segunda-feira, 23 de abril de 2018

TRÊS TOURNEUR



por Louis Skorecki

Cineasta maldito, Jacques Tourneur o é de diversas formas: em primeiro lugar porque sistematicamente se recusa a oferecer ao espectador o menor ponto de apoio por onde este poderia apreender seus filmes; ou antes, ele apenas extrai de seu pensamento elementos aparentemente incoerentes, freqüentemente inesperados. A explicação é simples: sua maneira de narrar consiste em dar uma imagem abreviada da vida, obtida pela decomposição dos elementos mais variados da existência, em seguida recompostos de maneira a acelerar certos movimentos, evitando assim as abordagens supérfluas. Basta comparar a estrutura de suas cenas às de um Hitchcock. Em Os Pássaros (The Birds, 1963) duas imagens de morte brutal são propostas ao espectador com a mais perfeita precaução: o velho com os olhos arrancados, do qual pouco a pouco nos aproximamos; o carro que explode, após termos acompanhado a causa desta explosão. Em Tourneur, ao contrário, a morte é uma coisa breve, irremediável, sem causa aparente. O menino baleado fatalmente através da janela em Choque de Ódios (Wichita, 1955), da maneira mais inesperada que se poderia conceber, é exemplar desta estética: ao passo que Hitchcock organiza (encena) até mesmo as reações dos seus espectadores, Tourneur dá de sua obra ao mesmo tempo a visão mais brutal e mais elaborada possíveis, uma visão alucinada porque acuada, renegada e dissimulada.

Mostrar apenas movimentos inúteis - ou abortados assim que iniciados -, simular o rigor quando trágica é a desordem, são etapas que participam de uma impotência em captar a vida, ou melhor: de uma vontade de precipitar a morte. Almas Selvagens (Appointment in Honduras, 1953) é tudo isso e muito mais, pois o filme começa sem que haja um coração, ou antes, com o coração removido: vida petrificada que surpreende pela forma com que é destilada, crueldade inútil (crocodilos e serpentes terríveis no momento em que se aproximam, inofensivos ao fim das contas) tão-somente decorativa, poder-se-ia pensar. Mas há aí um viés constante em Tourneur: jamais mostrar algo dramático quando assim exigisse a instância; mostrá-lo quando o espectador já não o esperasse ou não o esperasse mais, dizer a verdade quando esta tiver desaparecido, equivale a preceder o inevitável a fim de descartá-lo (em vão), ou então a mostrá-lo como se já não se acreditasse mais nele. É um cinema de impressão, no qual o processo observado jamais ocorre no momento certo. Defasagens entre a aparência e a realidade, comédia e drama, vida e morte que são as provas, não de uma impotência em mostrar um todo, mas de um desejo de não mostrar nada. Ou melhor dizendo: mostrar o que já não é mais ou não será jamais, perscrutar o irreal sem razão nenhuma, explorar o vazio e extrair apenas o vazio. Este cinema é um cinema novo, na medida em que não serve de forma alguma ao seu autor (ainda tão desesperado quanto antes). Cultivando nada, ele nada pode colher. Mas ele nos permite descobrir uma outra medida: o de uma consciência que oprime um desespero, o de uma força distendida para sempre.

Eis no quê o cinema de Jacques Tourneur é um dos mais abstratos que se pode imaginar: se lhe falta essa força que animaria as imagens petrificadas (mesmo quando em movimento) de seus filmes, é ao espectador que cabe animar com um movimento novo esta obra da qual a vida foi suprimida; subsistem apenas impulsos destruídos rumo a uma obra jamais realizada, e que teria sido outra. A partir desses impulsos deve-se perseguir a obra, encaminhá-la (pela nossa própria sensibilidade) rumo a esse propósito que ela jamais atingirá. Os finais de A Vingança dos Piratas (Anne of the Indies, 1951) e de Almas Selvagens não são realistas; são até mesmo impossíveis. Cabe a nós completar o filme, conduzi-lo à conclusão que ele poderia ter tido. Pois se o cinema de Tourneur é inicialmente pensado e sentido, ele é em seguida destruído e recomposto: é o caso de se retomar o pensamento, retornar à idéia inicial do autor, que ele mesmo tentou subtrair no que diz respeito a nós. Não nos surpreenderemos então que, com freqüência, os personagens de maior destaque sejam animados por movimentos dos quais nos aprazemos em sublinhar a preciosidade; ocorre também que freqüentemente uma cor assume uma importância capital numa cena, à custa de ações importantes. Aqui é preciso sublinhar o papel dinâmico dessas cores (um exemplo admirável é o vestido amarelo de Ann Sheridan em Almas Selvagens, que apaga tudo o que está ao redor), sobre as quais repousa todo o ritmo do filme. Elas são ao mesmo tempo símbolos (o sangue vermelho nos lábios de Jourdan) e estruturas. O anódino se torna capital e (como o artista) vacilamos diante dessas coisas que se dissipam: anima-se o nada, desaparece a existência. Esse silêncio verdadeiro é a expressão de um vazio ainda mais desesperado que o de um Delmer Daves, por exemplo, que não sabe como preencher uma tela sempre muito imensa para ele.

Os limites e a ambição de Tourneur estão em outra parte: ver (e fazer ver) o que não é, o que não se é, invertendo para isso o indispensável e o dispensável, modificando o rumo das coisas, visando a mudar a vida. A imagem que nos é proposta é, portanto, invertida, os elementos agrupados em proporções diferentes, o equilíbrio natural perturbado. Assim, em A Vingança dos Piratas, impossíveis serão as relações entre uma mulher que se recusa a agir como tal e um homem que maquia a sua virilidade. Como não pensar em Nicholas Ray, em Jerry Lewis, ambos obcecados por essas inversões, essas imagens desmentidas logo após serem formuladas...

Por que os filmes de Tourneur são tão distanciados do espectador, de imediato? Pois o que ele busca é não dizer nada a respeito daquilo que é, e isso passa um pouco por dizer tudo o que não é, por enunciar a ausência. O sentido desapareceu. Se, entretanto, o signo mantém-se, é porque seus filmes propõem um universo animado unicamente pelos signos da ausência de sentido. Compreende-se a dificuldade que temos para senti-los (ao menos plenamente). Eles não são mais do que instantes dispersos, oferecidos à nossa visão como pedras preciosas, cintilantes de um brilho único, de tal intensidade que seria necessário analisar esta curiosa impressão de mal-estar que sentimos ao mesmo tempo em que somos encantados. Ela vem, talvez, do fato de que os atos são imediatamente situados em seu estágio terminal, sem que houvesse tido evolução até essa etapa (à diferença da estética do insustentável cara a McCarey, a qual consiste em nos apresentar, em toda a sua extensão, o movimento impossível, a aproximação indecente de pessoas estranhas umas às outras). É um cinema do instante, e, no entanto, este instante nunca é alcançado. As relações corporais são raras, o erotismo concebido de uma maneira indireta (distanciamento) e fugidia; as cenas de morte também (tomo como exemplo essa mulher em Choque de Ódios, morta por uma bala, através de uma porta), ao mesmo tempo brutais e inacessíveis (próximas nisso do gozo erótico).

Pois se existe uma distância entre todas as coisas, e em particular entre nós e o metteur en scène, isto não deve nos impedir de ir em sua direção: cabe a nós preencher o papel que este não pode assumir, de ser o metteur en scène.

(Cahiers du Cinéma nº 155, maio 1964, pp. 35-37. Traduzido por Bruno Andrade e publicado em http://focorevistadecinema.com.br/jornal3tourneur.htm



IDA LUPINO POR IDA LUPINO



O INÍCIO COMO DIRETORA

Collier Young e eu havíamos formado nossa própria companhia produtora, chamada The Filmakers. Nós tínhamos co-escrito um roteiro sobre uma mãe solteira intitulado Not Wanted e tínhamos começado os trabalhos para filmar. Tínhamos acabado de começar quando nosso diretor Elmer Clifton teve um ataque cardíaco. Éramos muito pobres para pagar um outro diretor e então tomei as rédeas.

Nosso montador [em Not Wanted] foi o mesmo de Hitchcock em Festim Diabólico, William Ziegler. A cada cinco minutos, eu pegava o telefone para lhe perguntar: "Bill, escuta só, eu queria fazer um movimento de carrinho para frente, mas estou com medo de não dar raccord". No primeiro filme, ele me ajudou. Ele ia pro set. No segundo, tínhamos Bill de novo. Esse filme, Never Fear, era baseado em minha história original, a de uma jovem dançarina que fica com poliomielite. Eu o co-escrevi. Nesse eu ainda recorria ao telefone, mas Bill me dizia: "Não, não! Vire-se sozinha. Eu farei a montagem depois. Você não pode permitir que eu vá ao set". E foi assim que eu me tornei diretora.

THE FILMAKERS

Nós nos debruçamos sobre assuntos bastante perigosos à época: mães solteiras, bastidores do tênis amador, loucura criminal de caroneiro que atravessa o país a pé deixando treze mortes, bigamia, poliomielite. Rodávamos os filmes em treze dias no total e com um orçamento inferior a duzentos mil dólares, e eram filmes classe A. 

De fato, tínhamos o hábito de vender nossos filmes pessoalmente, cada vez que isso era possível. Pegávamos a estrada, íamos nas cidades, atraíamos reportagens durante a filmagem. Mas tivemos a sorte de ter um financiamento para o primeiro e o segundo filme. Depois, quando Howard Hawks, que dirigia então a RKO, se interessou por nós, fomos beneficiados por seu financiamento, suas facilidades de produção e de distribuição, em troca da metade dos benefícios. Era duro para os independentes.

Eu acho que nós éramos a nouvelle vague da época. Queríamos fazer filmes que teriam um sentido social e seriam divertimentos ao mesmo tempo. Eles eram baseados em histórias verdadeiras, coisas que o público poderia compreender porque elas tinham acontecido e se tinha falado delas na imprensa. Nossa pequena companhia era conhecida por esse tipo de projeto. A Filmakers era uma perspectiva para os jovens: atores, escritores, realizadores.

A Filmakers era uma estrutura familiar. Nós tínhamos ideias em comum. Foram os quatro anos mais felizes da minha vida. Fico triste que meus parceiros tenham escolhido se ocupar da distribuição. Se isso não tivesse acontecido, ainda estaríamos juntos. Continuaríamos uma produtora idependente, a distribuição vindo do parceiro de alto nível que nos fizesse a melhor proposta. Eu achava que era um erro, mas fui minoria. E, bom, a Filmakers não conseguiu distribuir seus próprios filmes. Não obtivemos as boas datas nos bons endereços. Não foi muito sábio se aventurar em um domínio que não conhecíamos bem.
O que eu gostaria de fazer é retomar as coisas de onde as deixamos há dez anos, com uma companhia independente, descobrir novos talentos, escrever nossos próprios roteiros e fazer alguns bons filmes provocadores a preços justos.

OSSOS DO OFÍCIO

Eu estava no estúdio exterior da Universal preparando um episódio para a série The Virginian, mas tinha esquecido das visitas, você sabe, doze milhões de pessoas passeando pelos estúdios todo fim de semana. Eu estava no set, suando com o calor abafado, sem maquiagem, parecendo uma bruxa procurando uma antiga casa para assombrar, e lá vinham os turistas. E o brilhante rapaz que era o guia sabe-tudo declara aos curiosos: "Aqui, senhoras e senhores, está a célebre atriz e diretora Ida Lupino se preparando para a filmagem de The Virginian". Eu queria morrer, francamente. 

Eu senti desesperada necessidade de um amigo e o encontrei: um segurança do estúdio. Ele supriu minha necessidade de trabalhar em paz e ao abrigo dos curiosos, e ele vigiava a chegada dos tramways de turistas e quando um deles chegava ele vinha até mim e assinalava: "Os turistas chegaram". Então eu me escondia atrás de um prédio. 

TRABALHO COM GRANDES DIRETORES

Não houve influência sobre meu estilo de dirigir. Eu precisava encontrar minha própria maneira de fazer as coisas. Eu não podia copiar um ou outro. Mas para alguns, como Wellman, Charles Vidor, Walsh ou Michael Curtiz, era impossível impedir que eles "exercessem" um pouco de influência sobre mim. E Robert Aldrich. Meu Deus, que dádiva foi atuar para ele em The Big Knife. Ele não é apenas um bom técnico, mas ele conhece verdadeiramente o ator. Ele mergulha profundamente no papel e tira de você coisas das quais não suspeitava.

PERSONAGENS FEMININAS

Eu nunca escrevi simples papéis femininos. Eu gostava das personagens fortes. Não quero dizer as mulheres com qualidades masculinas, mas uma espécie de força visceral, de tripas. Um papel simples me põe para fora de mim. Interpretar uma gentil mulher que se contenta em sentar ali, isso eu não posso fazer.

Nem todos [os filmes produzidos pela Filmakers tratavam de questões femininas]. Realizei The Hitch-Hiker, que era uma história verdadeira de William Cook, sobre a morte de um caroneiro, e não era certamente uma história de mulher. E fiz The Bigamist, que não era certamente uma história de homem.  

HUMILDADE

[Um bom filme] é questão de alquimia. É a mistura de um bom roteiro, um produtor com o qual eu esteja completamente em sintonia, bons atores e um diretor de fotografia. Nas vésperas da filmagem e na hora de rodar o primeiro plano, eu sempre sinto meu estômago embrulhar. Depois, quando já tenho garantidos os primeiros planos, meu estômago se acalma. A comunicação com meus atores é capital também. Estando bem perto deles, compreendo seus problemas. Eu não digo que faço um trabalho excepcional, mas até que não me saio tão mal. 

Eu não serviria para Doutor JivagoO Mais Longo dos Dias; eu não creio que os horrores da guerra sejam para mim. Se eu tivesse de decidir sobre um diretor, não me escolheria. Filmes de suspense, aí sim. Coisas à la Robert Aldrich. O que terá acontecido a Baby Jane?, sim. Esse é meu forte. O suspense.

(Combinação de trechos extraídos de "Moi, la mère metteur en scène", depoimento publicado em Positif nº 301, e de "J'aimais les personnages forts", entrevista a Patrick McGilligan e Debra Weiner publicada em Positif nº 540; seleção e tradução de Luiz Carlos Oliveira Jr. 
Publicada em http://www.contracampo.com.br/93/artlupinoporlupino.htm) 

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