segunda-feira, 5 de setembro de 2022

O Pecado de Cluny Brown (1946)

por João Bénard da Costa


O título português desta obra, dá um pouco que pensar. Não se sabe se o tradutor fez prosa sem saber ou foi mais subtil que a maior parte dos críticos da época. Efectivamente, Cluny Brown nada faz no filme que possa ser classificado, de perto ou de longe, como um "pecado"; efectivamente, o filme de nada mais fala que do pecado, não do que ela faz, mas do que ela é. Se o título fosse mais exacto, não ficaria mal esta obra chamar-se não O Pecado de Cluny Brown mas O Pecado Cluny Brown. Porquê?

Nesta história, das mais insólitas que Lubitsch alguma vez contou, a protagonista surge-nos associada a duas preocupações maiores: encontrar o seu lugar, como o tio sempre lhe disse, e encontrar-se no lugar da profissão do tio, retirando o máximo prazer da acção de desentupir canalizações entupidas. Aparentemente, nada há nessa inquietação e nesse gosto de pecaminoso: realmente, introduz-se uma profunda inquietação de cada vez que Cluny Brown arregaça as mangas e avança, alegre e inocentemente, para as cozinhas ou para as casas de banho, a resolver esse pequeno problema doméstico. Perturbação que, no dia dos anos da futura sogra, é tão grande que lhe escangalha o casamento e lhe arruína a reputação. Para lá da ironia lubitschiana da situação (confronto entre a fachada puritana da família do farmacêutico ou dos lordes ingleses e a "naturalidade" de Jennifer Jones), tornando eventualmente chocante um episódio bem inocente, perfila-se uma segunda leitura (pontuada, na sequência inicial, pelo plano sobre o lava-loiças pejado de detritos) que é efetivamente chocante e nada tem de inocente. A imagem da porcaria contamina imediatamente Jennifer Jones, tornando-a uma mancha naquele mundo de fachada impecável. Ela não faz pecados, ela é um pecado: eis o que, numa das suas supremas elipses – elipse que constitui um filme – Lubitsch nos diz, nesta obra sobre o lugar do "porco" e do "limpo", da medida e da desmedida, da regra e da desregra.

Não é nada indiferente que esse lugar de pecado seja uma mulher com a aparência de Jennifer Jones (provavelmente, o efeito seria anulado, se o canalizador, como esperava o proprietário da primeira casa, fosse um homem). Não é nada indiferente que a acção se situe em Inglaterra, lugar por excelência da "limpeza", da "medida" e do "vitorianismo", naqueles assombrosos décors, onde o supremo tabu é, por definição, a referência a qualquer orgânica necessidade; não é nada indiferente que o tempo do filme seja o do imediato pré-guerra (1938), quando a sociedade inglesa estava nas vésperas de ser contaminada pelo mal nazi; não é nada indiferente que o único cúmplice de Cluny Brown, Adam Belinski, seja um estrangeiro, uma vítima do nazismo e comece por ser confundido com o esperado canalizador.

Logo nessa sequência inicial se estabelece, em torno do problema de lugar que tanto preocupa Jennifer Jones (enquanto está agachada debaixo do lava-loiças) a cumplicidade entre ela e Boyer. À transgressão de Jones, junta Boyer a transgressão verbal explicando-lhe a indiferença dos lugares e a permutabilidade entre as frases "nozes para os esquilos" ou "esquilos para as nozes" que, na sequência perto do fim, quando Jones vai ter com Boyer ao comboio, permite a este a plena revelação (associada ao tema da roupa de baixo).

Dessa inicial sequência de canalizadores, passamos para o solar e para Jones criada. A entrada desta em casa dos patrões é um dos momentos mais admiráveis do filme, e, provavelmente, poucas obras, mesmo em parâmetros ideológicos que Lubitsch não tinha, nos terão dito tanto sobre o estatuto e relações de classes. Porque Jones é confundida com uma "aventura" do velho coronel, personagem cujo estatuto implicava a tolerância para tais situações. Isto lhe permite sentar-se à mesa, tomar chá e, sobretudo – facto mais chocante – comer muito, o que torna cada vez mais surpreendente, aos olhos dos lordes, a sua associação ao coronel, mesmo como aventura dum dia. E quando finalmente Cluny Brown revela ao que vem, a imperceptível mudança (mas para ela decisiva) explica, finalmente, pela sua classe, o seu mistério, que é fundamentalmente o mistério do prazer. Depois, é a portentosa oposição ao mundo dos velhos mordomos (a relação entre a cozinheira e o mordomo é uma das mais geniais "maldades" de Lubitsch) e a cena em que Jones serve o jantar, tornando-se culpada da única gaffe indesculpável: ter explicado ao patrão que havia na peça de carne bocados melhores e bocados piores e que devia escolher os primeiros e não os segundos. Em torno da comida, prossegue a alusão que tinha começado em torno dos detritos: a história é a mesma. História a que vários contrastes – a casa do farmacêutico, o episódio amoroso entre Betty e o filho dos donos da casa, com os gritos e a impecável intervenção da sogra – vão conferindo maior peso elíptico, dando sempre o avesso de um direito jamais mostrado para, em termos convencionais, mostrar o direito de um avesso jamais exibido. E chegamos à segunda sequência de canalização, do dia do anúncio de casamento, em que o único cúmplice de Cluny é o miúdo e em que o presente de anos (a acção de dar prazer) se transforma na desgraça da protagonista. Para lá de tudo o que faz rir e do monumento de mise-en-scène que essa sequência é, Lubitsch retira as últimas dúvidas sobre a falta de lugar de Cluny Brown. Lugar que só encontrará no fim, na América, vestida de peles, entre novas associações não menos escabrosas: o romance policial e os ataques dos rouxinóis (nightingale em inglês, com a implícita alusão à vitória da noite sobre o dia, do mundo da criada e do exilado sobre o das ordenadas e limpas vidas que antes víramos).

A propósito de Heaven Can Wait (e recorde-se que esse filme e este são as duas últimas obras de Lubitsch) escrevi que o riso do autor se ia progressivamente gelando e recordei La Règle du Jeu de Renoir. Cluny Brown tem mais uma vez que ver com isso. O típico mundo lubitschiano, da plenitude de todos os instantes e da riqueza e variedade de histórias e personagens, atinge nesta obra magistral um despojamento deveras surpreendente. Já se disse que ele era "o lado oculto" de uma obra de que os outros filmes seriam o lado visível. Talvez seja melhor dizer que, ultrapassando o artifício da ilusão, Lubitsch se concentrou na ilusão do artifício: uma história em que quase se não passa nada, personagens quase sem história e a elipse a invadir todo o filme tornando-o progressivamente silencioso e fantomático. Por isso, talvez, este é um filme sem música, por isso, talvez este é o filme de Lubitsch em que a câmara menos se move e em que o vazio ocupa mais lugar. Cineasta tão ligado ao prazer e à carne, é sintomático que tenha terminado filmando o tabu desse prazer e dessa carne, ou o grande escândalo – o pecado – da sua jamais pacífica coexistência.

Texto em português de Portugal, escrito antes do Acordo Ortográfico em vigor e mantido conforme original. Retirado de http://www.cinemateca.pt/programacao.aspx?ciclo=1202.

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