por Waleska Antunes
lá além de qualquer zona proibida
há um espelho para nossa triste transparência
- Alejandra Pizarnik
A associação direta entre Rainer Werner Fassbinder e o melodrama de Douglas Sirk é, para além do usual em termos de crítica, uma aproximação muito mais direta com o cinema americano do que com seus contemporâneos. Entre o intelectualismo academicista de Alexander Kluge, o ruído das cidades de Wenders, o cinema como margem social de Helke Sander e Margarethe Von Trotta e a ida às selvas de Herzog, Fassbinder, tão oberhausiano quanto os acima citados, pega a via mais anárquica: o melodrama brechtiano, a estilização e o histrionismo unidos em uma eterna tensão entre o individual e o coletivo.
Não obstante, em grande maioria, os indivíduos de Fassbinder se deparam com a alienação entre si e o mundo. Franz Biberkopf sai da cadeia em Berlin Alexanderplatz para um mundo que não é o seu; Petra von Kant vive aos espelhos de uma casa feita de memórias; Franz morre como um Cristo crucificado em meio à estação de trem em O Direito do Mais Forte. Os exemplos são vastos, tão vastos como a própria filmografia de Fassbinder, um homem que morreu escrevendo.
A alienação como forma de representação é, antes de tudo, o que faz de Fassbinder ser Fassbinder. Das janelas dos quartos às prisões aos amplos espaços dados na mise-en-scène, os rostos em agonia eterna refletidos em espelhos (convém dizer que o maior trunfo de Rainer Werner em toda a sua carreira foi saber enquadrar três ou quatro camadas de uma cena utilizando um único espelho e a encenação vinda do teatro, vide em Precauções de Uma Prostituta Santa, onde um bar se torna um tabuleiro de xadrez emocional somente pelo reflexo dos personagens andando pelo espelho) ou os corpos jogados nas escadas ou nas estações de trem, tudo há um motivo de ser. Ao mesmo tempo, o melodrama não é aqui um simples maneirismo e sim, um sinal dos tempos. Veronika Voss, o segundo dos filmes da trilogia BDR, versa sobre uma atriz decadente da época nazista às raias do enlouquecimento. E sobre isso, podemos tomar dois caminhos possíveis: 1) a Trilogia BDR (onde estão inseridos O Casamento de Maria Braun, Veronika Voss e Lola, para discutir a Alemanha nazista sob a ótica de três personagens em diferentes posições), antes de mais nada, inserem no melodrama avant la lettre um contexto político e social também próprios dos anos 70 e 80 de extrema vigilância social que, por mais que aparente ter um verniz de milagre econômico de um pós guerra, esconde um estado entre tensões - basta ver a atuação de movimentos sociais como a RAF e o impacto nas cinematografias e representações midiáticas da época - e tira o passado alemão para baixo do tapete. Serge Daney, em um artigo para o jornal Libération, nos diz: antes de Fassbinder, se convivia somente com essa sombra de uma Alemanha nazista, uma besta imunda; depois de Fassbinder, nos cabe a pergunta: como se ignorou tamanha imundície por tanto tempo?
Essa sombra imunda, em Veronika Voss, se dá por uma mulher presa a uma falsa ideia de verdade; uma falsa atriz vivendo sob uma falsa redoma de vidro, incensada em falsas boas intenções de falsos médicos oferecendo falsas saídas: a morfina, a internação não compulsória, cercada de luzes e refletores que nada significam. A figura de Robert Krohn, o jornalista esportivo que é sugado para o vórtice artificial de Voss, o único que tenta puxar o rosto da mulher à claridade, se demonstra no fim do dia tão apenas um jornalista interessado no desespero e na miséria humana dessa mulher.
Fassbinder pode se aproximar de Sternberg em The Blue Angel, Wilder em Sunset Boulevard ou de Sirk em Imitation of Life, mas a aproximação mais insólita (e talvez mais possível) seja com Cidadão Kane, de Orson Welles, onde a construção da figura mitômana de Kane se dá em uma progressão onde a solidão é a consequência da megalomania exacerbada; em Veronika Voss, a megalomania exacerbada é a própria encarnação e vida da personagem. Kane era um homem bom e a vida o corrompeu. Veronika Voss nasce corrompida, e não há nada que a salve dela mesma. Não há um Rosebud possível. Em Fassbinder, não há deuses ou salvações: há o desespero que é existir.
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