segunda-feira, 28 de setembro de 2020

O realismo aterrorizante em ''Elle''

 por Catalina Sofia

Elle é um filme sobre uma mulher que vive sob o modus operandi masculino, não somente por viver em um mundo comum à todas as mulheres, dentro do cinema ou não. Mas falamos de um mundo essencialmente masculino que o filme mantém. Michèle joga o jogo. Entra nessa queda de braço, não mede esforços para se manter.

O filme começa com o que se diz ser o ápice do que pode chegar a violência masculina, o estupro. Mas o estupro — ainda que carregue toda violência e força que representa no filme, mesmo como fio condutor da narrativa— é apenas o resultado de toda uma violência explicitamente minuciosa e detalhada. Verhoeven nos choca com o estupro e não nos poupa com os demais gestos que serão de suma importância para construção desse universo violento ao longo do filme.

Michèle, após ser violentada, recolhe todos os cacos e entra em uma banheira, que logo é tomada por sangue. É uma mulher violentada, que se vê imersa nessa banheira de sangue, esperamos uma reação dessa personagem, e essa sensação de espera quase agoniante se intensificará à medida em que vemos a forma minimamente incômoda que ela lida com a situação.

Aqui, lembrando, falamos de um filme, e em um filme, se ela chamasse a polícia, a polícia iria atrás do seu algoz. Dificilmente teríamos a história de Michèle enfrentando e desafiando seu algoz em uma lógica mais realista, ainda que estejamos falando de um filme violentamente realista e talvez isso seja o mais assustador.

Sigamos. Conhecendo Michèle, ela jamais aceitaria perder e aqui entra o toque talvez mais polêmico e igualmente fascinante do filme: ela não aceita perder nesse mundo, porque esse mundo é dela e ela lutou por isso. Michèle não aceita essa violência, pelo pavor de se ver como menor, como vítima, que de fato é. E como ela não aceita? Se incorporando a essa violência, tentando se vingar por e através dela.


E se ela não aceita, ela vai se ver então submersa em violência dali pra frente e responder à altura, da maneira como lhe foi ensinada nos meios em que esteve. A ironia do destino nos mostra então que Michèle é chefe de uma produtora de jogos de videogame, algo dito como do “universo masculino” por excelência. Não basta ela ficar alguns minutos sozinha à noite em meio àqueles homens para que ela se sinta aterrorizada após o último incidente. É interessante notar em toda narrativa como ela tem que lidar na maior parte do tempo com homens e como nenhum está acima de qualquer suspeita e isso já colabora muito com o clima de tensão que o filme gera a partir desse primeiro episódio em que Michèle é violentada.

Duvidamos dos seus empregados da empresa (que fazem montagens com ela sendo penetrada por um monstro dentro do jogo que está sendo criado na produtora), duvidamos do seu amante (aliás, esposo da sua melhor amiga), duvidamos do seu ex-esposo (que é ex porque ele a agrediu fisicamente) e duvidamos do seu vizinho (homem pelo qual ela nutre um profundo desejo). Somente não duvidamos do seu filho, que é praticamente um “pau mandado” da noiva, completamente decadente e capenga, sem nenhum tipo de agregador do que se tem como “masculinidade” (ou repleto deles, nunca se sabe).




As relações em Elle, não se dão de forma despretensiosa e banal, todo gesto e conversa é pensado de forma a evidenciar esse clima prestes a transbordar. A vida de uma mulher dentro desse jogo sempre está por um fio, seja pelo medo ou seja pelo desejo, todos os passos a seguir acompanham a culpa. E culpa é algo que Michèle, que não poderia ser vivida por alguém melhor que Huppert, não se permite sentir.

Ela não é uma mulher ideal, custa acreditar que ela seja real. Ela é uma anti-heroína do seu próprio destino. Ela erra, é contraditória e mesmo assim, é vítima. Isso o filme nunca deixa de mostrar e talvez seja isso que alguns possam, erroneamente, insistir em não querer enxergar. Elle não é uma narrativa simples, está muito longe de ser e isso que torna o filme tão rico. Ele é construído sobretudo — e porque não seria? Aliás, falamos de um filme, pelas imagens e pelos gestos que esses personagens dão vida.

Michèle não é um ícone feminista que irá vingar todas as mulheres das violências que ela  constantemente sofre e com certeza todas sofremos. Ela é uma mulher que à sua maneira, controversa e irreverente, vai lidar com o que a vida nesse espaço não lhe poupou. Colocá-la como esse ícone, seria transformá-la em mártir e reduzir sua figura a algo que desde o início não é a premissa do filme, pois falamos de um filme e somente um filme nos permite ampliar as questões dessa forma. O mundo no qual vivemos é também terrivelmente diferente. Isso seria simplificar sua figura extremamente complexa, que vai de melhor amiga à traiçoeira. De chefe majoritária de sua empresa à mulher aterrorizada, em duelo com a culpa.

Michèle é dura e é dura porque assim conseguiu jogar o jogo e não ceder à queda de braço. Ela se insere nesse jogo masculino e se mantém até perceber da pior forma que não é seu espaço. O seu direito de desejar, de fantasiar, seu gozo, lhe é negado. O mesmo homem que a violenta, é o motivo do seu desejo e essa é o grande baque de não poder estar mais nesse espaço. Conviver constantemente com seu algoz.

É interessante notar como nesse filme não temos apenas o estupro que gera a ira de todo desenvolvimento da narrativa, mas também temos um bem mais escondido, quase imperceptível.

Isso é um grande exemplo de como as imagens trabalham.



Robert, seu amante e esposo da sua melhor amiga, a chama para um motel logo no dia seguinte em que Michèle reuniu todos em uma mesa, em que ele inclusive está sentado com Anna, sua esposa (melhor amiga de Michèle), para falar que foi estuprada. Michèle diz que não quer ir a esse motel e é então convencida a aceitar, com tanto que ele prometa que será a última vez.

E então ela vai, mancando, ao motel. Quando tudo termina, Robert diz que gostou de como Michèle se “fingiu de morta” enquanto estavam se relacionando e então ela diz que ali será a última vez, em um tom muito frio e despretensioso. Essa cena, ainda que não mostre a violência de um estupro no qual a vítima é surpreendida em sua casa, tal como na primeira cena, mostra a complexidade e gestos que compõem o filme e que levam a esse tipo de frieza frente a uma cena que ao menos deveria ser vista como tão violenta quanto.

A relação sexual que ocorre em um quarto de motel, “consensualmente” entre dois adultos, aparentemente não deveria ser uma questão, um assunto ou então (como falamos de um filme) uma cena. Mas é.



Vamos então tratar do desejo e o poder, duas constantes na vida dessa personagem. Desejo e poder que culminam em culpa, coisas que muitas vezes andam próximos na vida de uma mulher, mesmo uma mulher como Michèle. Desejo esse que fatalmente, é destinado ao seu algoz.

O desejo: ela o observa através de um binóculo e se masturba enquanto ele carrega um dos três reis magos que ele irá colocar no seu presépio de jardim. Ela não permite frear seu desejo, seja ele como for e por quem for, ainda que ela não saiba exatamente quem é esse homem de verdade. Ela somente sabe que ele é seu vizinho, um homem casado pelo qual ela sente uma atração profunda.

Colocar uma mulher observando um homem através de um binóculo, ou seja, escondida, afastada e fetichizando através desse olhar, deixando pela imagem explícito que esses olhos pertencem a uma mulher, é algo muito forte. A imagem do homem observando o corpo feminino, tanto do dispositivo comum do cinema, na câmera que captura as imagens de um filme em questão, quanto no dispositivo inserido na narrativa,  como um binóculo, uma lente fotográfica ou que quer que seja, é notoriamente e constantemente explorada.

O contrário, no entanto, é algo cada vez mais fascinante de perceber, ainda que essa graça não venha somente com Elle e seja inédita aqui. Mas a forma como vemos em Elle é especial, aqui vários tabus serão questionados e colocados à prova. O direito ao olhar quando se é mulher, é extremamente importante, isso para bem e para mal (especialmente aqui), te insere no mundo.






O poder: Michèle sabe do seu direito de olhar e de por isso também desejar, mas isso não basta. Nesse mundo dominado pelos homens ela precisa do poder, ela quer jogar o mesmo jogo. 

Ela conta como quem tem um troféu em suas mãos, tal como um troféu de caça, a história de vida atrelada à série de assassinatos pelos quais seu pai foi culpado anos atrás e ela foi dada como cúmplice, ainda criança. Ela narra esses fatos com uma naturalidade e uma frieza assustadoras, até pra quem é capaz de atrocidades, como Patrick. No entanto, ela ainda não sabe disso. 




Nem mesmo nós, que como espectadores alguma vezes temos certos privilégios no ato de olhar. Algumas pistas podem ser dadas e talvez a maior delas seja de fato essa cena. O flerte para essa mulher não se dá através de um cortejo, de um charme lançado ao ar como quem quer mas não vai atrás do que quer. Não existe mais espaço para isso e as relações entre homens e mulheres aqui são no mínimo conturbadas. É necessário defender seu espaço, por mais que saibamos as reais intenções por trás disso tudo.




A culpa e o fim: quando ela realmente descobre quem ele é, ela tem seu instinto de dominação ainda mais aguçado e ao conseguir primariamente dominá-lo, vemos igualmente uma cena violenta, em que ele lhe dá um forte tapa, por impulso dela. E ela cai em gozo, o que assusta profundamente Patrick, que logo vai embora. 

E a partir disso, após descobrir quem ele é e como ele reage ao seu domínio, que Michèle vê se perder seu direito de desejar, de dominar, de querer. E isso é algo que ela não vai suportar. Isso é perder, não ter mais direito sobre seu próprio desejo. Ter culpa.



Elle, é por fim, a história de uma mulher que por mais absurda que possa ser é real. É imperfeita e errante. Ela cabe dentro de um filme e ali se mantém, mas por caber em um filme não é incapaz de existir no mundo também. Não é um filme que propõe uma inversão de valores de forma fácil e redentora, isso talvez possa incomodar e não tiro a razão de quem se incomode. Mas existem muitas nuances incrivelmente inseridas no filme que fazem dessa teia de relações algo muito complexo e interessante de ser visto. E visto, dificilmente dito. Cabe a nós, espectadores, olharmos por uma lente de aumento, tal qual Michèle observa, para entrar fundo no poder dessas imagens. As relações entre homens e mulheres talvez ainda não estejam em uma resolução possível de nos apresentar um mundo ideal, a realidade é realmente outra.

Sendo assim, o jogo se inverte, depois de toda resolução, os homens desaparecem. Aqui talvez seja o mais próximo do ideal para a resolução desse impasse. E nos minutos finais do filme, todas as mulheres do filme saem ou voltam de/para suas tocas. Vemos a esposa de Patrick, que se separa, vemos a esposa do filho de Michèle, que continua mandando na relação, vemos a namorada do ex-marido de Michèle, que havia se relacionado com ele pensando que ele fosse um escritor que ela admirava, quando ela apenas tinha lido o nome do autor errado e confundido os nomes e por fim, vemos a melhor amiga de Michèle e agora ex esposa de Robert, Anna, andando junto com Michèle, de braços dados. Rumo a um destino incerto, que nós, espectadores, esperamos que seja melhor que a culpa, que o medo, que a violência.



Nenhum comentário:

Postar um comentário