por Geraldo Veloso
Ao terminar o seu trabalho em Finnegans wake, Joyce declarou: “Levei quase duas décadas para realizar este texto. Agora espero que os leitores levem 300 anos para decifrá-lo”.
Aos 60 anos, Jean-Luc Godard (talvez o melhor tradutor da
estratégia criativa de James Joyce no cinema) faz um retorno às origens de sua
geração e nos dá Nouvelle Vague.
É o tempo de ouvir os quartetos da maturidade de Beethoven,
Arnold Schönberg (visitado por alguns trabalhos de Jean-Marie Straub e Danielle
Huillet), Bela Bartok, Arthur Honegger e Paul Hindemith. E Hindemith vira
trilha sonora de Nouvelle Vague. Na
calma de sua Suíça de origem, onde busca uma continuidade de sua trajetória de
reflexão (etnográfica?) sobre a cultura de seu tempo.
Jacques Audiberti empresta a Godard o pretexto (e o texto)
para o mergulho em uma obra de referência. Escritor pouco conhecido, ele foi
contemporâneo da gênese da Nouvelle Vague revisitada por Godard, chegou a
colaborar nos Cahiers du cinéma como
crítico e resenhista (a convite de François Truffaut) e chegou também a
conviver com Cocteau e Valéry. O primeiro levou a geração dos Cahiers para o festival de cinema
maldito de Biarritz. O outro frequentou a casa dos pais e o avô de Jean-Luc, na
Suíça.
Vamos interpretar Nouvelle
Vague? Isso é papel dos acadêmicos, que poderão criar um corpus
investigativo que chegará à conclusão habitual diante de qualquer obra de
Godard (ou Hans Lucas): tudo é citação, coligida pela aleatoriedade poética de
um investigador incansável do seu tempo. Atento, provocador, curioso,
sofisticado, moleque (como Joyce), socrático etc.
Mas Elena Torlato Favrini (personagem central do filme de
Godard, representada pela linda Domiziana Giordano) “não existe”. Explico melhor:
seu pai, o conde Torlato Favrini, de A
condessa descalça, de Joseph L. Mankiewicz (uma obra--prima), representado
pelo ator Rossano Brazzi, era estéril/mutilado de guerra e não criou
descendência: flagrando sua amada Maria Vargas (Ava Gardner) nos braços do
chofer do castelo, carente de cuidados sexuais e afetivos, ele os matou. Mas a
condessa conta para um interlocutor, no filme de Godard, que seu pai (o conde)
era amigo do embaixador americano em Roma, Joseph Mankiewicz (!). E ouve dele a
seguinte resposta: “M. Mankiewicz não fazia cinema como os outros. Só fazia o
seu trabalho”.
Dona de um império econômico/industrial na nova Europa (dos
anos 1990), Elena está cercada de serviçais (a fábula da luta de classes; uma
governanta responde para a subordinada, quando perguntada, “por que os ricos
são diferentes?”: “Porque eles têm dinheiro”), negócios (compra de 3% do
capital da Warner), advogados e executivos, automóveis (Maserati, Mercedes, BMW
e um antigo e clássico Citroën – paixão constante de Godard) e tramas
inconfessáveis (uma transação com um quadro de Goya, La maja desnuda e seus seios separados).
Um andarilho (Alain Delon) é achado quase morto à beira de
uma estrada e um balé de mãos o ressuscita. Mais tarde, é deixado morrer
afogado pela condessa Torlato Favrini – “Je
fais pitié”, repete ele. Depois “volta”, na forma de um irmão “igual”, mas
completamente oposto: é um executivo dominador, dinâmico e agressivo, como bom yuppie. E se torna amante da condessa.
Depois ela também se afoga (um corte rápido revela que ele não a deixa morrer).
O cinema abole o raccord dramatúrgico
(a continuidade lógica da narração). A Nouvelle Vague tinha abolido o raccord de movimento e transição (e
instaurado o faux raccord).
E passeiam, diante de uma objetiva administrada por William
Lubtchansky (colaborador da Nouvelle Vague “madura”: Rivette, Straub, Bonitzer,
Varda, Garrel), por herdades verdes, águas e horizontes (como em Pierrot le fou, 1965? – “Ah, quelles térribles cinq heures du soir”).
Imagens conectadas apenas pela sensibilidade poética.
E ouvimos Dante, Erle Stanley Gardner, Schiller, Conan Doyle
e sabe-se lá mais quem.
A água nos traz O sol
por testemunha ou Um lugar ao sol.
Ao mesmo tempo, Godard dá mais uma guinada em seu processo
criativo em direção ao profundo umbigo confessional (JLG/JLG, 1994, Passion,
1982 e Prénom Carmen, 1982, uma
autoironia sobre a idade madura mostra um “titio” Godard tentando enfiar o dedo
no c... de uma enfermeira, empunhando um álbum de Buster Keaton).
Um mistificador, um estelionatário, um ilusionista?
Apenas um poeta, dedicado ao amor e à invenção.
Retirado do catálogo da mostra "Godard inteiro ou o mundo em pedaços" (Org. Eugenio Puppo e Mateus Araújo, CCBB, Heco Produções, 2015).
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