sexta-feira, 24 de maio de 2019

Varda por Agnès

por Giovanni Comodo
 


Próximo do final do seu último filme, Agnès Varda apresenta e explica seu trabalho como artista visual, suas instalações. Há uma que retrata o túmulo de seu amado gato de estimação Zgougou – já imortalizado na logomarca de sua produtora e em outros curtas como “O Leão Volátil” (2003) – em exposição na Fundação Cartier: dentro de uma pequena e humilde cabana no rico jardim da fundação há no chão um montinho de terra no qual é projetada uma animação, recobrindo o falso túmulo de várias e coloridas conchinhas. Em seguida, a projeção sobe e mostra as árvores do entorno e flores, até revelar a localização do túmulo real de Zgougou, bem próximo do mar, em uma quase-ilhota da França onde a família de Varda sempre passou as férias. A câmera se afasta mais e mais, revelando a pequenez da ilha.

Várias crianças observavam a exibição. Varda esperava no lado de fora e lhes pergunta o que acharam. Uma delas responde “gostei, a morte é sempre algo tão triste, mas pode ser bonita e colorida”.

A plateia, ao assistir “Varda por Agnès” já sabe do falecimento da grande diretora aos 90 anos em março deste ano. Sabia-se de sua idade avançada e que anunciara a aposentadoria na estreia deste filme, mas não sabíamos que um câncer a vitimava por dentro – ela sim.

Pois é nesse momento que nós percebemos que, muito mais que uma aula magna de fazer cinema ou uma nova defesa da memória de seu trabalho polivalente como artista nas últimas sete décadas, estamos diante de uma despedida consciente. E é preciso uma criança anônima para nos lembrar que ela pode sim ser alegre e celebratória – não por acaso, são aos anônimos que Varda dedica a maior parte do seu olhar desde sempre.

Nesta breve passagem, há o melhor de Varda: sua generosidade em ver, ouvir e registrar os outros, sua capacidade de encontrar grandezas em banalidades (um monte de terra, afinal, um gato de estimação falecido, pequenas conchas da areia), a inventividade na ligação de ideias aparentemente desconexas (um túmulo de um animal de estimação e nossa insignificância na existência, a alegria e cor na tristeza e vice-versa). Empatia. Curiosidade. Amor.

Há quem acuse Agnès Varda de pouco se expor nos seus filmes. Para alguns, mesmo com a diretora constantemente em frente à câmera, ela pouco revelaria de concreto sobre sua vida pessoal, suas ideias e fracassos. Ora, a esses mesmos críticos a própria Varda oferece uma réplica neste filme: interessa-lhe acima de tudo filmar as pessoas e as coisas que ama, sendo ela apenas um meio para esses afetos estarem em destaque. E aqui cabe outra resposta, deste que escreve: ao diabo com quem acredita nisso, a única exposição que importa em um filme é a da visão de mundo do realizador – e nisso Varda é sempre bastante solidária e nunca mesquinha –, não o espetáculo que faz de si mesmo. E diga-se de passagem, só não enxerga franqueza em abordar fracassos, dores e perdas nos últimos filmes da diretora quem não quer ver e ouvir.

De volta ao pequeno ponto no mar azul em que se transformou a ilha de Zgougou, Varda emenda com um trecho de seu filme anterior, “Visages, Villages” (2017), no qual ela e o co-diretor JR se sentam em uma praia sob fortes ventos, suas silhuetas aos poucos se fundindo às areias indomáveis. Ouvimos sua voz “um dia vou apenas desaparecer”. E então não há mais ninguém ali.

Surge a cartela “dirigido e comentado por Agnès Varda” e termina o filme. Agnès voltou ao pó. Varda e seu trabalho permanecem. Que alegria.


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