Como
ele é professor, Jean-Claude Brisseau professa. Como ele ama o cinema,
Jean-Claude Brisseau faz cinema. Como ser professor, no senso etimológico, é
“ensinar em público”, Jean-Claude
Brisseau faz do cinema um anfiteatro. Seus filmes tem a ver com o teatro de
paixões e tem de ser vistos como uma lição do cinema. Não de cinema. Não o cinema que educa, mas o cinema como – possível - educação.
As salas de cinema frequentemente, e justamente, foram comparadas à igrejas;
mais raramente à escolas: o meio onde vamos sentar para ver, para escutar, para
se completar, para se confrontar com o Outro, se informar. Para ver, saber, e
saber ver. Em Brisseau “o professor”, o filme perfurou o quadro negro, a
professora (maitresse) dança com o
aluno, o professor faz da aluna a sua amante (maîtresse) e o espectador, que ajuda a transgressão, participa assinando
a nota de liberação. Nós apagamos tudo e recomeçamos.
Em Som e Fúria, há o momento em que a professora dança com o menino (Aux marches dupalais...), e em Boda Branca, há o momento em que o barco
desembarca o homem e a menina sobre uma colina de flores (ainda Aurora). Os dois momentos flertam com o
ridículo, com a graça rasa do ridículo e
que “do ridículo ao sublime vai apenas um
passo” (disse Michelet), mas são realmente dois momentos de graça onde o
tempo não tem curso, a cena da escola, a vastidão imensa da natureza compõem a cena primitiva, livremente ingênua –
como a arte, ingenuamente livre. Céline
inteiro se abisma nesses momentos, nessa cena, nessa passagem feitapela janela
aberta no mundo, o filme passa pela janela, e o olhar até o fundo da paisagem,
acaba por se confundir com ele no negro – do quadro, como em um sonho de Akira. Assim se delineia Céline. Fazendo cinema, Brisseau gazeia
a escola.
Trata-se então, tratou-se sempre, de
um aprendizado. Nos filmes precedentes, o aprendizado era alguma coisa como
“aprenda a vida para aprender a morrer”, amores defuntos frequentemente
entrevistos, corpos de crianças vítimas de sua clarividência. Céline começa na queda mas não é preciso
muito tempo para sentir o filme cair para cima, uma aspiração resultado de uma expiração. Aprender a não mais existir para aprender a
viver. Não pensar mais em nada para estar no tudo. A aprendizagem, dessa vez,
nasce do nada e se revela em sua plenitude, o filme chega depois da morte e, se fazendo, ele está “além”: na terra, sob a chuva, nada resta a Céline que seu nome; um
homem que morreu e não é seu pai, um homem que a abandonou e não é mais seu
amante; ela mesma se deserda, e depois se joga na água. Que uma outra mulher a
salve, não importa: Céline é de agora em diante uma miraculosa – para não dizer
uma ressuscitada. Mas o que importa, é que Geneviève, a outra mulher, já pode,
desde o início, permitir o milagre (arriscando a própria vida).
Eu vejo bem, agora, a
impossibilidade e a inutilidade que há em recontar Céline. E é por uma razão bem simples: a razão de ser do filme é de
tornar visível o indizível. Poderíamos “falar” qualquer coisa sobre a morte, o
milagre, a aparição, a levitação, a santidade, tudo aquilo que quisermos, estas
palavras permanecerão clichés que não “falam” (do mesmo modo Céline, tentando
descrever o que ela sentiu a Geneviéve, nada encontra a não ser dizer a palavra
“Deus”– talvez o “cliché” supremo- e não se satisfaz). Ora, o filme é o
contrário do cliché. Ele refuta visivelmente e sistematicamente toda fixação do movimento, da imagem, ele
flui suavemente de fonte, pela concentração ( a própria ideia de uma
imobilidade que se move – e permite avançar) de onde ele retira sua energia
luminosa (como o fogo ateado no carro concentra subitamente nele toda a luz: a
noite apareceu de repente).
Célineé
um filme feito (de) intensidade. Portanto emocionante (émouvant) (em inglês “moving” quer dizer tanto “emocionante” e “em
movimento”, assim o filme extrai seu movimento de uma tensão interna: o que me
emociona (émeut), me move (meut)). E aquilo que ele mais é –
emocionante e em movimento, é que Brisseau não faz cinema como se ele fosse o
primeiro, não é a inocência do começo, é mais como se ele fosse o último dos
homens com uma câmera – é uma fragrância de fim. Brisseau chega depois, mais uma vez. Depois da morte e
depois do cinema (Murnau antes de tudo, Bresson, Godard sobretudo) . Chegar
depois, saber disso, é forçosamente estar no além, aí está porque Céline
não é fúnebre mas transcendente, aí está porque o cineasta não é religioso mas
místico. Aí está porque o seu filme é fantástico.
“A
religião egípcia, voltada inteiramente contra a morte, fazia a sobrevivência
depender da perenidade material do corpo. Ela satisfazia com isso uma
necessidade fundamental da psicologia humana: a defesa contra o tempo. A morte
nada mais é que a vitória do tempo. Manter artificialmente as aparências
carnais do ser é retirá-lo da correnteza da duração: fixá-lo à vida. [...]
Assim se revela, nas origens religiosas do estatutário, sua função primordial:
salvar o ser pela aparência.”
Esse possível resumo de Céline assinado por André Bazin, um
outro “professor” – e que, eu penso, Brisseau refletiu em sua introdução
“faraônica” do filme-, diz bem o que é a questão maior: o resgate, depois a
salvaguarda do espírito pelo corpo (a yoga), passando pela iniciação de Céline
por Geneviéve, depois do corpo pelo espírito (o milagre), passando pela última
aparição –aparência- para Geneviéve do espírito
de Céline. Dialética literalmente extraordinária que, em termos de
arte-mística, se produz entre o talento e o gênio. Entre Geneviéve e Céline. E
sua união faz a sua força, pois, se há uma vida
após a morte (algo que o cinema se apercebe às vezes), o filme mostra
também que há uma “morte após a morte” (algo que o cinema toca raramente): Céline começa no drama e culmina no
trágico – mas não é triste por isso, e é
o amor de duas mulheres que é trágico. Elas estão condenadas. Estejam em um
convento ou na grande mansão do filme.
As palavras de Bazin, antes de dar
uma ideia do que é o filme de Brisseau, dão uma ideia do que é o cinema. Daí a
pensar que o filme de Brisseau constitui por ele mesmo uma “ideia de cinema”...
Essa ideia gira sempre em torno da inocência, e de sua perda. E de como a reter
ou retornar a ela – pelo cinema. Para Bazin, o trabalho de embalsamento, para
Brisseau, o da restituição. Salvar o ser restaurando a ele a aparência (mais
que) humana. Revelá-lo. Fazer de uma forma que o cinema possa registrar o
milagre, e que esse milagre pareça com a vida (um joelho que sangra sem ferimento,
um paraplégico que se recupera porque lhe dizem que ele pode). Não somente que
isso tenha uma aparência verdadeira, mas que isso seja verdade. O trabalho de
Brisseau consiste não na restituição de um cinema-verdade mas, o que é mais
difícil, de uma verdade do cinema. E se ele consegue, é porque ele conhece o
cinema: uma moral das imagens.
Quando Céline “aparece” a Geneviéve
várias vezes, por exemplo, depois desaparece, é um simples caso de
reenquadramento: ela está lá, ela não está mais. É uma imagem que se constrói
de uma outra imagem – em relação a uma terceira, aquela de Céline em meditação,
fora da casa. Quando Geneviéve presencia a levitação, questão de ponto de
vista, nós vemos Geneviéve que vê Céline, em seguida vemos Céline, as duas não
estão reunidas no plano porque (montagem proibida, ao inverso) nós só podemos
ser as testemunhas do olhar de Geneviéve, não as testemunhas da cena: para
cortar, isso seria trapacear, teria uma aparência verdadeira sem ser (haveria
montagem na imagem, uma redundância grosseira já que Célinemonta sozinha), então que a verdade venha do olhar de Geneviéve
sobre Céline (ela dirá a seu amigo que ela não sabe se Céline levitou,
simplesmente que ela acreditou tê-la
visto levitar). É preciso acreditar em seus olhos.
À parte talvez Órfãs da Tempestade, de Griffith (uma certa perversidade ao menos),
nós nunca vimos filme igual colocando em cena o amor entre duas mulheres.
Geneviéve, a lunar, e Céline, a solar, são duas figuras inesquecíveis. Dois anjos do pecado (angesdupeché). A energia luminosa que cada uma emite – luz negra de
uma, luz ofuscante de outra – que ambas se transmitem alternadamente quando
necessitam aquecer seus corpos entorpecidos, que renunciam, é um calor humano
praticamente visível na imagem, como uma aura (não realmente uma auréola) que
emanaria de seus corpos e irradiaria tudo aquilo que as rodeia. Como o encontro
de duas “atmosferas”...
Entre elas, por elas, não há
rastros, via-crúcis, as coisas acontecem quase brutalmente, ou melhor, de uma
forma bruta; e Céline salta aos
olhos, se impõe à nós: é um filme que, da mesma maneira que o recolhimento leva
subitamente ao milagre, estabelece um suspense que resulta de súbito em um
efeito de surpresa. É um filme que atordoa. Geneviève, demasiada humana, e
Céline, demasiada evidente, se completam, como dois polos de energia que se
atraem. Quem é a mais santa das duas? Esta já é outra história. A história de
amor, ela, exala um odor de santidade, na troca absoluta do filme – e depois a
troca de dois olhares: dar e receber. É simplesmente muito belo.
Eu percebi que esqueci de dizer que
isso se passa em pleno campo, em uma grande mansão branca, que Geneviève é
enfermeira e que Céline não é. Mas que bom: dizer isso não é dizer grande
coisa. Em revanche, é preciso dizer que Brisseau não realizou um filme
ecológico (écolo) de bom tom ou new age do tipo certo. Esses filme nós
podemos reconhece-los porque eles são de um só modo e de uma só época, eles
envelheceram rápido com a sua imagética galopante. Céline é de outro temperamento, daquele que vemos raramente no
cinema francês, o temperamento místico (indubitavelmente a única maneira na
França de ter direito a um olhar sobre o gênero “fantástico). O filme de
Brisseau (que me faz decididamente muito pensar no Nouvelle Vague do Godard) toma uma dimensão “sobrenatural” porque
ele consegue fundir o ser na natureza, que o enraíza. Alguma coisa se passa, se
comunica entre Céline e o campo (os campos, a árvore sob a qual ela medita). Na
“perspectiva” da mística do filme,do tratamento de seu espaço, a natureza abre
a Céline “o caminho”. Ela suscita uma exaltação melancólica, um sentimento de
plenitude que absorve literalmente a jovem mulher na paisagem. Em Brisseau, a
natureza é sobrenatural...
Natureza e panteísmo. Contemplação,
meditação e iluminação. A relação trágica do ser no tempo, no amor, na morte.
“Salvar o ser pela aparência.” E fazer um filme do cinema... Acreditando que o
cinema dessa vez, de fato, entrou em sua
era romântica.
Esperando,
Céline e Geneviève irão de bicicleta.
CamilleNevers,
Cahiers du Cinema nº
454, abril de 1992
(tradução Cauby
Monteiro)
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