O
que há de comum entre a seqüência do “peep-show” de Paris-Texas, um plano seqüência alongado de Estranhos no Paraíso, um plano acrobático de O Elemento do Crime, a balada noturna à beira do Sena em Boy Meets Girl e tal plano de L’Enfant secret refilmado diretamente da
tela da mesa de montagem? Nada, a não ser a consciência que atravessa esses
cineastas, ao menos no momento em que ele fazem esses planos, que o cinema tem
90anos, que sua época clássica já passou há vinte anos e que sua época moderna
acaba de terminar no fim dos anos 70. O que pesa muito pesado ao mesmo tempo no
desejo e na dificuldade de inventar um plano de cinema hoje.
A
esse desejo e essa dificuldade, cada um procura sua resposta, infeliz ou
arrogante mas numa relativa solidão em relação a seus contemporâneos na criação
cinematográfica. Wenders inventa para si mesmo um dispositivo bastante
complicado de vidro e de telefone para chegar a simplesmente filmar um
campo-contracampo entre um homem e uma mulher como o cinema americano dos anos
50 fazia uma dúzia a cada doze vezes, mas ele tem necessidade dessa prótese
para reencontrar a figura mais “natural” do cinema clássico. Jim Jarmusch
escolhe filmar como se o velho cinema moderno dos anos 60-80 fosse ainda seu
contemporâneo. Lars Von Trier tenta se confrontar, com trinta anos de
defasagem, com o mistério da construção em abismo dos filmes barrocos de Orson
Welles. Leos Carax reinventa sob as estrelas de 1984 a poesia do “travelling de
ator” que Cocteau descobria em 1949 no segredo de uma bricolagem de estúdio.
Philippe Garrel, refilmando ao mesmo tempo a imagem (em câmera lenta) e o
despolido da mesa de montagem integra em seu filme uma distorção deliberada de
suas próprias imagens.
O momento maneirista
Podemos
apreciar diversamente (é mesmo o caso entre nós) esses filmes, mas eles são
todos, ao menos, estimáveis, e testemunham a evidência de um real amor pelo
cinema e um projeto estético ambicioso que os coloca fora do lote comum dos
produtos acadêmicos ou estandardizados. Se eu escolhi esses cinco – mas haveria
muitos outros, igualmente legítimos, de Ruiz a Rivette – para introduzir esta
reflexão sobre o maneirismo, é porque a palavra aparece num contexto que a
situa de partida fora de toda conotação depreciativa. Tornou-se indispensável
colocar a questão do maneirismo para compreender o que está se passando no
cinema desde o começo dos anos 80. Eu mesmo tentei começar a fazê-lo aqui mesmo
(Le vrai, le faux, le factice,
Cahiers nº351; Le cinéma d’après,
Cahiers nº360-1), convencido de que não se trata de forma alguma de uma questão
escolástica.
Mas
antes de qualquer julgamento de valor, antes mesmo de estabelecer as distinções
mais finas entre filmes maneiristas e filmes maneirados, a questão do
maneirismo pede para ser colocada fora de toda avaliação, em relação a esse
momento da história do cinema em que nós entramos desde o fim do cinema
moderno. Nenhuma dúvida de que já houvesse, em todos as épocas da história do
cinema, temperamentos maneiristas e que seria de fato esclarecedor desenvolver
um dia esse fio do maneirismo, na tessitura serrada da história do cinema em
que ele se encontra ainda bem dissimulado. (Ao longo da entrevista que tivemos
com Patrick Mauriès a respeito do maneirismo[1],
apareceram nomes tão inesperados quanto o de Eisenstein). Mas não é essa
perspectiva diacrônica que nos interessa nesse momento. A questão do maneirismo
impôs-se a nós antes de tudo através de alguns filmes recentes. O que nos
incitou a retornar (com a ajuda preciosa, entre outros, do livro de Patrick
Mauriès Maniéristes[2]) à
origem histórica da noção de maneirismo em pintura, e repensar esse momento da
história do cinema que nós estamos prestes a atravessar em suas similitudes com
esse momento histórico da pintura ocidental, no final do Quattrocento, que
constituiu o Maneirismo histórico. Ele se caracteriza pelo sentimento que
tiveram pintores como Pontormo ou Parmigianino de chegarem “tarde demais”,
depois que um ciclo da história de sua arte tenha sido completado e uma certa
perfeição atingida pelos mestres que lhes tinham precedido de perto como
Michelangelo ou Rafael, a “Maneira” se constituindo como uma das respostas
possíveis (com o Academicismo e o Barroco) a esse esmagador passado próximo. “O
maneirismo”, escreve Patrick Mauriès, “se situaria, desde a origem, à beira, no
limite de uma ‘maturidade’ que teria concretizado todas as suas potências,
queimado seus estoques secretos”.
Uma defasagem de vinte anos
Se
partimos dessa definição da “situação” do momento maneirista na história de uma
arte, parece que logicamente esse momento chegou na França com vinte anos de
defasagem e que a geração destinada ao maneirismo deveria ter sido a da
Nouvelle Vague. Inicialmente porque a Nouvelle Vague foi a primeira geração de
cineastas cinéfilos. Em seguida porque ela apareceu no final dos anos 50, ou
seja, precisamente no fim dessa “maturidade” que constituiu para o cinema sua
era clássica, no momento do abandono dos gêneros e da pulverização do público
de massa pela televisão. Enfim, porque antes de realizarem seus primeiros
filmes, quando eles eram críticos, os futuros cineastas da Nouvelle Vague
escolheram mestres difíceis de superar. Hitchcock poderia ter sido o
Michelangelo deles, e Hawks, seu Rafael. Mas essa admiração dos Mestres,
curiosamente, não agiu sobre eles como consciência de um passado esmagador que
os teria levado a ser os maneiristas dessa excelência, por eles teorizada, de
um Hitchcock ou de um Renoir. Rohmer enunciava aqui mesmo esse paradoxo
(Cahiers nº323-324): “É uma das coisas que distinguem os diretores da Nouvelle
Vague dos outros: os diretores da Nouvelle Vague, que são críticos e teóricos,
não funcionam assim quando eles filmam, ao passo que muitos diretores mais
profissionais (...) tornam-se teóricos quando eles fazem seus filmes. Tem-se a
impressão de que eles pensam: eis aqui um belo plano, e eles são capazes de
justificar esse plano através de considerações históricas teóricas. Ao passo
que aqueles da Nouvelle Vague, paradoxalmente, funcionam de forma mais
instintiva”. É verdade que os cineastas da Nouvelle Vague tiveram a sabedoria
intuitiva de darem a si mesmos mestres quase antinômicos. Consideremos seus
quatro ases: Hitchcock, Hawks, Renoir, Rossellini. Malraux distingue a
demiurgia e a estilização para estabelecer a diferença entre os maneiristas e
seus mestres: “O que dá aos maneiristas tradicionais sua característica
própria, é o questionamento da demiurgia pela estilização... Michelangelo
deseja que sua arte seja mais verdadeira que a aparência, eles (os maneiristas)
desejam somente que a sua arte seja manifestamente distinta desta. Mesmo a
Virgem com o pescoço longo de Parmesan, comparada a uma Virgem de Rafael, de
Leonardo, ganha um toque de coquillage e
ourivesaria. Uma das características essenciais do maneirismo, na Itália, e
depois na Europa do Século XVI, como em qualquer outra civilização, é
substituir a estilização pelo estilo[3]”.
Do lado da demiurgia, os cineastas da Nouvelle Vague escolheram Hitchcock e do
lado da concretização de um cinema de gênero Hawks, ou seja, nos dois casos, um
ideal cinematograficamente muito distante e inimitável na França, onde eles iam
filmar seus primeiros projetos. No cinema europeu próximo, inversamente, eles
deram a si mesmos os mestres mais liberadores possíveis, Renoir e Rossellini,
contra o academicismo triunfante que representava aos olhos deles o cinema de
qualidade francesa da época. Pode-se dizer que a admiração deles por Rossellini
serviu objetivamente de antídoto àquela, que poderia ter sido bem mais
paralisante, que eles tinham simultaneamente pelo inigualável domínio
hitchcockiano.
A
outra razão, não menos importante, que os distanciou sem dúvida do maneirismo,
foi a impaciência que os conduziu a fazer seus primeiros filmes numa economia
de pobreza, à margem do cinema convencional da época. Privados do sistema de
estúdios e de estrelas ao qual eles não tinham acesso, eles se encontraram, por
necessidade, novos motivos (os cenários naturais, a rua, novos atores), e por
gosto, novos temas. Eles se encontraram um pouco na situação dos pintores que
saíam pela primeira vez de seu atelier
e descobriam novos motivos ao invés de procurá-los no Museu, nos quadros
admirados de seus ilustres predecessores.
Tudo
isso explica que a geração maneirista tenha talvez chegado com vinte anos de
atraso na França, contrariamente ao que se deu nos Estados Unidos, onde uma
primeira geração maneirista fez sua aparição no fim dos anos 50, ao sair da
idade de ouro do cinema clássico. Na Alemanha, onde a primeira geração de novos
cineastas chegou com dez anos de atraso em relação à Nouvelle Vague francesa, e
conseqüentemente com a consciência do que vinha se concretizando exatamente
antes deles e ao largo deles, de Wenders a Fassbinder passando por Werner
Schroeter. Curiosamente, na França, no momento em que os cineastas da Nouvelle
Vague faziam seus primeiros filmes, foi alguém que funcionou ao mesmo tempo
como irmão mais velho e como companheiro de percurso, mas jamais
verdadeiramente um modelo, que encarnou (somos quase tentados a dizer “no lugar
deles”) essa postura maneirista: Jean-Pierre Melville. Em seu cinema, no
tratamento “estilizado”, ligeiramente fetichista que ele fez submeter ao film noir e a seus componentes, sentimos
permanentemente que ele está consciente de chegar depois que uma certa perfeição
do gênero foi atingida, e isso conduz seu trabalho estilístico para o
maneirismo. Godard, quase ao mesmo tempo, roda Acossado, e inventa novos
personagens, novas formas, uma nova estética, traindo sem saber seu projeto de
fazer um modesto filme imitado dos filmes B americanos.
Não há mais mestres
absolutos
Patrick
Mauriès nota, a propósito de Roberto Longhi, que se pode “assinalar um lugar,
um momento preciso, uma verdadeira cena primitiva, no surgimento do maneirismo,
na Florença da época: trata-se do momento em que os dois mestres absolutos –
Leonardo da Vinci e Michelangelo – revelam diante de “um punhado de
florentinos”, ainda jovens, o resultado de sua competição para a decoração dos
muros do Palazzo Vecchio e em que esses últimos, maravilhados, começam
fervorosamente a copiar e retomar os motivos, absolutamente novos, dessas
cartelas”.
Estamos
muito distantes, no cinema contemporâneo, de poder imaginar uma cena primitiva
qualquer do gênero, não há mestres absolutos. O que caracteriza a situação
“maneirista” atual, é ao contrário a enorme confusão dos estilos e dos modelos.
Se, em todos esses cineastas, ou quase, pesa o peso daquilo que o cinema
realizou em 90 anos (certos, como Wim Wenders, tiveram até a impressão, um
momento em que tudo já tinha sido realizado), eles não se sentem forçosamente
herdeiros do mesmo passado. No limite, cada um pode escolher para si o momento
do cinema e eventualmente os mestres que cada um pretende prolongar de sua
forma, aos quais ele pretende se apoiar ou medir sua empresa criativa. Para
alguns, como Jim Jarmusch, esse será o cinema imediatamente anterior, o cinema
moderno. Para alguém como Lars Von Trier, será o barroco wellesiano.
Para
outros, que vão ignorar deliberadamente aquilo que o cinema trabalhou nos vinte
últimos anos, vai ser questão de retomar o cinema no ponto em que sua
concretização clássica o tinha deixado. Esses últimos ficam evidentemente
ameaçados pelo academicismo, que consiste em fingir que uma velha forma, há
muito tempo fissurada, fosse ainda fresca e viva. O “limite” de onde esses
cineastas tentam partir hoje não é o mesmo para cada um, então eles não
poderiam constituir uma verdadeira “escola”. A única coisa que eles têm
verdadeiramente em comum é a consciência de aparecer depois de um esgotamento e
que é preciso partir daí, mas cada um por si, para tentar atravessar esse
momento “oco”, um pouco hesitante, da história do cinema.
Uma crise dos temas
Essa
consciência não passa necessariamente pelo maneirismo. Tudo depende da resposta
que é dada a ela. Fiquei impressionado, recentemente, ao ouvir Godard e
Wenders, por exemplo, declarar quase ao mesmo tempo a mesma coisa a respeito do
enquadramento, ou seja, em substância, que o cinema tinha perdido esse senso do
enquadramento amplamente partilhado pelo passado. A essa constatação Godard
responde deslocando a dificuldade: à equipe de Je vous salue, Marie, ele declara que não existe quadro a procurar,
mas somente o eixo e o ponto exatos, e que o sentimento do enquadramento, se
esse trabalhou for bem-sucedido, aparecerá sozinho e por acréscimo. Wenders,
focalizando nessa dificuldade em enquadrar, reage de forma mais “maneirista”
por uma valorização ligeiramente hipertrofiada do quadro que termina por dar ao
espectador a impressão de que esse quadro, visível demais, está um pouco solto
do plano da imagem. A focalização em uma dificuldade parcial em se igualar aos
mestres ou ao cinema do passado culmina muitas vezes numa hipertrofia
maneirista no tratamento desse traço particular. Godard, sabendo que ele não
vai conseguir igualar as iluminações complexas de um cinema que ele admirou,
escolherá uma solução radicalmente diferente: não iluminar ou então iluminar um
mínimo, e vai reinventar assim uma nova estética.
Mas
a atitude maneirista não é somente uma resposta formal a uma dificuldade
formal. O maneirismo cinematográfico atual coincide, em toda evidência, com uma
crise dos “temas”. Nas épocas em que temas novos ou simplesmente síncrones não
se impõem aos cineastas, é grande a tentação de tomar emprestado ao passado –
sem verdadeiramente acreditar neles – motivos antigos, caducos, e o tratamento
maneirista se esforçará em fazer renovar seu aparecimento. A ausência de
verdadeiros temas, aos quais os cineastas acreditariam minimamente, é sem
dúvida característica de toda uma parte do cinema de hoje, tanto em sua
vertente acadêmica como em sua vertente maneirista. Os cineastas que continuam
a trilhar seu caminho relativamente ao abrigo da tentação maneirista são
aqueles que têm um tema
suficientemente pessoal para assim alimentar seu desejo sempre renovado de
filme (Rohmer); aqueles, com Godard, que acreditam suficientemente no cinema
para encontrar seu tema ao fazer o filme; ou enfim, aqueles como Pialat, que
acreditam suficientemente no momento do encontro com o real para encontrar de
acréscimo, nesse encontro, ao mesmo tempo seu verdadeiro tema e o cinema
Self-service
Falei
até aqui das condições de emergência de um maneirismo contemporâneo que nos dá
filmes bastante dignos de interesse e às vezes de admiração. Mas os anos 80
terão visto surgir uma nova espécie de produtos cinematográficos, sobretudo do
lado das “novas imagens”, que derivariam de um maneirismo de outra natureza, um
tipo de maneirismo à revelia. Desejo me referir a esses cineastas para quem o
cinema não tem nem mais Mestres nem mais História, mas se apresenta como uma
grande reserva confusa de formas, de motivos e de mitos inertes da qual eles
podem beber com toda a “inocência” cultural, ao acaso de suas fantasias ou
modas, para sua empresa de reciclagem de 90 anos de imaginário cinematográfico.
Essa visão do passado do cinema que consiste em fazer não tábula rasa mas um self-service deve muito, sem dúvida, à
difusão televisiva, onde todos os filmes perdem de uma certa forma sua origem
histórica e sua relação com um cineasta singular. Em L’Irréel, Malraux enuncia a hipótese de que a aparição do
maneirismo histórico, em pintura, se explicaria parcialmente pela difusão
nascente da gravura que, diz ele, “traz um domínio de referências comuns aos quadros
que ela reproduz” e que o preto, em oposição à cor dos originais,
“metamorfoseia e une os quadros como o branco dos séculos metamorfoseia e une
as estátuas”. Metamorfose que tem como efeito que, nas gravuras vindas da
Alemanha, os pintores italianos “não descobrem uma outra fé mas um grafismo – e
às vezes procedimentos de composição. Eles não acham igualmente, nas formas
góticas, a revelação de um imaginário de Verdade: eles encontram formas (...)
que não se relacionam mais ao divino”. A televisão, a seu jeito, esvazia
identicamente os filmes de todo “imaginário de Verdade”, os desconecta de toda
origem, e os retira toda aura singular. É provável que ela tenha contribuído
para transformar a consciência do passado do cinema, a partir de onde pôde nascer
um verdadeiro maneirismo, como simples reservatório de motivos e de imagens de
onde está para nascer uma forma degradada e obtusa de maneirismo maneirado. Mas
isso enceta talvez uma outra história, a história da reciclagem generalizada do
cinema...
Alain Bergala
(Cahiers du Cinéma nº370)
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