sexta-feira, 6 de abril de 2012

Terra em Transe

           


É em meio ao mar de Eldorado, na Província de Alecrim, que a história (não inicia, mas) gira, conta o início-fim da trama que se põe em trânsito. “Terra em Transe” é uma convulsão poética que versa sobre um país fictício da América Latina, a epilepsia política nas transições dos regimes democráticos e autoritários dos meandros de 1960 e o que se segue.     
           
Precursor do Cinema Novo, Glauber Rocha despeja na fotografia grande sensibilidade, que ultrapassa a monocromia. Acompanhada, é claro, por uma narração metafórica e poética que navega pelas falas das personagens. Crítico de um momento importante da história brasileira, o filme causou rebuliço entre partidários da esquerda e da direita e chegou a esbarrar na censura da ditadura militar. É que dá voz à reflexão sobre as representações políticas, o uso da religião e da fé, a figura do populista e do conservador; faz caricatura das posturas ditas progressistas e do tal “extremismo”. Delineia o engodo do amor ao poder e às ideias, da violência física e simbólica e a posição incerta das massas.          
       
Clássico do cinema moderno e anunciador do tropicalismo, o filme, eleito o mais polêmico dentre os seus, narra a vida de um poeta e jornalista, que se encontra num hiato inflamável frente à realidade: eis o conflito entre a pretensão de mudança social e a amargura vislumbrada no fracasso desse anseio. A promessa da transformação repousa na poesia – e na sua insuficiência -, na “ingenuidade da fé”, na hipnose da beleza. Afora isso, o pecado da vida real escorre pelas brutas frestas da política – a luta pelo poder, os interesses econômicos, a disputa por nichos de influência, a marginalização do povo. O protagonista é a condensação das contradições de Eldorado, o ponto de tensão personificado, a consciência palpitante que entrevê o barravento: a catarse latino-americana propriamente dita, o Brasil escancarado.


Resposta ao golpe militar de 1964, a obra busca a compreensão dos signos históricos que coexistem no imaginário, sobretudo, das massas. Dentre eles o messianismo, o populismo e o patriarcalismo - que se imiscuem aos elementos negros e indígenas próprios à cultura popular brasileira. Nesse sentido, Glauber Rocha mostra genuinamente a cara do Cinema Novo. Através da utilização desses símbolos, avisa que a política do século XX em quase nada difere daquela colonial, do acordo entre as elites e a manutenção do povo à parte. Desse modo, realiza uma síntese única ao representar um homem de terno sendo coroado feito rei: mistura elementos barrocos e modernos, mobiliza ingredientes fundamentais da cultura brasileira, irrompendo em sincretismos e abrindo alas à representação do imaginário da escola de samba, a tudo aquilo que pertence decididamente ao povo.        

E ao tratar do povo, também o faz magistralmente: assume a malquerida tarefa de desmistifica-lo, desfetichizá-lo - e isso porque vai até ele, deixa-o falar. Ousa, ainda, a alusão à luta de classes, tendo como uma das mais irreverentes cenas aquela em que um dos personagens cinicamente melindra:
“Qual é a sua classe?”.     
Nesse ponto de deliciosa amargura, revolve uma das questões mais delicadas dessa temática, cristalizando tal impasse no âmago do protagonista-poeta, tropeço poético-político, no que Carlos Drummond de Andrade responderia:


Preso à minha classe e a algumas roupas,               
vou de branco pela rua cinzenta.     
Melancolias, mercadorias espreitam-me.  
Devo seguir até o enjôo?      
Posso, sem armas, revoltar-me?     

Política e Poesia: demais para um homem só. E o poeta protagonista decide pelo caminho da luta armada, revolucionária e suicida, contra o sol, o céu, contra o sal e contra o mar, devoto louco de suas ideias: “imenso trabalho nos custa a flor”. E
não conseguindo “firmar o nobre pacto entre o cosmos sangrento e a alma pura” ainda que com violência e tanta ternura, não encontrando o ponto da chegada: morre. De fome. Dessa eterna fome do absoluto.



                                                                                                                Estela Basso

2 comentários:

  1. Luiz Soares Júnior: "eu tenho um critério: barrocos são contemporâneos dos clássicos. são visões de mundo diferentes, antes de tudo, que se ex-primem em estilos: um é Húbris, outro é Logos, Razão. Mas Hitch é um caso bem singular de mistureba em diferentes proporções de ambos- e expresisonismos e gótico, etc o que eu considero maneirista é um "barroco que chegou tarde demais", que não pode ser contemporâneo do que cita- senão não seria uma citação, uma releitura/reapropriação. tem uma questão histórica aí- de deságio no tempo. é claro que não há criação de arte ex-nihilo. arte é sempre reinterpretação de vida e de outra arte. os clássicos é que nunca assumiram isso, pois tinham pretensões demiúrgicas a serem criadores absolutos, e não "meros" intérpretes. só que os barrocos tb tinham estas pretensões; mas eram do lado de cagliostro, não de goethe. exuberantes, não clássicos. mas havia a mesma ideia de criar mundo, de "ser original". ora, na nossa época, ser original é um pecado, pois temos 3.00o anos, etc. quem ousaria pintar o sol hoje e dizer: criei o sol?, quando manet, monet, munch, etc já pintaram e disseram tudo sobre o sol?"
    É questão de nomear, conceituar.
    Hj já se usa o barroco, o maneirista e o clássico para contextos bem específicos.
    Por isso, Scorsese, Coppola, de Palma até mesmo Leone, não podem ser chamados de barrocos.
    Até podem, mas já são chamados de outras coisas.

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