sábado, 13 de abril de 2019

“Muito mais do que uma mãe”: Stella Dallas e o melodrama maternal (trechos)

por Linda Williams


O propósito da análise de Laura Mulvey [em “Prazer visual e cinema narrativo”] é se aproximar o máximo possível das raízes da opressão sofrida pelas mulheres a fim de quebrar os códigos que impedem a produção da subjetividade feminina. Seu maior objetivo é, para tanto, uma prática de vanguarda na realização de filmes que irá quebrar o voyeurismo e fetichismo do cinema narrativo para “libertar o olhar da câmera para a sua materialidade no espaço-tempo” e “o olhar da plateia para a dialética, o distanciamento passional”. Para Mulvey, apenas a destruição radical das maiores formas de prazer narrativas, tão amarradas a ver mulheres como objetos, pode oferecer esperança para um cinema que será capaz de representar não mulheres como diferentes, mas diferentes mulheres.


Reiteradamente foi destacada uma carência na influente análise de Mulvey sobre o prazer visual e o cinema narrativo: não há qualquer discussão sobre a posição do sujeito espectadora. Apesar de várias obras feministas na crítica de cinema destacarem esta ausência, raras se aventuraram a preenchê-la. É muito mais fácil rejeitar os “dominantes” ou “institucionais” modos de representação de uma vez do que descobrir nestes modos existentes vislumbres de uma mais “autêntica” (um termo em si problemático) subjetividade feminina. E, no entanto, é neste segundo ato que está uma abordagem muito mais frutífera, não apenas como um meio para identificar qual prazer há para as espectadoras no cinema narrativo clássico, mas também como meio de desenvolvimento de novas representações estratégicas que irão falar melhor com a audiência feminina. Pois tal discurso precisa começar na linguagem, a qual, por mais circunscrita com a ideologia patriarcal, será reconhecida e compreendida pelas mulheres. Desta forma, novos filmes feministas podem aprender a construírem-se sobre os prazeres que existem nos modos fílmicos já familiares às mulheres. (...)


Em cada um dos seus incidentes de transgressão do comportamento adequado, há um momento no qual vemos primeiro o ponto de vista inocente de Stella e então o ponto de vista da comunidade ou do marido alienado que a julgam uma má mãe. Seu julgamento se baseia no fato de Stella insistir em fazer de sua maternidade uma experiência prazerosa dividindo o centro do palco com sua filha. A única coisa a qual ela se recusa a fazer, ao menos até o final do filme, é se retirar para o segundo plano.


Um conflito básico do filme, portanto, gira em torno da presença excessiva do corpo e vestimentas de Stella. Ela ostenta de maneira cada vez mais exagerada uma presença feminina a qual a comunidade ofendida prefere não ver. (A própria performance excessiva de Barbara Stanwyck contribui para este efeito. Eu não consigo pensar em outra estrela de cinema do período que tão voluntariamente contribuiria para exceder tanto os limites do bom gosto e de sex appeal em uma mesma performance.) Mas quanto mais babados, penas, peles e joias barulhentas que Stella usa, mais ela enfatiza sua inadequação patética. (...)


Quando se vê pelos olhos de sua filha, Stella também percebe algo mais. Pela primeira vez Stella enxerga a realidade de sua situação social do ponto de vista de sua filha – compreensiva, porém cada vez mais da alta sociedade – e seu sistema de valores: que ela é uma mulher sem educação lutando para fazer o melhor que pode com os recursos à sua disposição. E é esta visão, através dos olhos piedosos e maternais de sua filha – olhos que percebem, compreendem e perdoam a graciosidade social que Stella não tem – que a convence a montar a farsa que irá alienar Laurel para sempre, comprovando a ela que o patriarcado reivindicou saber o tempo todo: não é possível combinar desejo feminino com deveres maternais.


É neste ponto que Stella afirma, falsamente, que quer ser “algo mais do que só uma mãe”. A ironia não está apenas no fato de que não há outra coisa que ela queira ser, mas também em ao fingir isto para Laurel ela precisa atuar em uma dolorosa paródia fetichista de si própria. Ela então ressuscita a persona de “good-times” woman que ela já desejara ser (sem que nunca de fato tenha sido) apenas para convencer Laurel de que é uma mãe indigna. Em outras palavras, ela prova seu valor como mãe (seu desejo de uma vida material e social plena para sua filha) atuando em um enredo patentemente falso de autoabsorção narcisista -  ela finge ignorar Laurel espreguiçando-se de négligée, fumando um cigarro, escutando jazz e lendo uma revista chamada “Amor”.


Nesta cena a imagem convencional da mulher fetichizada ocorre com uma reviravolta particular, mesmo paródica. Pois enquanto o farsesco de feminilidade pode ser visto como uma tentativa de disfarçar uma suposta “falta” biológica [do falo] com uma compensação excessiva de gestos, roupas e apetrechos conotativamente femininos, aqui a fetichização funciona como um descarado e patético repúdio de faltas sociais prementes – de dinheiro, educação e poder. O espetáculo montado por Stella para o olhar de Laurel, assim, desloca as causas econômicas e sociais reais de sua suposta inadequação como mãe para um falso desejo de uma realização enquanto mulher – ser “algo mais do que só uma mãe”.



No começo do filme Stella finge uma preocupação maternal que ela não possuía (ao levar o lanche para seu irmão a fim de flertar com Stephen) para encontrar um lar melhor. Agora ela finge a falta da mesma preocupação para encontrar um lar melhor para Laurel. Ambos papéis são claramente falsos. E apesar de nenhum deles nos permitir a ver a mulher “autêntica” por trás da máscara, a sucessão de papéis que culminam na transcendente auto-anulação na cena da janela – na qual Stella abandona todas as suas máscaras a fim de se tornar uma espectadora anônima de sua filha no papel de noiva – permite um vislumbre das realidades econômicas e sociais que produziram estes mesmos papéis. A real ofensa de Stella, aos olhos da comunidade que impiedosamente a ostraciza, é ter tentado viver ambos papéis ao mesmo tempo.




Publicado em “Home is where the heart is: studies in melodrama and the woman’s films”, editado por Christine Gledhill, BFI Books (Londres, 1987). Seleção e tradução por Giovanni Comodo.

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