sábado, 28 de outubro de 2017

A LUVA E O CHAPÉU


No famoso ciclo "luvas", Max Klinger trabalha o comportamento de homens e mulheres imersos num novo ambiente social e sensorial. Suas gravuras se situam em uma época da modernidade visual marcada pela dispersão perceptiva, quando os focos de atenção, visualização e estímulo se multiplicam ao ponto da saturação. O suporte da experiência subjetiva passa a ser um corpo cinético, deslizante, entregue a trajetórias indeterminadas e repletas tanto de surpresas quanto de riscos. Ao menos é assim que os estudos culturais nos ensinam – Jonathan Crary, por exemplo, aborda a série A Glove sob esse ponto de vista... 

... mas ele "negligencia" o autor das outras imagens que vemos aqui. Em seus estudos sobre Manet e a modernidade visual, Crary sequer cita Lumière. Seu texto de O cinema e a invenção da vida moderna ("A visão que se desprende: Manet e o observador atento no fim do século XIX") tangencia o advento do cinema atentando não para a estética dos primeiros filmes, tomadas lumièrianas inclusas, e sim para o contexto da cultura visual ao qual o cinema teria se somado.

É uma atitude comum aos textos que tratam o cinema como condensação emblemática de um conjunto de práticas da modernidade, de transformações ocorridas na segunda metade do século XIX sobretudo na esfera da tecnologia, do lazer e da vida cotidiana. Um tipo de abordagem, ok, nada contra. Mas façamos um pouco diferente: busquemos no cinema uma imagem que dialogue com as imagens que o precederam.

Aqui ao lado, vemos uma das gravuras do ciclo, intitulada Action, que mostra um homem se agachando para buscar a luva que alguma dama (a que está à sua frente, possivelmente) deixou cair. Logo abaixo da gravura de Klinger, fotogramas de uma "vista" de Lumière encenando a alopração de um patinador, rodeado pelos olhares entretidos de uma modesta platéia. Um dos gestos dos patinadores – o de se agachar – praticamente se repete nas duas obras, como se houvesse uma memória antropológica dos gestos unindo seus reflexos motores, atravessando a história das artes visuais. 

Em Lumière, o pressuposto coletivo do cinema ganha contorno não só no caráter público da projeção, mas sobretudo no fato de que o olhar que conduz e injeta vida em seus filmes se dirige a um conjunto de outros olhares. Mesmo uma imagem de cena privada/familiar em Lumière contém, nela mesma, a consciência de um olhar coletivo ao qual se dirige (questão imanente para ele, imerso no ápice da era industrial e da convivência em espaços coletivos nas cidades?). As pessoas que observam o patinador, de certo modo, corporificam esse olhar coletivo, dão-lhe forma e fazem contracampo ao próprio lugar do espectador de cinema, assim inscrito na representação. Aquela fileira de pessoas é um duplo fantasmático da nascente platéia de cinema, interessada nesse corpo burlesco e aloprado que gesticula, se desequilibra, faz piruetas, cai e levanta diante de seus olhos. O corpo da comédia física. 

O ponto de vista, na tomada de Lumière, é fixo – e, fator mais importante, não se confunde ao olhar de nenhum personagem dentro da cena. O patinador se abaixa para pegar o chapéu que alguém, fora-de-quadro, atira em sua direção. Isso faz parte do divertimento que está encenando. É um número circense, ligeiro, alegre, vulgar. Já em Klinger, o personagem ignora o chapéu e vai direto na luva. Ele, diferentemente do patinador de Lumière, seleciona, decupa a cena em que está inserido guiado por uma atenção e uma intenção. E mais: seu contexto pede também algum grau de anonimato, de segredo. Algo passa escondido naquela representação, está interiorizado na montagem do olhar. Na tomada lumièriana, nada podemos ver para além da comicidade gratuita da ação, da inocência de um mundo da gestualidade pura, ou seja, do gesto como puro dispêndio de energia. Em A Glove: Action, o olhar é já o desejo, o fetiche, a perversão. Embora anterior ao cinematógrafo de Lumière, o registro de Klinger é fetichista e obsessivo como o cinema da montagem e do plano-detalhe – portanto, o cinema posterior a Lumière – viria a ser em alguns casos. Num rinque de patinação circula o riso, a ação, a mobilidade; no outro circulam os fluxos de desejo e de atenção direcionando o olhar (obcecado, pervertido). Num mesmo lugar público, dois registros do olhar. E o cinema daria enorme espaço para ambos. 

Luiz Carlos Oliveira Jr.
(Texto original: http://www.contracampo.com.br/88/pgluvachapeu.htm) 

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