Próximo do final do seu último
filme, Agnès Varda apresenta e explica seu trabalho como artista visual, suas
instalações. Há uma que retrata o túmulo de seu amado gato de estimação Zgougou
– já imortalizado na logomarca de sua produtora e em outros curtas como “O Leão
Volátil” (2003) – em exposição na Fundação Cartier: dentro de uma pequena e
humilde cabana no rico jardim da fundação há no chão um montinho de terra no qual é
projetada uma animação, recobrindo o falso túmulo de várias e coloridas
conchinhas. Em seguida, a projeção sobe e mostra as árvores do entorno e flores, até
revelar a localização do túmulo real de Zgougou, bem próximo do mar, em uma quase-ilhota
da França onde a família de Varda sempre passou as férias. A câmera se afasta
mais e mais, revelando a pequenez da ilha.
Várias crianças observavam a exibição.
Varda esperava no lado de fora e lhes pergunta o que acharam. Uma delas
responde “gostei, a morte é sempre algo tão triste, mas pode ser bonita e
colorida”.
A plateia, ao assistir “Varda por
Agnès” já sabe do falecimento da grande diretora aos 90 anos em março deste
ano. Sabia-se de sua idade avançada e que anunciara a aposentadoria na estreia
deste filme, mas não sabíamos que um câncer a vitimava por dentro – ela sim.
Pois é nesse momento que nós percebemos
que, muito mais que uma aula magna de fazer cinema ou uma nova defesa da
memória de seu trabalho polivalente como artista nas últimas sete décadas,
estamos diante de uma despedida consciente. E é preciso uma criança anônima
para nos lembrar que ela pode sim ser alegre e celebratória – não por acaso,
são aos anônimos que Varda dedica a maior parte do seu olhar desde sempre.
Nesta breve passagem, há o melhor
de Varda: sua generosidade em ver, ouvir e registrar os outros, sua capacidade
de encontrar grandezas em banalidades (um monte de terra, afinal, um gato de
estimação falecido, pequenas conchas da areia), a inventividade na ligação de
ideias aparentemente desconexas (um túmulo de um animal de estimação e nossa
insignificância na existência, a alegria e cor na tristeza e vice-versa). Empatia.
Curiosidade. Amor.
Há quem acuse Agnès Varda de
pouco se expor nos seus filmes. Para alguns, mesmo com a diretora
constantemente em frente à câmera, ela pouco revelaria de concreto sobre sua
vida pessoal, suas ideias e fracassos. Ora, a esses mesmos críticos a própria
Varda oferece uma réplica neste filme: interessa-lhe acima de tudo filmar as
pessoas e as coisas que ama, sendo ela apenas um meio para esses afetos estarem
em destaque. E aqui cabe outra resposta, deste que escreve: ao diabo com quem
acredita nisso, a única exposição que importa em um filme é a da visão de mundo
do realizador – e nisso Varda é sempre bastante solidária e nunca mesquinha –,
não o espetáculo que faz de si mesmo. E diga-se de passagem, só não enxerga
franqueza em abordar fracassos, dores e perdas nos últimos filmes da diretora
quem não quer ver e ouvir.
De volta ao pequeno ponto no mar
azul em que se transformou a ilha de Zgougou, Varda emenda com um trecho de seu
filme anterior, “Visages, Villages” (2017), no qual ela e o co-diretor JR se sentam
em uma praia sob fortes ventos, suas silhuetas aos poucos se fundindo às areias
indomáveis. Ouvimos sua voz “um dia vou apenas desaparecer”. E então não há
mais ninguém ali.
Surge a cartela “dirigido e
comentado por Agnès Varda” e termina o filme. Agnès voltou ao pó. Varda e seu
trabalho permanecem. Que alegria.
Nenhum comentário:
Postar um comentário