domingo, 4 de dezembro de 2016

NA SOLIDÃO DO DESEJO



por Bruno Andrade

(The Sergeant). 1968. Warner Bros.-Seven Arts (108 minutos). Produção: Richard Goldstone. Produção executiva: Robert Wise. Roteiro: Dennis Murphy, baseado na novela homônima de sua autoria. Fotografia: Henri Persin (Technicolor & P/B). Música: Michel Magne. Cenografia: Willy Holt (p.d.), Marc Frédérix (a.d.). Montagem: Françoise Diot. Elenco: Rod Steiger (primeiro sargento Albert Callan), John Phillip Law (soldado Tom Swanson), Ludmila Mikaël (Solange), Frank Latimore (capitão Loring), Elliott Sullivan (Pop Henneken), Ronald Rubin (cabo Cowley), Philip Roye (Aldous Brown), Jerry Brouer (sargento Komski), Memphis Slim (cantor do night club), Gabriel Gascon (cunhado de Solange), Nadine Alari.

Já dissemos que a principal característica da mise en scène de John Flynn é a sua incorruptibilidade: nenhuma hesitação, nenhuma trapaça, absolutamente incapaz de desviar-se do seu foco e, portanto, o tempo todo atenta e ativa, espreitando-se para registrar a inspiração que surge nos corpos e nas presenças dos seus atores, naquele impulso que se desprende no gesto ou na expressão que, como nas nossas vidas, tentamos esconder. Os atores de predileção do diretor foram evidentemente Christopher Walken, James Woods, Brian Dennehy, Tommy Lee Jones, Stephen Baldwin, Robert Duvall e principalmente Rod Steiger: todos homens de ação, do desenlace imprevisível, do detalhe que ultrapassa os limites que esses homens se impuseram a si mesmos, em um levante contra o mundo em que foram metidos. Uma convicção apenas: a de ser exato na exposição dos fatos, o que obrigatoriamente conduz o cineasta a um desafio - que podemos bem enxergar como um jogo - caracterizado pela conquista e pelo ajuste da expressão indispensável. O que impressiona no caso de Flynn, porém, é que esse olhar a princípio tão impiedosamente preciso sobre o comportamento do ator é também capaz de admitir contradições: fluidez, paroxismos, enigmas insondáveis, pontos de vista alternantes e paradoxais. Seu método é simples, e extraordinário em sua simplicidade: Flynn faz com que a mecânica infalível da câmera se choque às palpitações do ator no momento em que ele é surpreendido pelas suas próprias ações. Antecipando em uns bons 15 anos o cinema de Michael Mann, Flynn obteve deste método filmes de uma vitalidade invejável, ainda hoje não superada. Desta vitalidade, dos seus frutos e de seus esforços, Na Solidão do Desejo propõe uma imagem inesquecível.

Como Matei Jesse JamesNot WantedO Último GolpeAnjos do PecadoAcossadoOssessioneToutes les nuitsO Solar de DragonwyckA Maldição do DemônioAssalto à 13ª DPDillingerO Pássaro das Plumas de CristalO Menino dos Cabelos VerdesO Mensageiro TrapalhãoSinais de Identificação: NenhumDe Punhos CerradosCidadão Kane e Infância Nua, o primeiro longa-metragem de John Flynn é já na sua origem uma estréia prodigiosa. Aos 35 anos, 9 dos quais de experiências atrás das câmeras, Flynn inicia sua trajetória com uma obra moderadamente reveladora, de uma maturidade tonal e formal extraordinária, e que antecipa a dramaturgia de seus filmes, pelo menos da maior parte dos 11 que tive a chance de assistir, e principalmente de dois dos quatro que considero suas obras-primas (A Marca da Corrupção e Scam).
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A correta direção do olhar do ator é sem dúvida alguma a culminação do trabalho de toda mise en scène. Trata-se de uma conquista furtiva que escapa ao controle da simples realização, exigindo do diretor uma fidelidade, uma generosidade, uma entrega consciente que ultrapassa em muito os traços demiúrgicos que costumamos, por força de hábito ou simples acomodamento, relacionar ao seu papel. Como disse recentemente Inácio Araujo sobre Kuhle Wampe, “o mais interessante não é a dramaturgia, nem a ficção (...) mas as cenas em que se percebe o registro de um modo de viver, de pensar e de agir”. O que nos é dado a ver nos primeiros vinte minutos de Na Solidão do Desejo não é outra coisa senão essa verdade revelada em cada gesto, cada movimento, em todas as nuances e principalmente na pompa do orgulho que Rod Steiger carrega consigo, ou ainda na forma como a câmera de Flynn confina, através de ângulos bastante cerrados, as trajetórias do corpo de Steiger em espaços que parecem ora encalacrá-lo, ora liberá-lo. Nada disto é arbitrário; é, aliás, do próprio assunto do filme que trata essa decupagem, e não surpreende vermos o corpo de Steiger um pouco mais livre desta câmera que o enclausura logo após o primeiro contato com o soldado John Phillip Law.

O mínimo que se pode dizer da direção de Flynn nestes momentos é que, mais do que fazer justiça ao ator genial de A Grande ChantagemRenegando o Meu SangueAl Capone e Quando Explode a Vingança, ela estabelece claramente o jogo de que falei acima, tanto no ritmo quanto na aptidão em retratar o drama de uma solidão. O classicismo da decupagem é apenas exterior: a maneira como a floresta que cerca o acampamento militar (no qual o sargento Steiger desempenhará seu novo ofício) é implicada pelos planos gerais que acompanham o jipe que traz o sargento, no exato momento em que atravessa a guarita, planos que mais tarde pontuam o discurso de apresentação de Steiger aos seus novos soldados; essa maneira, dizíamos, reflete a consciência de quem sabe como e para onde a dramaturgia do seu filme se encaminhará narrativamente. Antes de elevar-se aos gestos deflagradores com os quais seus personagens se vêem encurralados, Flynn fornece aos seus atores um palco. É unicamente isso o que faz a mise en scène: auxiliar a recepção de um sentimento intrínseco ao drama pela forma, desimpedi-la de quaisquer empecilhos, e nada mais.

Esse sentimento é acolhido por um olhar perspicaz, incapaz de se afastar, por exemplo, daquilo que completa e torna humano o personagem de Steiger - a saber, suas falhas. Seja enquanto claramente manipula o efetivo do batalhão que comanda, quando submete a si e aos outros à aflição, ou nos instantes reveladores em que é incapaz de controlar sua vontade de dominação sobre o personagem de Phillip Law, entendemos que se trata de um espírito forte, cujo enorme sofrimento não esconde a impressão dolorosa de uma paixão excessiva. Diante das nossas fraquezas, o equilíbrio daquele que mostra um homem que deixa para trás suas próprias sombras - eis algo suficientemente raro para merecer a nossa atenção, a ponto de fazer com que nós prontamente requisitemos a do leitor.
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Porque o cinema, convém dizer, não é moderno nem clássico, nem arcaico nem inovador, nem vanguarda nem retaguarda. Ele é tudo isso ao mesmo tempo e nada disso individualmente. Individualmente, o cinema é um adulto, a idade adulta da arte (Felipe Medeiros retornará à questão proximamente). Ao vermos Rod Steiger descendo do trem que o leva à estação da cidadezinha onde passará seus últimos dias, segurando com uma das mãos os documentos com as suas ordens e com a outra a mochila na qual deve carregar todos os seus pertences, olhando rápida e penetrantemente para um vazio que o resto do filme se ocupará em preencher, não há como não nos darmos conta de que o cinema é isto: “uma ciência, a mais exata das ciências humanas. Ela nos ensina que o homem não possui destino, que a cada instante ele é livre, que cada fato, cada ação pode determiná-lo completamente se sabe sentir, se sabe ver.”[1]

Nota:

[1] Alexis Klémentieff, Losey, por Pierre Rissient. Éd. universitaires, coll. “Classiques du cinéma”, 1966, p. 54.

Texto original em 
http://focorevistadecinema.com.br/FOCO2/andrade-solidao.htm

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