sábado, 6 de abril de 2024

O Segredo da porta fechada: na água com Fritz Lang

por Giovanni Comodo

O que está abaixo da superfície da água? Mesmo as mais plácidas, além de distorcer formas, perspectivas e borrar os contornos, podem também esconder uma correnteza de forças desconhecidas. O Segredo da porta fechada (1947) é mais um filme de Fritz Lang que explora as misteriosas águas do inconsciente, suas profundezas traiçoeiras cujas superfícies não demonstram à primeira vista.

O filme abre com estas águas calmas em um não-lugar (que não pertence a nenhum cenário da trama) e a voz da protagonista vivida por Joan Bennett em um tom sussurrado, quase semiacordado – e é neste estado entre o sonho e o transe em que se desenvolve toda a película. Bennett (protagonista e produtora, em sua quarta e última colaboração com o diretor) vive Celia, uma jovem rica e solitária sob pressão para deixar de ser solteira e que se apaixona no México por um homem misterioso, o Mark de Michael Redgrave. Como o amor é também um estado de transe, casam-se rapidamente e ela vai viver em sua mansão afastada da cidade. Ali, Celia vai descortinando os segredos dos seus moradores e de seus cômodos trancados. Porque, em Lang, as calmas aparências enganam.

Nascido na Áustria em 1890, Lang se tornou o maior nome do cinema expressionista alemão com filmes como Dr. Mabuse, o jogador (1922) e Metrópolis (1927), em produções cada vez mais ambiciosas e ousadas. Em M, o Vampiro de Düsseldorf (1931), já exibido no Cineclube do Atalante, o realizador explora pela primeira vez o som, em um filme em que tão assustador quanto o serial killer de crianças com sua aparência (e assovio) banal é o retrato da turba que o julga. M, inicialmente chamado “Os assassinos estão entre nós” (uma sentença central para toda obra languiana), teve seu título alterado para não sofrer represálias dos nazistas em ascensão – e que vestiram prontamente a carapuça. Já no poder, os nazistas censuraram seu filme seguinte (O testamento do Dr. Mabuse, 1933) ao mesmo tempo em que Goebbels pessoalmente lhe ofereceu o cargo de chefia da UFA, o grande estúdio de cinema da Alemanha; na mesma noite, Lang partiu para a França, praticamente apenas com a roupa do corpo, segundo seus relatos. Pois Lang é alguém que consegue sentir as pulsões pela violência a enormes distâncias, como um sismógrafo. Nos Estados Unidos, desenvolveu uma filmografia de menor prestígio porém não menos valiosa, cada vez mais sucinta e atmosférica, com desilusão e vertigem, explorando diversos gêneros, do filme de espionagem ao de aventura de piratas.

“A civilização pode muito bem nos ter aprisionado, ter dobrado nossos desejos destruidores em favor dos interesses da sociedade. No entanto, sobrevive ainda na maioria de nós muito da criatura selvagem e sem inibição, o suficiente para que possamos nos identificar momentaneamente com o fora da lei. O desejo de machucar e o desejo de matar são estreitamente ligados à necessidade sexual, sob o império da qual nenhum homem age de modo razoável. Nossa própria repugnância é a prova da angústia subjacente de que cada um de nós pode se transformar num assassino” escreveu Lang na época de lançamento de O Segredo da porta fechada[1], um filme em que trabalha o tempo todo com o sexo e a violência a ponto de irromper tal qual um gêiser: como na cena em que Celia se delicia ao ver dois homens lutando “até a morte” por uma mulher, sendo ela quase atingida pela adaga da briga, momento em que vê pela primeira vez Mark e se apaixona. Nos muitos jogos sexuais do filme, Celia morde Mark, empurra-o para o chão, sugere ela carregá-lo através da porta na chegada ao lar, subvertendo as tradições e subindo a temperatura – em outra rima, o perigo cessa por fim com Mark carregando Celia nos braços para fora da casa, praticamente um novo casamento, agora de fogo.

Nesta combinação entre o conto de fadas do Barba Azul, arquitetura e psicanálise em forças de magia sobre as personagens, há muitos mistérios, espelhamentos e pistas falsas que permanecem sem explicação, círculos incompletos que permanecem abertos – como em um sonho. É preciso mergulhar com Lang e se permitir submergir.



[1] O Segredo da porta fechada foi produzido por Lang, Joan Bennett e seu marido, Walter Wanger. Poucos anos mais tarde, Wanger foi condenado e cumpriu pena por tentativa de homicídio ao atirar no amante de Bennett.

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