sábado, 22 de dezembro de 2018

As coisas simples da vida (Yi Yi, 2000), de Edward Yang


Por Luiz Carlos Oliveira Jr.

Em 1984 a nouvelle vague do cinema de Taiwan já se podia dar por viva: era lançado um filme de estrutura narrativa complexa, uma imbricação de passado e presente que, durante 166 minutos (exatamente a duração de As Coisas Simples da Vida), fazia desfilar uma variedade de visões refletidas pela arquitetura envidraçada de uma Taipei modernizada às pressas. O nome do filme é That Day, On the Beach e seu diretor é Edward Yang, que escreveu o roteiro em parceria com Wu Nien-jen, ator que faz Nj, personagem central de As Coisas Simples da Vida. Mas não há coincidência nessa história: há um cineasta e sua relação com uma cidade em constante transformação – um cineasta e sua obra se aperfeiçoando. Assim como Tsai Ming-liang, Lin Cheng-sheng e Hou Hsiao-hsien, Yang busca formas muito particulares de traduzir um sentimento despertado pela grande cidade resplandecente e confusa que Taipei se tornou. A maneira com que Yang filma a “contaminação” cultural de Taipei, terra eternamente assombrada por investimentos americanos e japoneses, é somente comparável à Tóquio ocidentalizada de Ozu (e vale dizer que o segundo longa-metragem do diretor taiwanês se chama Taipei Story). As interações sutis dos habitantes entre si e com a cidade entram em cena através de construções que já contêm superfícies reflexivas próprias, paredes semitransparentes que delimitam o espaço à mesma medida que o transformam em imagem sobreposta. O que o dispositivo especular apresentado por Yang em As Coisas Simples da Vida evidencia, num primeiro momento, é sua profunda consciência criadora, mesmo porque a exuberância fotográfica experimentada a cada plano contribui para uma composição cuja pictorialidade não esconde o desejo de organizar e discursar sobre o espaço.

É interessante que um dos planos que melhor sintetizem o filme mostre exatamente um monitor conectado a várias câmeras de segurança, com o menino Yang-Yang correndo e transitando de um quadrante a outro da imagem, saindo de uma porção de espaço para entrar em outra, mas sem se deixar perder pelo registro. Filmado quase sempre à meia-distância por uma câmera que se espalha pelos lugares freqüentados pelos diversos personagens do filme – e que não se confunde ao olhar destes, sendo como um ponto de vista do próprio espaço –, As Coisas Simples da Vida é tanto uma vigilância afetiva do ambiente urbano quanto uma caprichosa arquitetura de locações contíguas. O filme utiliza o espaço coletivo para confrontar relações íntimas, e a privacidade para agravar falhas de aproximação. O casal adolescente dá o primeiro beijo sob um viaduto, numa movimentada avenida, e tanto as brigas quanto o sexo reconciliatório de um casal em um típico prédio de classe média vazam para a vizinhança. Mas os únicos momentos de “intimidade pura” que o filme reserva a alguns de seus personagens, em quartos de hotéis feitos para que o mundo exterior se anule, terminam por revelar uma entrega impossível, uma relação de cumplicidade refreada no justo momento em que se concretizaria. O jovem por quem Ting-Ting se interessava desde o início do filme, e que depois se tornará protagonista de um fait divers sangrento, abandona-a sozinha num quarto de hotel. E o encontro entre Nj e Sherry, seu primeiro e único amor confesso, não ultrapassa um abraço na noite em que ela tem um acesso de choro por conta do passado mal resolvido que ali era trazido à tona novamente.

Mas que não se engane com o título que o filme recebeu dos distribuidores brasileiros: Yi Yi não é uma somasseqüência de blocos brutos contendo cenas da vida cotidiana. Apesar de não haver dramatização da decupagem – pois há muito mais opacidade do que transparência narrativa em Yi Yi – e de seu estilo passar a milhas de distância do academicismo, para articular este filme Yang lança mão de alguns dos procedimentos que permitiram justamente ao cinema clássico definir sua linha mestra: inteligência editorial, composição pictórica da imagem, agenciamento dos planos em um esquema narrativo “fechado”, engrenagem do individual no coletivo, paralelismos. Raras vezes na história do cinema um filme a que se pode atribuir – se não um minimalismo – uma contenção no ato de encadear e distribuir significados foi tão enfático no aspecto retórico de sua mise en scène e de sua montagem. Quando a câmera se movimenta em As Coisas Simples da Vida, sabemos que algo novo se produz nessa poética espacial a que Yang nos conduz com tanta calma e sensibilidade. Do mesmo modo, praticamente todos os cortes do filme guardam alguma ressonância plástica ou alguma produção de sentido na passagem de um plano a outro – o raccord é um operador ativo na significação. Aqui o cinema assiste a uma técnica de espelhamento que nenhum outro exemplar de filme-painel (e olha que a lista não cansou de crescer na última década) conseguiu desenvolver tão extraordinariamente: os planos todos se implicam mutuamente, se completam e se refletem.  

Já vimos muitos filmes naufragarem na tentativa de ser filosóficos e encomendar aos seus personagens uma série de reflexões sobre o tempo e o mundo em que vivemos. Em Yi Yi o processo felizmente não se repete: tudo que é dito – e muitas vezes são verbalizações das idéias centrais do filme – desfruta uma incontestável organicidade em relação ao mostrado. Edward Yang filmou a nuca de Taipei, filmou a parte da vida que não é possível ver senão através da objetiva de uma câmera que alguém posicionou de maneira amigável. Não há nada mais simpático e solidário no filme do que o gesto de Yang-Yang de fotografar a nuca das pessoas, para que elas possam ver uma parte do próprio corpo que a visão não alcança. Retrato do cineasta enquanto criança, Yang-Yang é quem dá as cartas no fim das contas, respondendo positiva e indiretamente a uma pergunta de Ting-Ting (“se o cinema nos atrai justamente porque é tão parecido com a vida, não seria melhor não ir ao cinema e continuar vivendo?”). O que encerra o filme é a fala dessa criança diante da avó recém-falecida, com a profunda sabedoria que resulta de seu olhar quase literal sobre as coisas (do tipo: “só olhamos para frente, só podemos saber as coisas pela metade”). Yi Yi não é uma lição de vida, mas uma lição sobre a vida, uma obra que se soma à vida para compor um novo substrato. Por isso soa falso pensar que o verdadeiro contracampo do filme é a vida encenada, imaginada, ou mesmo sonhada. O pressuposto de Yang é seqüestrar a vida para depois enviá-la de volta com alterações sutis. Ele quer filmar o que ainda não vimos por uma simples condição natural – nada de condenável nem de reprovável nessa cegueira parcial, apenas um dado da espécie. Quando Ting-Ting fecha os olhos, com o rosto deitado no colo da avó, vê um mundo que lhe parece ainda melhor que antes: o otimismo de um sonho de quem está acordado. Talvez seja um efeito semelhante o que se busca ao mostrar, lá para o meio do filme, aquele discreto plano de céu azul entre uma seqüência e outra. Quantas vezes lembramos de olhar para o céu assim tão detidamente? Para quem assistiu ao filme, é hora de lembrar.


Retirado de http://www.contracampo.com.br/74/ascoisassimplesdavida.htm

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