sexta-feira, 29 de março de 2013

O INTRUSO


Claire Denis, L'intrus, França, 2004

Quando, ao olhar para um lugar, a vontade de ser absorvido por ele é maior do que a vontade de organizá-lo, resta interromper a narratividade (o olhar, em si, não organiza o espaço de maneira narrativa/descritiva) e se entregar à embriaguez visual. O Intruso, grandioso filme com que Claire Denis agora nos presenteia, compõe-se justamente desse movimento circular e inconcluso do ato de ver. O mundo é trazido à tela em toda sua inextensão (de formas, de sensações, de relações interpessoais) e brutalidade. Quanto mais esvoaçantes os significados, mais vigorosos os sentimentos despertados pela cena: assim opera a lógica de O Intruso. O filme planta situações misteriosas, porém não tira delas sua tendência de movimento, pois rejeita a intriga – e rejeita os signos integralmente visíveis. Louis (Michel Subor), o personagem principal, possui claramente um passado de envolvimento com atividades de risco. Sabemos também que ele possui um filho taitiano, em busca do qual se lançará na parte final do filme, e um filho que mora perto, mas para quem não liga. Sua vida é complexa o suficiente para que, uma vez caídos de pára-quedas na sua fase avançada, não consigamos compreendê-la. 

Louis se sente perseguido e vigiado, chegando a possuir uma sombra, a personagem de Katia Golubeva, cujas aparições são quase fantasmáticas. Golubeva, a bem da verdade, já tinha ensaiado essa atividade de espionagem em Noites Sem Dormir, de1993, filme em que Denis a coloca perseguindo – por conta própria e sem nenhum motivo além da pura escopofilia – o personagem de Alex Descas (o padre que reza a missa de enterro na primeira parte de O Intruso). Descas, em Noites Sem Dormir, era um transformista, fazia performances num clube noturno, e ainda posava para fotos artísticas. Mesmo no cotidiano, ele tinha a capacidade de ser um polarizador de olhares. E se há uma interrogação que se encontra em quase todos os planos filmados por Denis, ela diz respeito à forma de olhar.

Há até um falso clima de thriller corporativo em O Intruso, o que se corrobora quando Louis manda e-mails em russo, sabe-se lá para quem, anunciando mudanças radicais de planos, ou quando negocia com empresários sul-coreanos algo que gira em torno de um navio (e que soa como lavagem de dinheiro). É possível também sentir um quê do David Lynch de Twin Peaks – Os Últimos Dias de Laura Palmer na primeira parte desse filme – no que pesa em muito o excelente tema musical que toca recorrentemente em O Intruso, com acordes de guitarra ecoantes e solos de sopro que lembram as trilhas do filme de Lynch. Mas não há em O Intruso nem metade do trabalho lynchiano em cima da iconicidade de algumas figuras caras ao cinema policial e de mistério. A tendência de Claire Denis é igualmente (em relação a Lynch) sensorialista e profundamente naturalista (menos no sentido de realista do que no de integrado à natureza física das coisas).

A entrada em cena de Béatrice Dalle, que nos créditos finais aparece como "a rainha do hemisfério do norte" (o que, convenhamos, por si só já faz deste filme um objeto para ser olhado de forma bem cuidadosa), consiste nela alimentando seus cães com pedaços de carne crua, enquanto Louis a observa de perto. "Está me espionando?", ela pergunta. Baseado no livro homônimo do filósofo Jean-Luc Nancy, O Intruso é, sim, um filme de espionagem. Mas não por se atrelar a três ou quatro convenções de gênero e montar um esquema narrativo que se locupleta na articulação matemática de peças. A vigilância em O Intruso não é aquela das teorias conspiratórias. Vigiar neste filme significa observar atentamente, buscar uma posição em que se multiplique o coeficiente de absorção do olhar, ou seja, potencializar a resposta do meio-ambiente ao filme. Não há um só plano de paisagem em O Intruso que não esteja impregnado de vida, assim como não há um só corpo filmado que não apresente uma marca de contato com o tempo ou com outros seres. A cicatriz que fica no peito de Louis após o transplante cardíaco é a inscrição do tempo nele. Mais do que as pintas e os sinais que brotam espontaneamente, aquela cicatriz representa uma intervenção violenta do tempo e do histórico pessoal de vida.

Dalle, que em Trouble Every Day (filme-perturbação dos mais impressionantes) interpretara uma canibal, condensa aqui todo o propósito naturalista e carnal do filme, e mesmo do projeto de cinema de Claire Denis: uma mulher que vive em meio à natureza e aos animais, sendo guiada pela corrida feroz e instintiva que eles promovem na cena final. A película utilizada em O Intruso (possivelmente, o melhor trabalho de fotografia de Agnès Godard) favorece, na maioria das cenas, uma imagem límpida, sem granulação excessiva – a textura que ela quer ressaltar está nos corpos e nas superfícies filmadas, não devendo ser sobrepujada pela textura da imagem em si (se é que estamos falando de uma separação possível). Já emSexta-feira à Noite Claire Denis parecia querer radicalizar a proximidade entre os corpos que filmava, limitar-lhes o local de ação de modo a não haver mais separação física. Em Trouble Every Day, nem se fala: os personagens praticam canibalismo, incorporam pedaços do outro ao seu metabolismo. E em O Intruso isso reaparece extraordinariamente, acentuando a indistinção entre um e outro ser, entre os signos exteriores e a representação que deles pode surgir. Essa fluidez, esse espaço de co-ocupação indeterminável e essa aproximação sem comedimento são características da intimidade. Logo no começo ocorre uma das melhores cenas do filme, com o filho de Louis (Grégoire Colin) fantasiando uma hipnose enquanto despe a esposa e a excita, tudo sendo filmado, logicamente, com a câmera quase aderindo à pele dos dois. Cabem nos dedos de uma mão os cineastas que, como Claire Denis, conseguem se sentir em casa filmando a fantasia íntima de um casal.

O filme culmina na visão do corpo em seu estado mais opaco: o cadáver, que é imediatamente submetido à autópsia (o "vamos ver o que tem dentro"). Antes, contudo, havia sido mostrada uma anatomia coletiva e em vida: vários rapazes se revezam perante os representantes de uma mesa que julga, através tão-somente dos seus sinais superficiais, quem melhor se adequará ao papel do filho de Louis, àquela altura hospitalizado. Mas esse último obviamente percebe a encenação e dispensa o rapaz, que será mostrado ainda perambulando pela cidade (um quase-filho, um quase-personagem). Louis sai em busca de um filho vivo, não o encontra, e faz a viagem de volta com o cadáver do outro filho (desvelado num plano deslumbrante, com a câmera se deixando levar pelo movimento da onda até chegar ao corpo que rola na areia da praia). Quem o acompanha no navio, servindo-lhe café pela manhã, é o "candidato a filho" que o havia visitado no hospital.

O Intruso traz um princípio de ambigüidade que não é ferido em momento algum. Claire Denis é uma espiã do espaço e do corpo. Em O Intruso ela constrói três paisagens totalmente diferentes e causa o mesmo grau de imersão nas três. Desde as montanhas do início ao mar refrescante do final, passando pela cidade plena de prazeres mundanos e noturnos, o filme consegue nos transportar para onde quer e como quer. Os movimentos também são buscados em sua singularidade: se um personagem anda de bicicleta, a câmera desliza ao lado dele; se um personagem caminha a pé pelo mato, a câmara na mão o acompanha próximo da nuca, quase sentindo o cheiro de seu suor; se Béatrice Dalle anda de trenó, a câmara lá se posiciona e incorpora o frenesi da descida.

O tipo de enquadramento de Denis implica uma visão sempre parcial, sempre deixando sobras para além das bordas da imagem. Como não é nenhuma novidade em sua obra, ela recorre ao primeiro plano incessantemente, filma pedaços de tudo – e, em se tratando de um filme rodado em cinemascope, esse efeito é ainda mais complexo. Mas esses pedaços não são figuras metonímicas; não é a parte pelo todo, e sim a parte pela parte. A diretora lida com uma espantosa tensão nos registros, tamanha a imprevisibilidade de sua decupagem. A opção por flashbacks que são tirados de imagens de um outro filme (Le Reflux, de Paul Gégauff, 1962), para mostrar a chegada de Louis ainda jovem à ilha, revela uma arqueologia textual que é também a afirmação de algo que tanto precede quanto sucede a passagem do homem – logo, do filme – pelo espaço.

As imagens que ficam de O Intruso são as imagens que ficam de qualquer visita a um local que nos provoca. O mar, o céu, o horizonte, as árvores que balançam ao vento, os homens que se aventuram nesse mundo: tudo isso nos ultrapassa, felizmente. Enquanto forem irredutíveis ao enquadramento – e Claire Denis parece escolher os melhores e mais inusitados ângulos sobre qualquer evento ou objeto –, essas paisagens serão plenas de vida, e a fascinação que provocam será infinita. Brindemos a isso.

Luiz Carlos Oliveira Jr.
(Originalmente publicado emhttp://www.contracampo.com.br/64/ointruso.htm)

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