sábado, 12 de outubro de 2019

A dona da voz e do fogo

por Giovanni Comodo


Um amigo me perguntou que tipo de filme é “Meu único amor”. Não soube responder. Com seu preto-e-branco em alto contraste, trama repleta de pequenos gangsters, nightclubs esfumaçados e uma violência que parece a ponto de irromper de todos os lugares, é visto como um noir. E também conta a história de uma família, seus traumas, dores e ambições, com espaço para os três irmãos e seus familiares – um drama. Porém como ficam os vários números musicais durante o filme, em que tudo parece segurar a respiração para termos o prazer de ouvir – e ver! – os músicos fazerem seu trabalho?  Ou a avassaladora história de amor e desencontro entre Petey e San, dois adultos perdidos na noite californiana? Estamos diante de um filme de Raoul Walsh, ou seja, selvagem e repleto de pulsões como a vida.

Walsh é ainda pouco conhecido do grande público, mesmo sendo um dos maiores e mais prolíficos diretores de Hollywood. Começou ainda no cinema mudo, ator e assistente de DW Griffith (foi Wilkes Booth em “O Nascimento de uma nação”), e filmou de tudo em mais de 50 anos de cadeira de diretor: drama, aventura, ação, faroeste, policial, romance.

E o que é um filme walshiano? Fala-se no seu gosto por filmar as pessoas em plano americano (os atores cortados na altura dos quadris ou joelhos), no pouco movimento de câmera, na excelência da profundidade de campo com a qual apresenta o mundo (pensemos nas várias cenas nos clubes e no apartamento do casal), na transparência e economia na decupagem, discreta, à serviço dos corpos na tela. Mas o são principalmente por algo menos tangível: energia. Os filmes de Walsh parecem carregados de um vigor que os propelem para frente – em histórias de homens em constante luta com o mundo e de mulheres fortes, indomáveis.

O que nos leva à Petey Brown de Ida Lupino, a mais indômita de suas mulheres. Independente, durona, inteligente, sempre com uma resposta rápida nos lábios, Petey chega a Long Beach para visitar a família, ajudá-los e, por que não?, ajudar-se também no processo. Lupino – que logo depois viria a ser ela também uma cineasta walshiana (ele e Nicholas Ray são seus mestres) – está em estado de graça em seu quarto e último trabalho com o diretor, um de seus papéis finais na Warner, estúdio com o qual vivia às turras ao lutar por personagens interessantes. Petey, cantora, apresentada a nós mansamente pelas bordas da tela em uma apresentação de jazz (não seria todo o filme, com suas constantes e controladas variações de ritmo, uma enorme apresentação de jazz?), é a dona da voz do filme: repleta de razão e de experiência de vida, passa a alertar e orientar a todos em volta. Assim, o poder de sua presença surge no filme como um sol que nasce, organiza a vida em volta e, no final, some na escuridão do horizonte, natural e discretamente, com a certeza que voltará em outro momento pois assim são as leis da vida. Tão forte é a presença de Lupino/Petey que ela, sem nada nas mãos, chega a desarmar um homem com revólver e gana de assassinato e já em sequência surrá-lo. Seu calor é inclusive físico: ela é também a dona do fogo – já na primeira cena acende o cigarro de um colega pianista e durante a projeção vai acendendo o fogo de outros tantos homens e da narrativa como um todo, como se a pólvora do tempo acumulada por sua família e amigos de Long Beach estivesse à sua espera. Petey, por sinal, sempre acende seu próprio cigarro, exceto com San Thomas, seu único amor.

Tão grande é o calor de Lupino que este estende-se ao seu olhar. Não apenas restrito ao de observadora analítica que antevê os problemas, é também o de uma mulher em completo domínio de sua sexualidade. Ela controla os homens ao redor e vai atrás quando lhe interessa, sem culpas. As cenas em que observa San tocar piano em seu apartamento são tão repletas de lascívia que são preliminares. Tanto que é puro sexo o corte em seguida realizado pelo diretor, na filmagem da lareira acesa com Lupino controlando as chamas com o atiçador e em sequência filando um cigarro de San Thomas, satisfeita.

“Meu único amor”, para além de ser listado como um noir, é também um exemplar fascinante dos chamados “women’s films”, os filmes concebidos por Hollywood destinados às mulheres, em tentativas de lhes dar o que imaginavam que este público gostaria de ver, muitas vezes com curtos-circuitos sociais que subvertiam a moral corrente e expunham a realidade, afinal. Walsh oferece na família Brown um mosaico de mulheres interessantes e independentes: as três irmãs e a vizinha Gloria, com seus desejos (inclusive sobre os homens), frustrações, descobertas e camaradagem entre si, proporcionam grandes momentos de pessoas próximas do mundo real e para as quais Walsh não deixa julgamentos na imagem. Exemplo notável: o casal de vizinhos Gloria e Johnny. Em uma espécie de jogo invertido dos papéis sociais, é Gloria que gosta de sair na noite e paquerar o sexo oposto, enquanto Johnny sempre fica com os bebês, com afeto e dedicação raramente vistos no cinema – e tendo seu físico observado, avaliado e comentado pelas vizinhas no meio tempo. No entanto, Walsh não faz julgamentos destas condutas, apenas deixa-as serem vistas à plateia. Apesar da morte trágica de Gloria poder ser vista como um indicativo da moral dos anos 1940, ela ocorre de forma tão abrupta e quase “escondida” do espectador que traz mais o inesperado da vida do que uma conclusão moralista – e a maneira como filma Dolores Moran, nunca caricatural, prova que Walsh está ao seu lado.

Um grande cineasta não simplifica as complexidades do mundo, mas as traz à tona para a plateia, revelando-o. Paixões e relacionamentos são, em essência, complexos. Em “Meu único amor”, recusam-se saídas fáceis. Na última cena, de despedida, repleta de dor, há também uma alegria do que se viveu, de triunfo por caminhar adiante – confundindo-se a personagem e também a atriz, em direção a novos desafios. Certo está Louis Skorecki ao dizer: “é preciso amar Walsh porque ele ajuda-nos a melhor ver o mundo”.

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