o mostrou Laymert Garcia dos Santos) e da morte da sindicalista Margarida Maria Alves, em Alagoa Grande, para que percebamos o quanto nos mostram Marta-Elizabeth e Coutinho, sem nada nos dizerem. A história da resistência ali está. Sem heróis. Sem retórica triunfalista. Concisa. Precisa.                                                       

Mas é, talvez, a cena final de Cabra marcado para morrer o momento mais alto da reflexão. Quando Elizabeth julga que as câmeras e os microfones estão desligados, que o documentário e o espetáculo (cujos destinatários ela ignora) estão terminados, em suma, no momento em que o filme acabou, fala e fala torrencialmente sobre as injustiças e a necessidade da luta por uma democracia real. Essa fala final nos leva a rever o filme, a perceber a reflexão que nele se opera porque, desde o início, tudo quanto será dito no fim já estava lá, nos gestos, nas frases curtas e entrecortadas, pedindo ouvidos que saibam escutar e olhos que saibam ver. Elizabeth nos dá a medida e o sentido do medo, das marcas que foram deixadas nestes últimos vinte anos naqueles que foram marcados para morrer.                              
Por que reflexão? Porque o documentário é o momento da quebra da clandestinidade, momento em que Marta se torna Elizabeth outra vez, mas a quebra da clandestinidade se operou clandestinamente. Tão clandestina foi a desmontagem da clandestinidade que nos fazia ver o documentário sem enxerga-lo, ouvi-lo sem escutá-lo. A chave aparece no final, mas a porta estava aberta desde o início.

P.S.: Eduardo Coutinho precisa de 45 milhões para transformar o documentário em filme comerciável. Seria bom se os que dispõem de fundos para a promoção da cultura oferecessem ao cineasta os meios que permitirão a um vasto público ver e rever sua obra magistral.          

Folha de S. Paulo, Ilustrada, 09/06/1984                                                                                                   

Marilena Chaui

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