quinta-feira, 20 de novembro de 2025

Génesis, de Marta Ramos e José Oliveira

por Giovanni Comodo


Nunca esqueci que certa vez estávamos em uma roda de amigos depois de um jantar e falávamos sobre o tema que sempre nos assombra: o cinema. Na verdade, todos já se conheciam há muitos anos e eu era o recém-chegado em visita a Lisboa. Argumentei, muito seriamente, que para o melhor do cinema acontecer era necessário afinal filmar com amor, este sentimento tão menosprezado. Marta Ramos, realizadora ali presente, não hesitou e disse em sequência “amor e pudor”, no que todos fomos convencidos sem precisar de argumentos.

Para mim foi uma surpresa ouvir uma verdade que ainda não havia conseguido colocar em palavra, uma vez que não se trata do pudor enquanto conservadorismo, mas de uma relação de modéstia e respeito com o outro e o mundo. Os gregos veneravam Aedos, divindade personificação do pudor, da humildade e da vergonha, responsável pela dignidade humana e pelos homens evitarem o inapropriado. O cinema não lhe dedicou templos, mas é possível perceber que alguns lhe fizeram oferendas – sem pudor não teríamos Ford, Mizogochi, Ozu, Bresson, Manoel de Oliveira, Kiarostami, Costa.

“Génesis”, o novo filme de Marta Ramos e José Oliveira, é um trabalho de amor e pudor, dedicado às pessoas e à vida. Começa com o que parece ser um filme em preto-e-branco Super-8 com duas mulheres com trajes gregos se divertindo, entre danças e abraços (sacerdotisas de Aedos? Não sabemos ainda). Corte. Cor, cidade, barulho, más notícias. Corte. Campo, verde, o correr de um riacho. Ficamos sabendo que Maria, uma das sacerdotisas, é atriz e chega ao Fundão com a lata do filme na mala à procura de Lívia, sua amiga e colega que sequer viu a estreia do filme grego que trouxe consigo. Durante a primeira hora de “Génesis” Maria irá percorrer o Fundão e suas montanhas para tentar descobrir notícias da amiga, em uma série de encontros e explorações da região.

Maria, vivida por Marta Carvalho – que havia trabalhado anteriormente com os realizadores em uma aparição luminosa em “Os Conselhos da Noite” –, narra suas observações para nós. Muda, em suas andanças conhece o Jornal do Fundão, passeia pelo centro, pelas obras do histórico Cine-teatro da Gardunha, pela Moagem, por centros sociais, por quintas e campos, pelas minas da Panasqueiras (“parece que estas montanhas estão a sangrar” diz ela para nós, sendo impossível não pensar em outro filme realizado ali por uma outra dupla de realizadores, “Wolfram, a saliva do lobo”, de Joana Torgal e Rodolfo Pimenta). Maria consegue comunicar-se com facilidade e serve como ouvinte para as pessoas que encontra, muitas delas enquadradas diretamente para a câmera.


As cenas demonstram a inegável capacidade de transformação do Fundão. Uma moagem se torna centro cultural de cinema e teatro, um seminário se transforma em local de acolhimento e museu, uma ruína voltará a ser cinema. Novos tempos, novas funções, sempre pautadas no espírito de resistência e defesa da liberdade que está desde os pequenos gestos aos discursos do 25 de abril – apesar dos alertas da utilização desenfreada da terra em avanço.

O que nos leva a outra questão central e urgente: o filme é atravessado pela Guerra na Ucrânia, ainda em andamento. O Fundão tem acolhido refugiados ucranianos, entre adultos e crianças, que participam do filme com seus depoimentos à Maria (e à nós, portanto). Brincam, riem, mostram suas artes. Os realizadores nos dão a ver estas pessoas, em um gesto de tornar corpóreo e humano o que para muitos é apenas estatística de conflito.

Ramos e Oliveira nos lembram que o cinema não apenas pode dar a ver, mas também a ouvir. Ouvimos os refugiados, os voluntários, os habitantes do Fundão, seus músicos, seus pastores. Todos trazem suas histórias e assumem o completo protagonismo do filme em seus momentos, nada mais importa – como deve ser ao ouvirmos alguém contar algo caro de si.

Poucas vezes temos a oportunidade de acompanhar uma obra cinematográfica com tamanha desenvoltura na defesa e no exercício da liberdade como “Génesis”. Não apenas pela alma fundanense que atravessa a projeção e que cabe tão naturalmente aos realizadores que habitam ali faz poucos anos, mas na própria concepção do filme: regras não se aplicam, elas engessam, comportam, aborrecem. Aqui, é impossível saber o que sucederá cada cena. E, entretanto, jamais é gratuito, sempre há uma inteligência em cada sequência que se perfaz, com uma sutileza que não faz soltar a mão da plateia. Há ainda o prazer da surpresa constante com as imagens, além do cuidado raro para olhar a paisagem: da textura de película em preto-e-branco aos filtros diáfanos, passando pelos oníricos, diferentes janelas de enquadramento e intensidades de cores, os usos de fotografias, material de arquivo, rádio, músicas ao vivo, poesias, depoimentos, registros de apresentações artísticas e religiosas, tudo interessa e agrega à complexa e múltipla tessitura da vida capturada e exibida pelos realizadores. Há quem defenda filmar como se não houvesse amanhã, porém neste caso é o oposto, filma-se porque haverá um amanhã. 



A metade do filme traz a revelação de que Lívia não está em perigo: desapareceu por vontade própria, para tornar-se mãe. Há uma sequência de cenas da natureza, da grande beleza descoberta nos pequenos movimentos das coisas. Adentramos pela escuridão das cavernas da Serra da Gardunha e há um corte na montagem ao sairmos para a luz, seguida da revelação do rosto de um bebê, seu olhar começando a discernir o mundo. A partir dali, acompanhamos a voz de Lívia em uma carta aberta para seu filho recém-nascido (entendemos que algumas das imagens vistas antes eram destes momentos anteriores à chegada de Maria, como a visão dos ninhos de cegonhas e inclusive os depoimentos do geólogo, que eram dirigidos para Lívia desde o início), entre memórias e incertezas para o futuro – a Guerra na Ucrânia teve seu início pouco depois da notícia da gravidez, o que a fez trabalhar no mesmo centro em que Maria trabalharia meses depois. 

Lívia descobre-se mãe, em um chamado que parece vir dos campos e das pedras – a primeira imagem do filme, aliás, ainda em preto-e-branco, era de uma pedra cujas manchas do tempo pareciam duas células se multiplicando no microscópio, uma promessa inesperada da vida sempre a surgir capturada pelos realizadores.

Vale dizer que Lívia é vivida pela Marta Ramos e o bebê – que acaba por nascer do cinema e no cinema – é dela e do José Oliveira (que tivera uma breve ponta antes como o Miguel que percorre com Maria as colinas das minas). Acompanhamos com Ramos e Oliveira o fascínio da descoberta da nova vida, na barriga e depois, em uma grande fusão entre filme e vida – porque o cinema não deve afinal ser dissociado da vida, é ela que alimenta os filmes, sendo necessário realizadores de enorme coragem, paixão e pudor para o desafio de registrar a vida, com respeito e em comunhão com o mundo em volta e igualmente com a plateia.

É também porque não se dissocia cinema e vida que percebemos a presença de Ramos e Oliveira nas interações com os ucranianos e em outros momentos, especialmente na despedida do filme – nesta última cena, vemos os personagens ou os realizadores? Não importa, vemos uma família de três pessoas onde antes haviam duas, repletos de futuro.

Em determinada altura de “Génesis”, mencionam que quanto mais se conhece, mais se aprofunda o mistério. Neste filme que propõe conhecer ao máximo uma paisagem e suas pessoas, não temos alternativa que abraçar variados mistérios – de segredos que não são compartilhados conosco a tramas que se desfazem. Porém nenhum deles maior do que o da vida, mostrado diante de nossos olhos, com amor e pudor.


Texto escrito para a estreia mundial do filme Génesis nos Encontros de Cinema do Fundão de 2024 (agosto, Portugal) que integra o catálogo do festival. Agradecemos à organização do festival pelo convite e por autorizar esta postagem.