por Giovanni Comodo
O que está
abaixo da superfície da água? Mesmo as mais plácidas, além de distorcer formas,
perspectivas e borrar os contornos, podem também esconder uma correnteza de
forças desconhecidas. O Segredo da porta
fechada (1947) é mais um filme de Fritz Lang que explora as misteriosas
águas do inconsciente, suas profundezas traiçoeiras cujas superfícies não
demonstram à primeira vista.
O filme abre
com estas águas calmas em um não-lugar (que não pertence a nenhum cenário da
trama) e a voz da protagonista vivida por Joan Bennett em um tom sussurrado, quase
semiacordado – e é neste estado entre o sonho e o transe em que se desenvolve
toda a película. Bennett (protagonista e produtora, em sua quarta e última
colaboração com o diretor) vive Celia, uma jovem rica e solitária sob pressão
para deixar de ser solteira e que se apaixona no México por um homem
misterioso, o Mark de Michael Redgrave. Como o amor é também um estado de
transe, casam-se rapidamente e ela vai viver em sua mansão afastada da cidade.
Ali, Celia vai descortinando os segredos dos seus moradores e de seus cômodos
trancados. Porque, em Lang, as calmas aparências enganam.
Nascido na
Áustria em 1890, Lang se tornou o maior nome do cinema expressionista alemão
com filmes como Dr. Mabuse, o jogador
(1922) e Metrópolis (1927), em produções
cada vez mais ambiciosas e ousadas. Em M,
o Vampiro de Düsseldorf (1931), já exibido no Cineclube do Atalante, o realizador explora pela primeira vez o som,
em um filme em que tão assustador quanto o serial
killer de crianças com sua aparência (e assovio) banal é o retrato da turba
que o julga. M, inicialmente chamado “Os
assassinos estão entre nós” (uma sentença central para toda obra languiana), teve
seu título alterado para não sofrer represálias dos nazistas em ascensão – e que
vestiram prontamente a carapuça. Já no poder, os nazistas censuraram seu filme
seguinte (O testamento do Dr. Mabuse,
1933) ao mesmo tempo em que Goebbels pessoalmente lhe ofereceu o cargo de
chefia da UFA, o grande estúdio de cinema da Alemanha; na mesma noite, Lang
partiu para a França, praticamente apenas com a roupa do corpo, segundo seus
relatos. Pois Lang é alguém que consegue sentir as pulsões pela violência a
enormes distâncias, como um sismógrafo. Nos Estados Unidos, desenvolveu uma
filmografia de menor prestígio porém não menos valiosa, cada vez mais sucinta e
atmosférica, com desilusão e vertigem, explorando diversos gêneros, do filme de
espionagem ao de aventura de piratas.
“A civilização
pode muito bem nos ter aprisionado, ter dobrado nossos desejos destruidores em
favor dos interesses da sociedade. No entanto, sobrevive ainda na maioria de
nós muito da criatura selvagem e sem inibição, o suficiente para que possamos
nos identificar momentaneamente com o fora da lei. O desejo de machucar e o
desejo de matar são estreitamente ligados à necessidade sexual, sob o império
da qual nenhum homem age de modo razoável. Nossa própria repugnância é a prova
da angústia subjacente de que cada um de nós pode se transformar num assassino”
escreveu Lang na época de lançamento de O
Segredo da porta fechada[1],
um filme em que trabalha o tempo todo com o sexo e a violência a ponto de irromper
tal qual um gêiser: como na cena em que Celia se delicia ao ver dois homens
lutando “até a morte” por uma mulher, sendo ela quase atingida pela adaga da
briga, momento em que vê pela primeira vez Mark e se apaixona. Nos muitos jogos
sexuais do filme, Celia morde Mark, empurra-o para o chão, sugere ela carregá-lo
através da porta na chegada ao lar, subvertendo as tradições e subindo a
temperatura – em outra rima, o perigo cessa por fim com Mark carregando Celia
nos braços para fora da casa, praticamente um novo casamento, agora de fogo.
Nesta combinação entre o conto de fadas do
Barba Azul, arquitetura e psicanálise em forças de magia sobre as personagens,
há muitos mistérios, espelhamentos e pistas falsas que permanecem sem
explicação, círculos incompletos que permanecem abertos – como em um sonho. É
preciso mergulhar com Lang e se permitir submergir.
[1] O Segredo da porta fechada foi produzido por Lang, Joan Bennett e seu marido, Walter Wanger. Poucos anos mais tarde, Wanger foi condenado e cumpriu pena por tentativa de homicídio ao atirar no amante de Bennett.
Nenhum comentário:
Postar um comentário