(John
McTiernan, Last Action Hero, 1993)
O Último
Grande Herói foi um fracasso de público. Ainda que seja uma comédia na maior
parte do tempo, o filme traz o ocaso no título, e explora o sentimento que daí
surge sem medo de transformar-se em lamúria. Nos anos 90, seu parentesco mais
próximo estaria em um filme como Rápida e Mortal, de Sam Raimi: um mesmo gosto
pelo pastiche, um mesmo acento lúdico, um mesmo fermento maneirista, uma mesma
inspiração no cartoon. Em Raimi, contudo, prevalece o jogo, a brincadeira com
as formas, a pesquisa sobre novas “tecnologias” da decupagem e da excitação
visual. McTiernan também realiza seqüências de ação incríveis, trabalha cada
mínimo detalhe do gestual e do visual dos personagens, aproveita as chances
dadas pelo volume simbólico e iconográfico que a consciência sobre o cinema de
gênero permite, mas o olhar do personagem de Schwarzenegger quando avista o
cartaz de “Jack Slater IV” e se descobre um mero produto da imaginação é algo
que jamais figuraria em Rápida e Mortal. O Último Grande Herói tem esse
assombro de ter chegado após o fim de uma era. Se por um lado McTiernan não
perde a piada (as piscadas de olho são infinitas, variando do sutil ao
explícito), por outro há um cenário em penumbra, algo que constata uma
tristeza. O mais buddy movie dos filmes de McTiernan, o mais engraçado, o mais
ambicioso, o mais auto-reflexivo é também seu mais melancólico. E sua
obra-prima.
Os signos de
crepúsculo estão em cada detalhe. A começar pelo cinema onde o menino Danny
assiste à saga de Jack Slater (Schwarzenegger): uma sala de arquitetura antiga
e mal conservada, descascada pelo tempo. Nick, o velho projecionista, é um
sobrevivente do antigo espaço de fruição dos filmes (o cinema de rua, o
espetáculo lotado), alguém cujo tempo de vida praticamente equivale à idade do
cinema. No começo do filme ele dorme na sala de projeção, que herdou de seu
pai, enquanto Danny assiste sozinho a “Jack Slater III”. Em um cinema
fantasmagórico, um filme de gênero feito em moldes anacrônicos é projetado,
sendo visto pela sexta vez por um espectador pré-adolescente vidrado em tudo
que acontece na tela, antecipando cada fala ou ação. A quadra de Nova York em
que essa sala de cinema se localiza, por sua vez, parece em si mesma um museu
da cinefilia, uma calçada por onde a Morte (egressa diretamente de O Sétimo
Selo) circula.
Nick diz que
o bilhete dourado que entrega a Danny, antes da sessão prévia de “Jack Slater
IV”, foi um presente de Harry Houdini (há inclusive um pôster dele na sala de
projeção), quando este se apresentou ali naquela sala de cinema, muitos anos
antes de Danny sequer sonhar em nascer. Segundo o famoso ilusionista, aquele
bilhete seria a porta de entrada para um mundo mágico. Houdini representava um
dos baluartes da efervescente cultura dos espetáculos do corpo no início do
século XX, um ideal heróico de talento físico. A princípio inspirado pelo
espiritualismo, ele posteriormente negou-o em favor de apresentações onde o
corpo real era colocado no centro de significação do espetáculo: a ilusão se
distanciava do espírito da ficção, queria se passar por verdade corpórea.
Houdini chegou a tentar carreira no cinema, aparecendo em uma meia-dúzia de
filmes, mas não deu certo e acabou se voltando – de forma semelhante à sua relação
com o espiritualismo – contra o cinema, valorizando a performance ao vivo, a
presença física do showman. Mas era o corpo cinemático, naquele momento, que já
triunfava sobre o corpo real: basta citar que os espetáculos de vaudeville
primeiro passavam filmes como adendos aos espetáculos ao vivo, antes destes
começarem, porém rapidamente as performances ao vivo se tornaram mero
entretenimento auxiliar para as grandes atrações, isto é, os filmes que eram
depois projetados.
Esse
espetáculo americano do corpo, em que Houdini se destacou, seria reencontrado
no cinema de aventura, nas potencialidades do herói de ação, e na comédia
física, nas acrobacias do herói burlesco, elementos que parecem comentados de
alguma maneira em O Último Grande Herói. Da mesma forma que as performances
físicas de Houdini foram superadas pelo lugar imaginário da ficção
cinematográfica, o herói feito de músculos e frases de efeito interpretado por
Schwarzenegger tinha também seus anos de glória chegando ao fim em 1993. Vindo
acompanhada de todo um novo regime de imagem, velocidade, narrativa, ficção
etc, a maleabilidade do corpo digital tornava démodé aquela truculência toda,
como o próprio Schwarzenegger havia experimentado um pouco antes, deparando-se
com o metal líquido do T-1000 em O Exterminador do Futuro 2. Mais ainda: o
cinema de gênero em si, fosse seu herói uma massa orgânica ou um corpo-elástico
confeccionado em CGI, estava em crise com seus códigos. Era como se o pacto de
adesão às inverossimilhanças do mundo ficcional, suas leis e arbitrariedades
próprias, estivesse em suspenso, em renegociação (um novo design e uma nova
estratégia narrativa se teceriam mais tarde, hoje sabemos). Como mostra uma das
cenas mais divertidas do filme, a crise é hamletiana: "ser ou não ser".
Mais do que
um cinéfilo, Danny é um cine-filho, alguém que se deixa adotar pelos filmes, um
exemplo limite de espectador de cinema – uma dedicação à sala escura que já
existia em outras épocas, remotas até. Ao mesmo tempo, ele representa um
extremo da história da espectatorialidade: um olhar que reconhece todas as
convenções, os códigos, os truques, as técnicas. Danny possui uma excessiva
consciência em relação ao universo ficcional, à lógica interna de um filme, é
um espectador nascido após o fim da inocência. Nick, ao contrário, pertence a
uma outra época. Ele se surpreende quando Danny diz que o bilhete mágico de
fato funciona. “Eu poderia ter feito uma visita à Greta Garbo”, arrepende-se.
Acontece que na época em que Nick era um cinéfilo como Danny, ninguém ousaria
transpor essa barreira, ninguém admitiria a hipótese de passar para o outro
lado da representação. Danny é um espectador da era dos parques temáticos, da
visita aos estúdios da Universal como modelo de entretenimento. Visitar os
cenários dos filmes, o lugar onde são feitos, conhecer os bastidores, ver de
perto a maquinaria do cinema, isso ameaçava substituir, no imaginário das novas
gerações, o próprio encontro com o filme, esse grande outro que perdia seu
espaço para a constatação do mesmo – pois o local de fabricação dos filmes
pertence ao mesmo mundo do espectador, é uma realidade como outra qualquer. Já
os filmes em si, estes vão sempre preservar uma qualidade de outro; o mundo do
filme e o mundo do espectador nunca serão o mesmo, nem se esforçando muito para
isso. Haverá sempre uma separação que está na base do espetáculo e da ontologia
do cinema (o coeficiente de semelhança entre o mundo representado na tela e o
mundo real não altera essa evidência primeira, de que entre o espectador e o
filme se desenvolve uma relação de "um" com o "outro"). O
Último Grande Herói é um filme sobre o novo estatuto dessa fronteira. Danny
atravessa a tela e cai no mundo do filme a que assistia, sendo integrado à
diegese. Ele agora é ator e espectador do cinema, vai para o mundo em que os
bad guys nunca vencem no final. O filme é um pouco uma versão de A Fantástica
Fábrica de Chocolate voltada mais explicitamente para o universo
cinematográfico. O último grande herói não é apenas Jack Slater: é também
Danny, é também Nick, pessoas que resguardam um tipo de relação com o cinema em
vias de desaparecer. É também John McTiernan.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
(Texto originalmente publicado em http://www.contracampo.com.br/)
(Texto originalmente publicado em http://www.contracampo.com.br/)
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