sexta-feira, 24 de março de 2023

Joan Crawford: venha a nós o vosso nada

por João Bénard da Costa

Começo com um protesto, em forma de queixa. Seja a única queixa desta crónica, a única queixa a Joan Crawford ou de Joan Crawford, eu que até julgo que tenho mais razões para me queixar dela do que ela para se queixar de mim. É que não é verdade – não é verdade mesmo – que eu tenha me apaixonado por Joan Crawford por ter me apaixonado por Vienna. Quem acha incompreensível esta paixão – e, ai de mim, são ainda tantos – desculpa-me por este lado. Julgando conhecerem-me como me conhecem, sabendo que, quando amo, amo tudo e fico cego, percebem – ou pensam perceber – que não podia amar tanto o Johnny Guitar, excluindo desse assolapamento, Vienna, paixão de Johnny e mais do Johnny corda e acorde do Guitar.

Nesta matéria – matéria? – não admito mal-entendidos. Não está em causa, nem poderia estar, a Vienna de Crawford, de Ray, de Logan, do Dancing Kid, de Turkey, de Carradine. Só se pode esquecer dela quem não se lembra de nada e só não se lembra de nada quem pode esquecer de Vienna. Mas se Joan Crawford está toda em Vienna, nem toda a Joan Crawford está em Vienna. O maior mistério desta mulher não é ter sido de muitos, mas ter sido muitas, tantas que, dela, só pode vir a nós o nosso nada.

Que idade tinha Joan Crawford quando fez Vienna? Se for verdade que nasceu a 23 de março de 1904 – ninguém jura pela veracidade – estaria muito perto dos 50. O Johnny dela – Sterling Hayden – era doze anos mais novo. Dá-se por isso no filme? Só quem também reparar que a cascata não bate certo. Não os invejo. Aquela mulher não tem idade, tem tempo. Nenhuma idade e todo o tempo. E só comparando a memória de Vienna com a memória de outras Crawford – 20 ou 30 anos antes – reparamos como aumentaram os olhos e a boca, como o oval se dissolveu nos ângulos, como os ombros entregaram ostentação à cara. Não é como Marlene, um milagre de conservação, é um milagre de transfiguração.

Ao longo de décadas, os estúdios mudaram-lhe quase tudo. Mudaram-lhe os penteados, mudaram-lhe as sobrancelhas, mudaram-lhe as pestanas (lembram-se daquela incrível fotografia dela, de pestanas postiças, dos princípios dos anos 30?), mudaram-lhe o desenho da boca, mudaram-lhe o nariz. Só não mudaram os olhos e os olhos foram os mais espantosos que Hollywood alguma vez filmou. São raríssimas as mulheres assim, em que a retina escura é apenas o centro de uma imensidade de branco, sobretudo por debaixo dela, formando um halo que lhes dissolve a cor para reforçar o brilho. Tão pouco que interessa saber de que cor são os olhos de Crawford. Sabemos, sim, que nunca outros vimos com mais luz.

Ao princípio (filmes dos anos 20, ainda mudos) o rosto fulgurante da actriz era apenas a coroação de um corpo esplêndido, esplendidamente solto, corpo de bailarina que, por esses anos, sobretudo foi. A pouco e pouco, esse corpo foi-se apagando e ao tempo de Johnny Guitar – em que foi filmada quase sempre de calças, ou então no apoteótico vestido branco comprido – é um castiçal, onde se segura o rosto-vela, parecendo sobretudo figura de suporte. A sequência em que as chamas se lhe pegam aos vestidos é quase pleonástica, como se da sarça ardente ficasse apenas, convulso e equestre, o rosto feito para emergir das chamas.

Não conheço mulher mais paradoxal e mais contraditória. Nos anos 30, o seu remado parecia tão mais triunfal quanto efémero. Mais do que qualquer das grandes stars da década – muito mais do que Garbo, por exemplo – parecia destinada a apagar-se quando a sua irradiação se extinguisse. Nos fins dos anos 30 já lhe chamavam de box-office poison e os cronistas cantavam-lhe o ocaso. Afinal, todas as outras se sumiram no limiar dos forties e só ela – após dois difíceis anos entre 1943 e 1945, em que a deram por extinta – ressurgiu imensa, no ano do fim da guerra, para esse espantoso papel de Mildred Pierce (Curtiz) que lhe valeu o primeiro – e único – Oscar. Foi só então que Hedda Hopper percebeu e escreveu “Não será certamente por culpa dela que Joan Crawford não fará mais de 50 filmes antes de morrer”. Andou lá perto.

Ao princípio – e o princípio data de 1924 – pareceu uma mulher totalmente perdida e totalmente dada, com uma agressividade superficial e um erotismo fundamente interiorizado. Parecia um ser tocado pela fragilidade e pela morte, coberto de medo e insegurança, ávido mais de morte que de vida. Em The Unknown (Tod Browning, 1927), Lon Chaney só lhe via a alma e cortava os braços e as pernas, acreditando que era o corpo dele o que a assustava. Parecia que sim, como mais tarde pareceu que sim aos que a acusavam de frígida, nesses filmes dos finais do mudo, em que a Joan Crawford ocultou a voracidade e a avidez na fragilidade e na inocência. Tão branca, tão branda, como o branco e o brando dos seus olhos.

Quem lhe conhecia a história? Quem sabia que aos seis anos passara um ano na cama, por causa de um pé partido e, depois, se forçara a lições de dança para vencer essa marca? Quem conhecia todas as suas frustrações de menina pobre, todos os anos passados em cabarés duvidosos, sob o nome com que nascera – Lucille le Sueur – ou sob o primeiro pseudónimo de Biüie Cassin? Tinham-lhe troçado da boca (“boca de preta” “a segunda maior boca de Hollywood a seguir à de Joe E. Brown”), tinham-lhe troçado dos ombros, que fariam inveja aos de Johnny Weissmuller. Engoliu tudo, fez de todas as fraquezas forças e conquistou o triunfo palmo a palmo, entre 1925 e 1928, ano de Our Dancing Daughters(Harry Beaumont), seu primeiro grande êxito.

Mas esta mulher foi feita de medo e de culpa. Os innocent eyes do início não eram simulação, mas perdição. Por isso, quando chegou o sonoro, pôde transmudar-se – na primeira de suas metamorfoses – e de blushing bride, que ainda fora em 1930 (em novo filme de Beaumont), passou a Mary Turner, a mulher paul do filme homónimo de Sam Wood, ávida de vingança e reconhecimento.

Foi o início de sete anos de shinning hours, quase sempre devorada por demónios interiores, exibindo o luxo e a luxúria tanto quanto as cinzas do arrependimento. Nunca se sabia, com ela, onde acabava a sede de sensações e começava a sede de sentimentos. Capaz de ir ao fundo de tudo, fixava as presas com o olhar imenso de moreia, paralisando-as numa fixidez que nela era tanto natureza como fatalidade. São os anos de seus casamentos com actores célebres e vulneráveis (Douglas Fairbanks Jr., Franchot Tone), são os anos do seu famoso par com Clark Gable. Era a única mulher capaz de desconcertar o “King”, tão capaz de lhe dizer (Chained, de Clarence Brown, em 1934) “afasta-te de mim porque não sabes o mal que há em mim” como de lhe perguntar (Possessed, do mesmo Clarence Brown, em 1931): “Se tu não sabes de mim, quem mais poderá saber?” E, em qualquer dos filmes, acabou a dizer “I’m lost, I’m lost” como se sempre a última tábua de salvação lhe fosse arrancada por culpa de homens que a não souberam amar e não por culpa dela. Strange Cargo. Quem hoje pode dizer que não fosse verdade? Today we live era um filme de Hawks, com Gary Cooper. Mas, se aconteceu dessa vez, muitos mais foram os melodramas de Borzage que dela deram a ver os amanhãs em que morreu. Ao contrário da Jeanne Moreau de Truffaut (essa Jeanne Moreau que talvez inconscientemente a tenha procurado como modelo), as noivas de Crawford não se vestiam de luto mas de encarnado, e bebiam por copos dessa cor bebidas de azul-cobalto que não existem.

Com elas, as árvores vestiam-se de púrpura e o sol era sangue espesso em flor.

Em 1937, falou de retirar-se e ficar a ver-se em filmes. And then I wish I could crowl away and die”. Era impossível com ela. “At that critical moment, I set my sights on the part of Crystal, the hard-boiled perfume clerk who uses every wile to catch another woman’s husband”. Foi em The Women de Cukor (1940), esse Cukor que presidiu à terceira metamorfose, a que mostrou, cada vez mais ávida, cicatriz do mal numa Woman’s face (Arme Holm, 1941). 

É nessa altura – depois dessa altura – que cada vez mais o vulto dela – tão feminino quanto masculino – pareceu ecoar essa belíssima oração do nada, escrita por Hemingway por sítios limpos e bem iluminados.

Penso em Mildred Pierce, penso em Humoresque, penso em Daisy Kenyone. Pergunto-me, como Hemingway, de que teria ela medo. E sei que não era medo nem pavor. Era qualquer coisa que ela conhecia muito bem. Era o nada (...) Nada y pues nada y nada y pues nada. “Nada nosso que estais no nada, nada seja o vosso nome, venha a nós o vosso nada, seja feita o vosso nada assim no nada como no nada”. Só ela e só os olhos dela, dos forties e dos fifties, eram capazes de dizer essa oração e, depois, sorrir, entrar em um bar, sentar-se diante de uma luzidia máquina de café e responder ao barman que lhe perguntava o que é que queria tomar. – Nada.

Assim voltou vezes sem conta, vezes que não conto. Apoderou-se do único fantasma dos thirties que não habitara – Bette Davis – e nos filmes finais aguentou esse ódio de megera, harpia de um passado convulso, nos pesadelos de Aldrich, desfigurada e cada vez mais enorme. Mas foi a única mulher, a única actriz, que, em todas as metástases como em todos os focos, foi capaz de dizer I want to stand. E quis. E ficou.

Poucas – talvez nenhumas – foram amadas e odiadas como ela, de poucas – talvez nenhumas – se tenha traçado mais odioso que esse que a própria filha lhe pintou em Mommy Dearest e que foi base do filme em que Faye Dunaway a tentou odiosamente reviver, em 1981, quatro anos depois da morte dela, a 13 de maio de 1977.

Não sei se há mais verdade nesse ódio do que nesta paixão. E o retrato mais difícil de pintar, como aconteceu aos raros que deram tudo o que perderam e ficaram a ouvir estragos e frutos, de ouvido encostado à terra e olhar enxuto. Feixe disperso, Joan Crawford foi tanto projector como coisa projectada. Para a ver, é preciso desfocar. Só assim tudo ficou maior quando a olharam e tudo foi maior porque a olharam.

Espaço, vida e tempo foram três pólos de um triângulo que nele fez o ângulo errado”. Sei que quem escreveu isto o escreveu sobre ela. Parece-me obscuro e não estou nada certo de o ter percebido. Mas, obscuramente, percebo que no que não percebo está o mapa desta paixão.


Texto disponível no livro "Joan Crawford", organização de Rita Azevedo Gomes. Lisboa: Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema, 2004. Mantivemos a escrita no original, sem alterações. As duas primeiras imagens pertencem a "Humoresque", a última a "The Damned don't cry".

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