sábado, 24 de outubro de 2015

GERTRUD

(Carl Theodor Dreyer, Dinamarca, 1964)

Quase uma década depois de A Palavra (Ordet), Dreyer faz aquele que seria seu derradeiro filme, o estonteante Gertrud. Um trabalho de depuração se observa em seus dois últimos filmes, uma purificação da forma e também do texto: só se fala e só se mostra o essencial. Na montagem não há nenhum contracampo: este se torna um local imaginário, um segundo compartimento que a mente do espectador constantemente acopla às imagens mostradas no filme, para ao fim se completar um drama em dupla camada que ressoa a substância mesma de Gertrud, e quem sabe de toda a obra de Dreyer: o material e o idealizável, a fé e a experiência concreta, o que é visto e o que só pode existir sob uma crença compartilhada (no caso, a assimilação de um fora-de-quadro que não precisa aparecer para ser real).

Primeiro momento mágico do filme: o plano-seqüência que começa com o olhar lançado ao espelho. Essa superfície que reflete o mundo em profundidade reenvia a Gertrud sua verdade mais implacável: a solidão que redireciona e torna secundária toda outra característica possível (a começar pela vaidade). É o começo de um plano em que muita coisa está para acontecer, e a câmera se move até com alguma ansiedade, quase afoita para nos mostrar o decorrer do filme (ou talvez ela mesma precise descobrir o que vai acontecer). Em Gertrud, Dreyer consegue de sua câmera um interessante comportamento duplo, pois a precisa marcação do plano divide espaço com um sentimento espontâneo do instante, ou uma espécie de sensibilidade pontual da cena, no sentido de fazer pequenos movimentos que são como respostas instintivas ao ritmo que os atores encontram durante a cena, diferentemente dos grandes travellings e das panorâmicas reveladoras que dão a espessura de um exaustivo ensaio prévio. Gertrud é a escrita livre de uma tragédia perfeitamente estudada. Do início ao término dos planos, a palavra e o pensamento devem se encontrar numa expressão comum.

Dreyer sugere à sua personagem-título uma saída bastante iluminada, mesmo que não pareça acolhedora de todo: uma saída para o branco, uma desaparição súbita no excesso de luz e de claridade. Toma-se o branco, de maneira geral, como mistura de todos os matizes – o Todo indistinto. Pois Dreyer ilustra através do branco um mergulho violento na idealidade que serve como fonte de toda a tragédia de sua personagem. É a busca evasiva por um amor ideal o que ele simboliza. O filme conflui para um retiro radical de Gertrud, uma vez fracassado seu projeto emocional grandioso porém irrealizável. Na cena em que Gertrud olha para o quadro atrás de si e reconhece exatamente a cena de um sonho que teve, o filme trai suas palavras, sua defesa do livre-arbítrio em oposição ao fatalismo de que seu pai fora um árduo defensor. A câmera faz um recuo ameaçador e enquadra em maior ângulo a imagem da mulher nua sendo devorada por lobos. A cena é análoga àquela do início, mas agora se trata de um outro tipo de espelho, mais adequado à figuração evocativa do sonho. A revelação, contudo, é a mesma.

Num flash-back iluminado por um branco alusivo e obsedante, Gertrud encontra junto ao desenho de seu perfil, feito por um amante do passado, as palavras que a devastam: "o amor de uma mulher e o trabalho de um homem são inimigos mortais". Entre o jovem pianista com que vive uma relação frívola e passageira, o marido de quem não gosta mais e o ex-amante que não corresponde a seus anseios, um mosaico incompleto se desenha sobre o coração de Gertrud. Ela está em contato com o mundo através de toda a superfície de seu ser, mas ainda assim o experimentando com uma grande parcela de desafecção. Ela diz coisas como: "Não há felicidade no amor", ou "Meu coração envelheceu". A forma narrativa busca um certo grau de desligamento físico na descrição de como ela se porta e se desloca no mundo. O olhar lasso de Gertrud é o signo mais forte e pregnante do filme, talvez seu único fato incontestável, sua única evidência verificável. Mas é um signo sem significação. A beleza de Gertrud – como de praxe na obra de Dreyer – é de uma tal ordem que não se descreve. À semelhança de A Palavra, o filme realiza uma condensação de diferentes níveis de entendimento do mundo. Mesmo o místico e o obscuro se sucedem na ordem natural das coisas. Dreyer invoca uma permutabilidade com o mundo, e uma presença nele, muito anterior à inteligência.

Segundo uma inscrição original e inesperada, os corpos do filme parecem representações espelhadas na antiga arte egípcia. Os movimentos das pessoas não dispensam uma organicidade, mas são também assustadoramente mecânicos. As partes da figura humana são dispostas de tal forma que se apresentam ou em projeção totalmente frontal, ou em puro perfil. Vale lembrar que a intenção artística egípcia era dirigida não à variável, mas à constante, não à simbolização do presente vital, mas à realização da eternidade intemporal (por isso, ao contrário dos gregos, reproduziam a forma e não a função orgânica do ser humano). Com essa inusitada aproximação, Dreyer põe às claras sua expectativa em relação às vidas mostradas no filme. Trata-se menos de simular uma vida do que de criar substrato material para outra vida: rosto semi-mumificado, Gertrud está praticamente à espera de reanimação, ou ao menos de uma recarga afetiva.

É só a uma personagem que dizem respeito a mise en scène e o drama do filme; os demais corpos são agentes de reforço, estão ali para construir ao lado de Gertrud seu sentimento de "a sós com o universo". Os personagens não se olham enquanto dialogam não por uma exigência da sociedade em que vivem, mas por uma premissa dramatúrgica colada à natureza da protagonista, que só enxerga um alhures, um mundo formado por tudo que não está ao seu alcance. Gertrud é portanto uma dramaturgia do inalcançável, ou daquilo que está ainda – e eternamente – por suceder. Já na velhice, visitada pelo amigo de longa data, Gertrud diz que vive como uma eremita, esquecida por todos, mas que precisa da solidão e da liberdade. Ao amor incompleto, a irredutível Gertrud prefere a reclusão. Tudo ou nada: o coração não trabalha com meias-medidas. Qual será seu mistério? Na seqüência final, Gertrud concorda com seu amigo e afirma: "O amor é tudo". Mas a solidão é o absoluto, o que prevalece.

Luiz Carlos Oliveira Jr.

(Texto originalmente publicado em http://www.contracampo.com.br/78/dvdvhsgertrud.htm)

Nenhum comentário:

Postar um comentário