segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Mulheres Diabólicas


(Mulheres Diabólicas, 1995)

Por Mehdi Bellanal 

(trecho retirado do texto "Sobre três filmes tardios de Claude Chabrol", na íntegra no site citado ao final)


– Eu não entendo os últimos filmes de Chabrol.

– Normal, Chabrol nunca foi tão genialmente sintético, além do que não sabemos mais ver um filme como um todo... Não sabemos mais nem o que isto quer dizer. Ainda sabíamos, talvez, por volta de maio de 68, mas desde que o fetichismo devastou tudo no seu caminho, não há mais do que pedaços de cinema. E no mais, Chabrol se ocupou justamente do fetichismo, dupla violação à época!

– Tome-me por um produto de minha época!

– Todos somos, mais ou menos...

– Você me tranqüiliza. Admita, ao menos, que eles são horríveis, esses filmes, os BellamyA Dama de HonraA Flor do MalUma Garota Dividida em Dois.

– Não acho, mas isso não nos levará muito longe. Há um Chabrol que todo mundo ama, que até mesmo o salvou aos olhos da crítica, é Mulheres Diabólicas, pelo menos deste você gosta?

– Eu odeio!

– Perdão?

– Eu nunca entendi o encantamento geral por esta merda!

– Você está delirando!

– Supõe-se que ele fala da luta de classes? Da burguesia e do proletariado?

– Sim, sim. Ainda que Chabrol tenha declarado que este foi “o último filme marxista da história do cinema.”

– Mas que nada! Penso que é uma repugnância mostrar os pobres daquela forma.

– De que forma?

– Estritamente falando, como bárbaros.

– Estritamente falando?

– Primeiramente como invejosos, como amargurados e, finalmente, como assassinos pura e simplesmente. Veja bem: no filme, os burgueses são todos extremamente delicados, cheios de bons modos, eles perdoam até mesmo os golpes baixos da carteira e, como recompensa, são massacrados. Como se Chabrol quisesse dizer a esta burguesia que transborda de boas intenções: não se misturem com essa gentalha e, sobretudo, não os deixem entrar em suas casas!

– Mas esses proletários não são quaisquer proletários...

– São sim, porque trata-se exatamente do proletariado e da burguesia tomados num sentido geral dos termos. O analfabetismo da empregada versus a alta cultura da família burguesa, o apartamento modesto da servente versus o castelo da família etc. Nós entendemos que Chabrol quis falar da oposição de classes entre os proletários e os burgueses em geral; aliás, você mesmo reconheceu isso!

– Sim, mas Chabrol passa um bom tempo a descrever essas duas proletárias.

– E daí? Elas terminam por matar da mesma forma. E mais, Chabrol tem a frieza de em seguida condená-las, matando uma em um acidente de carro e entregando a outra aos policiais! Já entendemos muito bem que ele não gosta delas, a menos que ele esteja senil a ponto de dar razão às assassinas, vitimizando-as ao extremo, ao passo que tudo indica que elas são completamente vis e que a razão estava do lado dos privilegiados!

– Você acha que os burgueses desse filme são razoáveis?

– Sim.

– E no entanto, eles não viram o golpe chegando.

– Eles não poderiam imaginar algo parecido, visto que eles sempre foram bem comportados com a empregada!

– Então eles estão quites?

– De quê?

– De fazer com que ela dependesse deles?

– Não se mata pessoas pelo fato delas nos sustentarem!

– Porém isso já aconteceu, quando os escravos assassinavam os seus donos!

– Sim, mas esses não são os episódios mais gloriosos da história.

– Glorioso ou vergonhoso, isso existiu, sim ou não?

– Sim, mas narrando isso, o que é que ele, Chabrol, procura dizer?

– O que você gostaria que ele dissesse?

– Que ele não fizesse parecer, de qualquer modo, os pobres como bárbaros!

– Perdoe-me por me repetir, mas não se trata de quaisquer pobres!

– Mas o que você quer dizer com isso afinal?

– Você gostaria que Chabrol “salvasse” essas duas garotas? Que ele as tornasse dóceis, respeitosas, isto é, de acordo com as prescrições burguesas? Embora elas sejam, desde o início, criminosas? Porque eu lhe relembro que elas já haviam matado antes do começo da história, certamente você se lembra disso...

– Precisamente! Por que ele as retrata como desajustadas?

– E por que não fazê-lo? É por causa disso que ele não trata de todos os proletários. Imagino que você saiba que nem todos os proletários são assassinos. Mas neste caso, são justamente duas assassinas.

– Concordo, e...?

– E pela força do ódio e da frustração, elas somam um novo crime aos seus crimes passados.

– Elas matam sem motivo.

– Pode ser que elas não tenham uma razão definida - elas não são revolucionárias - mas percebe-se que elas não suportavam mais sentirem-se inferiores sob todos os aspectos, incluindo o moral, aos burgueses. Então, depois de deixar cair a barreira moral que proibia a morte, elas encontram em si mesmas a força para reverter a situação e, de dominadas que são, passam a ser dominantes ao matar seus patrões.

– Sem motivo?

– Não é porque as razões aparentes são insuficientes que não há uma lógica subjacente no ato. Tudo se passa aqui exatamente como nos filmes de Buñuel.

– Mas por que elas chegam a matar essas pessoas que não lhes fizeram nada?

– Essas pessoas não lhes fizeram nada, é verdade, mas são. Eles são os que têm tudo. Elas, elas só têm mágoas. Tudo o que lhes resta é a força destrutiva que autoriza a sua falta de escrúpulos.

– Chabrol lhes dá razão, então?

– Não, ele apenas indica que há algo na desigualdade de classes que alimenta a possibilidade do crime, que o crime está de alguma forma inscrito na desigualdade de classes. E ele encena uma situação em que as condições de um crime são reunidas. Ao reprovar Chabrol por filmar as duas garotas como “gentalha”, você parece reivindicar que tranqüilizemos a burguesia sob a conta dos dominados. Chabrol se abstém de tranqüilizar ou de incomodar quem quer que seja, é por isso que seu filme não é aquilo que você diz que é.

– E então por que a crítica gostou tanto dele?

– De um lado, porque ela adora tudo. De outro, porque ela gosta de ver a burguesia entrar pelo cano, ao menos nos filmes.

– Mas Chabrol é um burguês, não me venha dizer o contrário!

– Não direi o contrário, responderei simplesmente com a frase de Friedrich Coupat: “A plebe pode ser encontrada em todas as classes.”

– “Simplesmente”! Mas como você faz o papel de esnobe...

– Fazemos o que podemos.

(Traduzido por Tiago Saldanha)

Retirado de http://focorevistadecinema.com.br/FOCO4/chabrolforever.htm

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