“A ordenação encobre. A ordem reina.” (Charles Péguy)
Vocês não gostam muito de Rossellini. Dizem que vocês não gostam de Viagem à Itália. Até aí, tudo bem. Mas não; sua recusa não é tão segura para que não procurem saber a opinião dos rossellinianos; estes lhes irritam, lhes inquietam, como se vocês não tivessem boa consciência de seu gosto. Estranho comportamento!
Mas abandonemos este tom jocoso. Sim, admiro especialmente o último filme de Rossellini (pelo menos o último que vimos). Por quais motivos? Ah, aí fica mais difícil dizer; não posso invocar diante de vocês o enlevo, a emoção, a alegria: é uma linguagem que vocês não admitem muito como prova; espero que ao menos a compreendam.(E se não, que Deus lhes ajude).
Mudemos de tom mais uma vez para lhes agradar .A maestria, a liberdade, eis palavras que vocês podem entender, pois este é o filme em que Rossellini melhor afirma sua maestria, e como em qualquer arte, pelo exercício mais livre dos seus meios, ao qual voltarei. Antes, tenho mais a dizer, e que deve lhes interessar mais: se existe um cinema moderno, ei-lo. Mas vocês ainda precisam de provas.
*
1. Se considero Rossellini o cineasta mais moderno, não é sem razão; mas tampouco pela razão. Parece-me impossível ver Viagem à Itália sem experimentar brutalmente a evidência de que este filme abre uma brecha, pela qual o cinema inteiro deve passar se não quiser morrer. (Sim, não há hoje outra salvação para o nosso miserável cinema francês do que uma boa transfusão deste sangue novo). Vê-se que é só um sentimento pessoal. E eu gostaria de evitar desde já um mal-entendido: há outras obras, outros autores, que provavelmente não são menores do que este, mas são, como direi, menos exemplares; no ponto a que chegaram de sua carreira, sua criação parece fechar-se sobre si mesma, o que fazem vale por ela e nas suas perspectivas. Eis certamente a culminância da arte, que só deve contas a si própria e, passados os tateios e as pesquisas, desencoraja os discípulos, isolando os mestres: seu domínio morre com eles, assim como as leis e os métodos a que recorreram. Vocês reconhecem aqui Renoir, Hawks, Lang e, de uma certa maneira, Hitchcock. A Carruagem de Ouro4 poderá provocar cópias confusas, mas não pode fazer escola; as cópias só são possíveis por presunção e ignorância, e os verdadeiros segredos estão tão bem escondidos sob o jogo das caixas sucessivas que, para descobri-los, seriam provavelmente necessários tantos anos quanto os que a carreira de Renoir tem hoje; há trinta anos eles se confundem com os avatares e os progressos de uma inteligência criadora excepcionalmente curiosa e exigente. A obra de juventude, ou da primeira maturidade, guarda em seu entusiasmo, em seus saltos, a imagem dos movimentos da vida cotidiana; atravessada por um outro impulso, ela está ligada a seu tempo e dele se afasta com dificuldade. Mas, o segredo de A Carruagem de Ouro é o da criação, e dos problemas, das dificuldades, dos desafios que se impõe para arrematar um objeto e lhe dar a autonomia e o refinamento de um mundo ainda desconhecido. Qual exemplo, senão o do trabalho obstinado e discreto que apaga por fim todo rastro de sua passagem? Mas, o que pintores ou músicos poderão reter das últimas obras de Poussin ou Picasso, de Mozart ou Stravinsky, senão um desespero salutar?
Podemos pensar que Rosselini também chegará a este ponto de pureza (e a ele se habituará) em cinco ou dez anos; ele ainda não o alcançou, ousemos dizer, felizmente; ainda é tempo de segui-lo, antes da eternidade nele mesmo, enquanto o homem de ação ainda vive no artista.
1. Se considero Rossellini o cineasta mais moderno, não é sem razão; mas tampouco pela razão. Parece-me impossível ver Viagem à Itália sem experimentar brutalmente a evidência de que este filme abre uma brecha, pela qual o cinema inteiro deve passar se não quiser morrer. (Sim, não há hoje outra salvação para o nosso miserável cinema francês do que uma boa transfusão deste sangue novo). Vê-se que é só um sentimento pessoal. E eu gostaria de evitar desde já um mal-entendido: há outras obras, outros autores, que provavelmente não são menores do que este, mas são, como direi, menos exemplares; no ponto a que chegaram de sua carreira, sua criação parece fechar-se sobre si mesma, o que fazem vale por ela e nas suas perspectivas. Eis certamente a culminância da arte, que só deve contas a si própria e, passados os tateios e as pesquisas, desencoraja os discípulos, isolando os mestres: seu domínio morre com eles, assim como as leis e os métodos a que recorreram. Vocês reconhecem aqui Renoir, Hawks, Lang e, de uma certa maneira, Hitchcock. A Carruagem de Ouro4 poderá provocar cópias confusas, mas não pode fazer escola; as cópias só são possíveis por presunção e ignorância, e os verdadeiros segredos estão tão bem escondidos sob o jogo das caixas sucessivas que, para descobri-los, seriam provavelmente necessários tantos anos quanto os que a carreira de Renoir tem hoje; há trinta anos eles se confundem com os avatares e os progressos de uma inteligência criadora excepcionalmente curiosa e exigente. A obra de juventude, ou da primeira maturidade, guarda em seu entusiasmo, em seus saltos, a imagem dos movimentos da vida cotidiana; atravessada por um outro impulso, ela está ligada a seu tempo e dele se afasta com dificuldade. Mas, o segredo de A Carruagem de Ouro é o da criação, e dos problemas, das dificuldades, dos desafios que se impõe para arrematar um objeto e lhe dar a autonomia e o refinamento de um mundo ainda desconhecido. Qual exemplo, senão o do trabalho obstinado e discreto que apaga por fim todo rastro de sua passagem? Mas, o que pintores ou músicos poderão reter das últimas obras de Poussin ou Picasso, de Mozart ou Stravinsky, senão um desespero salutar?
Podemos pensar que Rosselini também chegará a este ponto de pureza (e a ele se habituará) em cinco ou dez anos; ele ainda não o alcançou, ousemos dizer, felizmente; ainda é tempo de segui-lo, antes da eternidade nele mesmo, enquanto o homem de ação ainda vive no artista.
2.
Moderno, afirmava eu; é assim que desde os primeiros minutos de projeção de
Viagem à Itália, um nome que parece não ter nada a fazer aqui não cessou de
martelarmeu espírito: Matisse. Cada imagem, cada movimento confirmava para mim
o secreto parentesco entre o pintor e o cineasta. Isso é algo mais fácil de
enunciar do que de demonstrar. Arriscarei-me, porém, a fazê-lo, receando que
minhas razões iniciais lhes pareçam bem frívolas, e as seguintes, obscuras ou
ilusórias.
De início, basta ver: ao longo de toda a primeira parte, constatem o gosto pelas amplas superfícies brancas, realçadas por um traço claro, por um detalhe quase decorativo; se a casa é nova e de aspecto inteiramente moderno, é obviamente porque Rossellini se apega primeiro às coisas contemporâneas, à forma mais recente de nosso contexto e de nossos costumes; é também por simples prazer visual. Isto pode surpreender em um realista (e mesmo neorrealista); por que, meu Deus? Que eu saiba, Matisse também é realista: a economia de uma matéria ágil, a atração pela página branca e carregada de um só signo, pela superfície virgem5 aberta à invenção do traço exato, tudo isso me parece de um realismo de melhor qualidade do que os excessos, as caretas, a grandiloquência pseudorrussa de Milagre em Milão6; tudo isso, longe de prejudicar o propósito do cineasta, lhe dá um acento novo, atual, que nos atinge em nossa sensibilidade mais recente e mais viva; tudo isso toca o homem moderno que há em nós, e já exprime a nossa época tão precisamente quanto a narrativa; tudo isso já trata do homem de bem de 1953 ou 1954, e já é o assunto.
De início, basta ver: ao longo de toda a primeira parte, constatem o gosto pelas amplas superfícies brancas, realçadas por um traço claro, por um detalhe quase decorativo; se a casa é nova e de aspecto inteiramente moderno, é obviamente porque Rossellini se apega primeiro às coisas contemporâneas, à forma mais recente de nosso contexto e de nossos costumes; é também por simples prazer visual. Isto pode surpreender em um realista (e mesmo neorrealista); por que, meu Deus? Que eu saiba, Matisse também é realista: a economia de uma matéria ágil, a atração pela página branca e carregada de um só signo, pela superfície virgem5 aberta à invenção do traço exato, tudo isso me parece de um realismo de melhor qualidade do que os excessos, as caretas, a grandiloquência pseudorrussa de Milagre em Milão6; tudo isso, longe de prejudicar o propósito do cineasta, lhe dá um acento novo, atual, que nos atinge em nossa sensibilidade mais recente e mais viva; tudo isso toca o homem moderno que há em nós, e já exprime a nossa época tão precisamente quanto a narrativa; tudo isso já trata do homem de bem de 1953 ou 1954, e já é o assunto.
3.
No quadro, uma curva voluntária circunda, sem aprisioná-la, a cor mais viva;
uma linha quebrada, mas única, cerca uma matéria milagrosamente viva, como que
apreendida, intacta, na sua origem. Na tela [do cinema], uma longa parábola,
suave e precisa, guia e retém cada sequência, depois se fecha em si mesma com
exatidão. Pensem em qualquer filme de Rossellini: cada cena, cada episódio
retornará à sua memória não como uma sucessão de planos e enquadramentos, uma
cadeia mais ou menos harmoniosa de imagens mais ou menos impressionantes, mas
como uma longa frase melódica, um arabesco contínuo, um único traço implacável
que conduz firmemente os seres em direção àquilo que ainda ignoram, e delimita
na sua trajetória um universo agitado e definitivo; seja num fragmento de Paisá
[1946], num fioretto de Francisco, Arauto de Deus [Francesco, Giullare di Dio,
1950], num “passo” [do Calvário] de Europa 51 [1952], ou no conjunto mesmo de
seus filmes, na sinfonia em três movimentos de Alemanha, Ano Zero [Germania
Anno zero, 1948], na linha ascendente obstinada de O Milagre [Il Miracolo,
1948] ou de Stromboli [1950] (as metáforas musicais surgem tão espontaneamente
quanto as pictóricas) – o olhar incansável da câmera cumpre sempre o papel do
lápis, um desenho temporal avança diante dos nossos olhos (e, estejamos
tranquilos, sem câmera lenta que pretenda nos instruir decompondo expressamente
para nós a inspiração do mestre); seguimos seu progresso até o desfecho, até
que ele se perca na duração assim como surgira da brancura da tela. Pois há
filmes que começam e terminam, que têm
um início e um fim, que conduzem uma narrativa desde seu primeiro termo
até que tudo se ordene e se acalme, mesmo que haja mortos, um casamento ou uma
verdade. São os de Hawks, Hitchcock, Murnau, Ray, Griffith. Mas há filmes que
não possuem nada disso, e retornam ao tempo como os rios ao mar; e que nos
propõem ao final apenas as imagens mais banais: rios que correm, multidões,
exércitos, sombras que passam, cortinas que caem ao infinito, uma menina que
dança até o fim dos tempos. São os de Renoir e Rossellini. Cabe a nós prolongar
depois em silêncio este movimento novamente secreto, esta curva dissimulada,
retornada à terra: ela ainda não terminou.
(É claro que tudo isso é arbitrário e vocês têm razão: os primeiros também se prolongam, mas me parece que não exatamente da mesma maneira; eles satisfazem o espírito, suas agitações nos acalmam, enquanto os outros nos incumbem e nos pesam. Eis o que eu queria dizer.)
E há os filmes que alcançam o tempo numa imobilidade dolorosamente mantida; que chegam a seu termo sem fraquejar na etapa perigosa de um ápice irrespirável7: este é o caso de O Milagre, de Europa 51.
(É claro que tudo isso é arbitrário e vocês têm razão: os primeiros também se prolongam, mas me parece que não exatamente da mesma maneira; eles satisfazem o espírito, suas agitações nos acalmam, enquanto os outros nos incumbem e nos pesam. Eis o que eu queria dizer.)
E há os filmes que alcançam o tempo numa imobilidade dolorosamente mantida; que chegam a seu termo sem fraquejar na etapa perigosa de um ápice irrespirável7: este é o caso de O Milagre, de Europa 51.
4. É
cedo demais para tais entusiasmos? Receio que um pouco; voltemos então à Terra,
e já que vocês o desejam, falemos de enquadramentos: mas permitam-me ainda
encontrar neste desequilíbrio, nesta distância dos centros de gravidade habituais
e nesta aparente incerteza que tanto lhes choca secretamente a mesma marca, a
assimetria de Matisse: a “falsidade” magistral da composição, calmamente descentrada,
que choca também ao primeiro olhar e só depois revela seu equilíbrio secreto, em
que os valores contam tanto quanto as linhas, e que dá a cada tela este movimento
discreto, como aqui a cada momento esse dinamismo contido, a inclinação
profunda de todos os elementos, todas as curvas e todos os volumes do instante,
rumo ao novo equilíbrio, e ao novo desequilíbrio do próximo segundo rumo ao
seguinte; poderíamos chamar isso, pomposamente, de uma arte do sucessivo na
composição (ou então, da composição sucessiva) que, ao contrário de todas as
pesquisas estáticas que sufocam o cinema há mais de trinta anos, me parece, com
todo o bom senso, a única invenção plástica permitida ao cineasta.
5.
Não insisto mais: todo paralelo se torna logo tedioso, e temo que este já tenha
durado muito; de resto, quem pode convencer alguém senão aquele que já o
verificou assim que o formulou? Permitam-me apenas uma última observação, sobre
o traço: a graça e o desajeito intimamente ligados. Saúdem aqui e ali uma graça
jovem, brusca e rígida, desajeitada, mas cuja fluidez desconcerta: a meu ver, a
mesma graça da adolescência, idade ingrata em que os gestos mais perturbadores
e os mais bem sucedidos nascem assim, “no susto”, de um corpo sustentado por um
grande embaraço. Matisse e Rossellini afirmam a liberdade do artista, mas não
se enganem: trata-se de uma liberdade vigiada, construída, em que a arquitetura
primeira se dissipa no esboço.
Pois é preciso acrescentar este aspecto, que resumirá todos os outros: o senso do esboço, comum aos dois artistas. O esboço mais verdadeiro, mais detalhado que o detalhe e a cópia mais minuciosa, a preparação mais verdadeira que a composição, eis os milagres em que irrompe a verdade soberana da invenção, da ideia mãe que só aparece para reinar, sumariamente desenhada por grandes traços essenciais, desajeitados e apressados, mas que resumem vinte estudos aprofundados. Pois é precisamente nestes filmes rápidos, improvisados com elementos do acaso e filmados aos solavancos que a imagem deixa amiúde adivinhar, que se encontra a única pintura real do nosso tempo; e este tempo também é um esboço; como não reconhecer de pronto a aparência fundamentalmente esboçada, mal composta, inacabada da nossa existência cotidiana; estes grupos arbitrários, estas reuniões completamente teóricas de seres atormentados pelo tédio e pelo cansaço, nós os reconhecemos, eles são a imagem irrefutável, acusadora, das nossas sociedades heteróclitas, sem harmonia, desacordes. Europa 51, Alemanha, Ano Zero, e este filme que poderá se intitular Itália 53, como Paisá já era Itália 44, eis o nosso espelho, que não nos lisonjeia muito: esperemos ainda que este tempo, fiel por sua vez à imagem destes filmes fraternais, se oriente em segredo para uma ordem profunda, para uma verdade que lhe dará sentido e justificará, no fim, tanta desordem e tanta afobação confusa.
Pois é preciso acrescentar este aspecto, que resumirá todos os outros: o senso do esboço, comum aos dois artistas. O esboço mais verdadeiro, mais detalhado que o detalhe e a cópia mais minuciosa, a preparação mais verdadeira que a composição, eis os milagres em que irrompe a verdade soberana da invenção, da ideia mãe que só aparece para reinar, sumariamente desenhada por grandes traços essenciais, desajeitados e apressados, mas que resumem vinte estudos aprofundados. Pois é precisamente nestes filmes rápidos, improvisados com elementos do acaso e filmados aos solavancos que a imagem deixa amiúde adivinhar, que se encontra a única pintura real do nosso tempo; e este tempo também é um esboço; como não reconhecer de pronto a aparência fundamentalmente esboçada, mal composta, inacabada da nossa existência cotidiana; estes grupos arbitrários, estas reuniões completamente teóricas de seres atormentados pelo tédio e pelo cansaço, nós os reconhecemos, eles são a imagem irrefutável, acusadora, das nossas sociedades heteróclitas, sem harmonia, desacordes. Europa 51, Alemanha, Ano Zero, e este filme que poderá se intitular Itália 53, como Paisá já era Itália 44, eis o nosso espelho, que não nos lisonjeia muito: esperemos ainda que este tempo, fiel por sua vez à imagem destes filmes fraternais, se oriente em segredo para uma ordem profunda, para uma verdade que lhe dará sentido e justificará, no fim, tanta desordem e tanta afobação confusa.
6.
Ah, vocês começam a se inquietar: o autor se revela; já os ouço murmurar:
panelinha, fanatismo, intolerância. Mas essa famosa e tão invocada liberdade de
expressão, em primeiro lugar liberdade de tudo exprimir de si, quem a leva mais
longe? Até ao impudor, se acrescenta então; pois o mais estranho é que ainda se
proteste, e justamente aqueles que a reivindicam mais alto (para quais fins?
Libertação do homem? Seja, mas de quais amarras? Que o homem é livre, é o que
aprendemos no catecismo, é o que simplesmente mostra Rossellini; e seu cinismo
é aquele da grande arte). Nosso amigo M. diz com elegância: “Viagem à Itália é
como os ensaios de Montaigne”, e não parece estar elogiando; permitam-me julgar
de outro modo, e me admirar que em nosso século, que nada mais poderia chocar,
alguém finja se escandalizar com o fato de um cineasta ousar falar de si sem
restrição; é verdade que os filmes de Rossellini são cada vez mais, no seu
conjunto, filmes de amador; filmes familiares: Joana D’Arc [Giovanna d’Arco al
Rogo, 1954] não é uma transposição cinematográfica do célebre oratório, mas um
simples filme-lembrança de uma representação deste por sua esposa, assim como A
Voz Humana [La voce umana, 1948] era, de início, o registro de uma performance
de Anna Magnani (o mais estranho é que, como A Voz Humana, Joana D’Arc é um
filme verdadeiro, em que a emoção nada tem de teatral, mas isso nos levaria
longe). Assim, o episódio de Nós, as Mulheres [Siamo Donne, 1953] é apenas o
relato de um dia da mãe Ingrid Bergman; assim, Viagem à Itália oferece uma
fábula transparente, e George Sanders, um rosto que não dissimula muito aquele
do cineasta (um pouco pálido talvez, mas por humildade). Eis que ele já não se
limita a filmar suas ideias, como em Stromboli ou Europa 51, e passa a abordar
também sua vida mais cotidiana. Esta vida, porém, é “exemplar” na acepção mais
goethiana: tudo nela é ensinamento, e ao mesmo tempo erro; e o relato de uma
tarde movimentada da Madame Rossellini não é mais frívolo neste conjunto do que
o longo relato por Eckermann daquele belo dia do 1o de maio de 1825, em que
Goethe e ele próprio praticaram arco e flecha. E eis o seu país, a sua cidade;
mas um país privilegiado, uma cidade excepcional, mantendo intactas a inocência
e a fé, vivendo inteiramente na eternidade; uma cidade providencial; e eis
assim o segredo de Rossellini, o de se mover com uma liberdade contínua e num
mesmo e simples movimento, no eterno visível: o mundo da encarnação; mas que o
gênio de Rossellini só seja possível no cristianismo, é um ponto sobre o qual
não insistirei, já que Maurice Schérer já o desenvolveu, melhor do que eu
saberia fazer, numa revista, se me lembro bem, os Cahiers du Cinéma.
7.
Uma tal liberdade, completa, extravagante, em que a extrema licença nunca se
exerce em detrimento do rigor interior, é uma liberdade conquistada; ou melhor,
merecida. Esta ideia de mérito é bem nova, receio eu, e surpreendente para ser
clara; e merecida como? Pela meditação, pelo aprofundamento de um pensamento ou
de um acordo central; pelo enraizamento deste germe predestinado na terra
concreta que é também a terra intelectual (“que é a mesma que a terra
espiritual”); pela obstinação, que autoriza todo abandono aos acasos da
criação, e impele mesmo a ela nosso infeliz autor. Mais uma vez, a ideia se fez
carne; a obra e a verdade por vir se transformaram na própria vida do artista,
que não pode então fazer nada que fuja deste polo, deste ponto magnético. E
receio que nós também, de agora em diante, já não possamos sair muito deste
círculo central, deste refrão fundamental retomado em coro; que o corpo é alma,
o outro eu, o objeto verdade e mensagem; eis-nos presos também a este lugar, em
que a passagem de um plano a outro é perpétua e infinitamente recíproca; em que
os arabescos de Matisse não estão apenas invisivelmente ligados ao seu fogo,
não só o figuram, mas são este fogo.
8.
Essa posição tem estranhas recompensas; mas permitam-me ainda um desvio que,
como todos os desvios, terá a vantagem de nos trazer mais rápido para onde
quero lhes conduzir (está claro, de resto, que não procuro traçar um raciocínio
concatenado, mas que me obstino antes a repetir a mesma coisa de diferentes
maneiras: a afirmá-la em tons diversos). Já falei há pouco do olhar de
Rossellini; cheguei mesmo, creio eu, a compará-lo um pouco apressadamente ao
lápis obstinado de Matisse; não importa, não podemos insistir demais no olho do
cineasta (e quem duvida que não resida aí o seu gênio?), e sobretudo na sua
singularidade; ah, não se trata tanto de cine-olho, de objetividade documental
e de outras banalidades; gostaria de fazê-los tocar (com o dedo) os verdadeiros
poderes deste olhar; que talvez não seja o mais sutil, como o de Renoir, nem o
mais agudo, como o de Hitchcock, mas o mais ativo; e não é tampouco que ele se
prenda a alguma transfiguração das aparências, como Welles, nem à sua
condensação, como Murnau, mas à sua captura: uma caça de cada instante, a cada
instante perigosa, uma busca corporal (e, portanto, espiritual; uma busca do
espírito pelo corpo), um movimento incessante de conquista e de perseguição que
confere à imagem um não sei quê de vitorioso e de inquietante ao mesmo tempo: o
próprio tom da conquista. (Mas sintam, por favor, o que há nela de diferente;
não se trata de alguma conquista pagã, de proezas de algum general incrédulo;
vocês sentem o que há de fraterno nesta palavra, e de qual conquista se trata?
O que entra nela de humildade, de caridade?).
9.
Porque “fiz uma descoberta”: há uma estética da televisão; não riam, pois é
claro que não está aí a minha descoberta; e o que é essa estética (o que ela
começa a ser), aprendi recentemente num artigo de André Bazin,
que vocês leram, assim como eu, no número colorido dos Cahiers du Cinéma (excelente revista, decididamente); mas eis o que vi: os filmes de Rossellini, embora em película, também estão submetidos a esta estética do direto, com tudo o que isso comporta de desafio, de tensão, de acaso e de providência (e isso já é uma primeira explicação do mistério de Joana d’Arc, em que cada mudança de plano parece correr os mesmo riscos e provocar a mesma angústia do que cada movimento de câmera). E eis-nos, desta vez pelo filme, escondidos na sombra, prendendo o fôlego, o olhar suspenso na tela que nos concede, enfim, tais privilégios: espiar nosso próximo com a indiscrição mais chocante, violar impunemente a intimidade física dos seres, submetidos sem saber ao nosso olhar apaixonado; e, ao mesmo tempo, [incorrer na] violação imediata da alma. É preciso, porém, punição justa, viver logo a angústia da espera, a ideia fixa daquilo que deve vir depois; que peso de tempo conferido subitamente a cada gesto; não sabemos o que vai acontecer, quando e como; pressentimos o acontecimento, mas sem vê-lo progredir; tudo aí é acidente, imediatamente inevitável; o sentimento mesmo do futuro, na trama impassível daquilo que dura. Eis aí, dizem vocês, filmes de “voyeur”? – ou de vidente.
que vocês leram, assim como eu, no número colorido dos Cahiers du Cinéma (excelente revista, decididamente); mas eis o que vi: os filmes de Rossellini, embora em película, também estão submetidos a esta estética do direto, com tudo o que isso comporta de desafio, de tensão, de acaso e de providência (e isso já é uma primeira explicação do mistério de Joana d’Arc, em que cada mudança de plano parece correr os mesmo riscos e provocar a mesma angústia do que cada movimento de câmera). E eis-nos, desta vez pelo filme, escondidos na sombra, prendendo o fôlego, o olhar suspenso na tela que nos concede, enfim, tais privilégios: espiar nosso próximo com a indiscrição mais chocante, violar impunemente a intimidade física dos seres, submetidos sem saber ao nosso olhar apaixonado; e, ao mesmo tempo, [incorrer na] violação imediata da alma. É preciso, porém, punição justa, viver logo a angústia da espera, a ideia fixa daquilo que deve vir depois; que peso de tempo conferido subitamente a cada gesto; não sabemos o que vai acontecer, quando e como; pressentimos o acontecimento, mas sem vê-lo progredir; tudo aí é acidente, imediatamente inevitável; o sentimento mesmo do futuro, na trama impassível daquilo que dura. Eis aí, dizem vocês, filmes de “voyeur”? – ou de vidente.
10.
Eis uma palavra perigosa, em torno da qual tolices foram ditas, e que não me
agrada muito escrever; vocês precisam ainda de uma definição. Mas como nomear
de outra maneira essa faculdade de ver através dos seres e das coisas a alma e
a ideia que elas carregam, este privilégio de atingir pelas aparências o duplo
que as suscita? (Seria Rossellini platônico? Por que não? Ele bem que pensava
em filmar Sócrates.)
Pois, à medida que a projeção avançava, não é mais em Matisse que eu pensava após uma hora, mas, me perdoem, em Goethe: a arte de unir primeiro em pensamento a ideia à matéria, de confundi-la com seu objeto
pelas virtudes da meditação; mas quem descreve o objeto em voz alta nomeia logo a ideia através dele. É preciso aí, evidentemente, várias condições – e não apenas esta concentração primeira, esta íntima maceração do real –, que são o segredo do artista e às quais não temos acesso; de resto, elas não são da nossa conta. Em seguida, a clareza na apresentação deste objeto, secretamente enriquecido; a lucidez e a franqueza (a famosa “descrição objetiva” de Goethe). Isto ainda não basta; é aqui que entra em jogo a ordenação, ou melhor, a própria ordem, coração da criação, desenho do criador; o que chamamos modestamente, em termos de ofício, construção (e que não tem nada a ver com o assemblage em voga, e obedece a outras leis); a ordem, enfim, que, conferindo valor segundo seus méritos a cada aparência, na ilusão de sua simples sucessão, obriga o espírito a conceber uma lei outra que a do acaso para sua sábia aparição.
Filme ou romance, a narrativa, se for grande, já sabe disso; os romancistas, os cineastas de longa data, Stendhal e Renoir, Hawks e Balzac, sabem fazer da construção a parte secreta de sua obra. O cinema esnobava, porém, o ensaio (retomo a expressão de A. M.) e renegava seus infelizes franco-atiradores: Intolerância, A Regra do Jogo, Cidadão Kane. Havia O Rio Sagrado, primeiro poema didático; há agora Viagem à Itália, que, com uma clareza perfeita, oferece enfim ao cinema (até então obrigado a narrar) a possibilidade do ensaio.
Pois, à medida que a projeção avançava, não é mais em Matisse que eu pensava após uma hora, mas, me perdoem, em Goethe: a arte de unir primeiro em pensamento a ideia à matéria, de confundi-la com seu objeto
pelas virtudes da meditação; mas quem descreve o objeto em voz alta nomeia logo a ideia através dele. É preciso aí, evidentemente, várias condições – e não apenas esta concentração primeira, esta íntima maceração do real –, que são o segredo do artista e às quais não temos acesso; de resto, elas não são da nossa conta. Em seguida, a clareza na apresentação deste objeto, secretamente enriquecido; a lucidez e a franqueza (a famosa “descrição objetiva” de Goethe). Isto ainda não basta; é aqui que entra em jogo a ordenação, ou melhor, a própria ordem, coração da criação, desenho do criador; o que chamamos modestamente, em termos de ofício, construção (e que não tem nada a ver com o assemblage em voga, e obedece a outras leis); a ordem, enfim, que, conferindo valor segundo seus méritos a cada aparência, na ilusão de sua simples sucessão, obriga o espírito a conceber uma lei outra que a do acaso para sua sábia aparição.
Filme ou romance, a narrativa, se for grande, já sabe disso; os romancistas, os cineastas de longa data, Stendhal e Renoir, Hawks e Balzac, sabem fazer da construção a parte secreta de sua obra. O cinema esnobava, porém, o ensaio (retomo a expressão de A. M.) e renegava seus infelizes franco-atiradores: Intolerância, A Regra do Jogo, Cidadão Kane. Havia O Rio Sagrado, primeiro poema didático; há agora Viagem à Itália, que, com uma clareza perfeita, oferece enfim ao cinema (até então obrigado a narrar) a possibilidade do ensaio.
11.
O ensaio, há mais de 50 anos, é a língua mesma da arte moderna; é a liberdade,
a inquietude, a busca, a espontaneidade; pouco a pouco, ele – Gide, Proust,
Valéry, Chardonne, Audiberti – matou sob si mesmo o romance; desde Manet e
Degas, ele reina na pintura e lhe confere seu modo apaixonado de proceder, sua
maneira de pesquisar e de abordar [seus objetos]. Mas vocês se lembram daquele
grupo bem simpático que, há alguns anos,
assumiu como objetivo não sei mais qual número, e não se cansava de defender a “libertação” do cinema; fiquem tranquilos, não se tratava ali do progresso do homem; simplesmente se desejava para a sétima arte um pouco deste ar mais leve em que florescem suas irmãs mais velhas; tudo vinha de um bom sentimento. No entanto, consta que alguns dos sobreviventes não gostam nada de Viagem à Itália, por incrível que pareça. Pois eis um filme que é ao mesmo tempo quase tudo o que eles defendiam: ensaio metafísico, confissão, diário de bordo, diário íntimo – e eles não o reconheceram. É uma história moral que eu fazia questão de lhes contar em detalhes.
assumiu como objetivo não sei mais qual número, e não se cansava de defender a “libertação” do cinema; fiquem tranquilos, não se tratava ali do progresso do homem; simplesmente se desejava para a sétima arte um pouco deste ar mais leve em que florescem suas irmãs mais velhas; tudo vinha de um bom sentimento. No entanto, consta que alguns dos sobreviventes não gostam nada de Viagem à Itália, por incrível que pareça. Pois eis um filme que é ao mesmo tempo quase tudo o que eles defendiam: ensaio metafísico, confissão, diário de bordo, diário íntimo – e eles não o reconheceram. É uma história moral que eu fazia questão de lhes contar em detalhes.
12.
Para isso, só encontro um motivo, e temo pecar por maldade (mas ela parece
estar em alta): é o medo doentio do gênio que reina em nossos dias. A moda
prefere a sutileza, os refinamentos, os jogos da aristocracia espiritual;
Rossellini não é sutil, mas prodigiosamente simples. Ela prefere ainda a
literatura: quem sabe fazer pastiche de Moravia é um gênio; e cada um se extasia
com os rascunhos de um Soldati, de um Wheeler, de um Fellini (falaremos noutra
ocasião do senhor Zavattini); a repetição e o tédio fazem figura de espessura
romanesca ou de senso da duração; a inércia e a moleza são o fino da sutileza
psicológica. Rossellini cai neste pântano como a pedra do urso; desvia-se com
expressão reprovadora deste camponês do Danúbio. Com efeito, nada de menos
literário ou romanesco: Rossellini não gosta muito de narrar, e menos ainda de
demonstrar; o que tem ele a ver com as desonestidades da argumentação? A
dialética é uma moça que se deita com qualquer pensamento que chega, e se
entrega a todos os sofismas; e os dialéticos são uns canalhas. Os personagens
de Rossellini não provam nada, agem: para São Francisco de Assis, a santidade
não é um belo pensamento. Se ocorre a Rossellini querer defender uma ideia, ele
não tem outro meio de nos convencer senão agir também, criar, filmar; a tese de
Europa 51, absurda a
cada novo episódio, nos maravilha cinco minutos depois, e cada sequência é, antes de tudo, o Mistério da encarnação deste pensamento; nós recusamos o desenvolvimento temático da intriga, capitulamos diante das lágrimas de Bergman, diante da evidência de seus atos e de seu sofrimento; a cada cena, o cineasta completa o teórico, multiplicando-o pela maior variável. Mas, aqui, não há o menor entrave: Rossellini não demonstra, ele mostra.
E nós vimos: que tudo na Itália carrega um sentido, que a Itália inteira é uma lição e participa de um dogmatismo profundo, que nos encontramos aí, de repente, no domínio do espírito e da alma; eis o que talvez não pertença ao reino das verdades puras, mas, pelo filme, certamente pertence ao das verdades sensíveis, ainda mais verdadeiras. Não se trata de símbolos, e já estamos a caminho da grande alegoria cristã. Tudo o que o olhar desta mulher errante, perdida no reino da graça, encontra agora, estas estátuas, estes amantes, estas mulheres gordas que em toda parte lhe fazem um cortejo obsessivo, e depois estas estátuas funerárias [gisants], estes crânios, estas bandeiras, esta procissão de um culto quase bárbaro, tudo irradia agora com uma outra luz, tudo se afirma como outra coisa; eis visivelmente sob nossos olhos a beleza, o amor, a maternidade, a morte, Deus.
cada novo episódio, nos maravilha cinco minutos depois, e cada sequência é, antes de tudo, o Mistério da encarnação deste pensamento; nós recusamos o desenvolvimento temático da intriga, capitulamos diante das lágrimas de Bergman, diante da evidência de seus atos e de seu sofrimento; a cada cena, o cineasta completa o teórico, multiplicando-o pela maior variável. Mas, aqui, não há o menor entrave: Rossellini não demonstra, ele mostra.
E nós vimos: que tudo na Itália carrega um sentido, que a Itália inteira é uma lição e participa de um dogmatismo profundo, que nos encontramos aí, de repente, no domínio do espírito e da alma; eis o que talvez não pertença ao reino das verdades puras, mas, pelo filme, certamente pertence ao das verdades sensíveis, ainda mais verdadeiras. Não se trata de símbolos, e já estamos a caminho da grande alegoria cristã. Tudo o que o olhar desta mulher errante, perdida no reino da graça, encontra agora, estas estátuas, estes amantes, estas mulheres gordas que em toda parte lhe fazem um cortejo obsessivo, e depois estas estátuas funerárias [gisants], estes crânios, estas bandeiras, esta procissão de um culto quase bárbaro, tudo irradia agora com uma outra luz, tudo se afirma como outra coisa; eis visivelmente sob nossos olhos a beleza, o amor, a maternidade, a morte, Deus.
13.
Todas estas noções estão fora de moda; ei-las, porém, visíveis. Só nos resta
esconder o rosto ou nos ajoelhar.
Há um instante em Mozart no qual a música não parece mais se nutrir senão dela mesma, da obsessão de um acorde puro, todo o resto ficando relegado a aproximações, aprofundamentos sucessivos, e retornos deste lugar supremo onde o tempo é abolido. Toda a arte talvez só atinja sua plenitude na destruição passageira dos seus meios, e o cinema nunca é maior do que em certos instantes que ultrapassam e suprimem bruscamente o drama: penso nos rodopios ardentes de Lillian Gish, na imobilidade prodigiosa de [Emil] Jannings, nos admiráveis repousos do Rio Sagrado, na cena noturna, nos despertares e nos adormecimentos de Tabu15; em todos aqueles planos que os maiores cineastas sabem inserir no meio de um western, de um filme policial, de uma comédia, em que o breve olhar sobre si mesmo do protagonista abole bruscamente o gênero (e, sobretudo, nas duas confissões de [Ingrid] Bergman e Anne Baxter, estes dois longos retornos a si das personagens que são o centro exato e o núcleo de Sob o Signo de Capricórnio e A Tortura do Silêncio). Aonde quero chegar com tudo isto? Ao fato de que nada revela melhor o grande cineasta em Rossellini do que estes largos acordes que são, no meio de seus filmes, todos os planos de olhares, sejam eles os do jovem garoto para as ruínas de Berlim, os de [Anna] Magnani para a montanha de O Milagre, os de [Ingrid] Bergman para a periferia de Roma ou para a ilha de Stromboli, para toda a Itália enfim (e, a cada vez, os dois planos, o da mulher que olha, depois o do seu olhar e, às vezes, os dois fundidos); uma nota alta e bruscamente alcançada, que resta manter por ínfimas modulações e retornos perpétuos à dominante (vocês conhecem a “Cantata 1952” de Stravinsky?); assim as estrofes sucessivas dos Fioretti (Francisco, Arauto de Deus) se encadeiam sob o baixo (decifrável) da caridade. Ou é no coração do filme, este momento em que os personagens vivem contra o seu fundo e se procuram sem sucesso visível; essa vertigem de si que os domina, como no centro da sinfonia o próprio deleite por si mesmo da nota fundamental; de onde vem a grandeza de Roma, Cidade Aberta [Roma, Città Aperta, 1945] ou de Paisá, senão deste brusco repouso dos seres, destes ensaios imóveis diante da fraternidade impossível; desta súbita lassidão, que os paralisa um segundo no seio mesmo da ação. A solidão de [Ingrid] Bergman está no centro de Stromboli como no de Europa 51: ela gira em vão, sem progresso aparente; ela avança, porém, sem saber, pelo próprio desgaste do tédio e do tempo, que não poderão resistir a um esforço tão prolongado, a um retorno tão obstinado sobre a sua queda, uma fadiga tão pouco cansada, tão ativa, tão impaciente, que acabará por vencer o muro da inércia e do abandono, esse exílio do verdadeiro reino.
Há um instante em Mozart no qual a música não parece mais se nutrir senão dela mesma, da obsessão de um acorde puro, todo o resto ficando relegado a aproximações, aprofundamentos sucessivos, e retornos deste lugar supremo onde o tempo é abolido. Toda a arte talvez só atinja sua plenitude na destruição passageira dos seus meios, e o cinema nunca é maior do que em certos instantes que ultrapassam e suprimem bruscamente o drama: penso nos rodopios ardentes de Lillian Gish, na imobilidade prodigiosa de [Emil] Jannings, nos admiráveis repousos do Rio Sagrado, na cena noturna, nos despertares e nos adormecimentos de Tabu15; em todos aqueles planos que os maiores cineastas sabem inserir no meio de um western, de um filme policial, de uma comédia, em que o breve olhar sobre si mesmo do protagonista abole bruscamente o gênero (e, sobretudo, nas duas confissões de [Ingrid] Bergman e Anne Baxter, estes dois longos retornos a si das personagens que são o centro exato e o núcleo de Sob o Signo de Capricórnio e A Tortura do Silêncio). Aonde quero chegar com tudo isto? Ao fato de que nada revela melhor o grande cineasta em Rossellini do que estes largos acordes que são, no meio de seus filmes, todos os planos de olhares, sejam eles os do jovem garoto para as ruínas de Berlim, os de [Anna] Magnani para a montanha de O Milagre, os de [Ingrid] Bergman para a periferia de Roma ou para a ilha de Stromboli, para toda a Itália enfim (e, a cada vez, os dois planos, o da mulher que olha, depois o do seu olhar e, às vezes, os dois fundidos); uma nota alta e bruscamente alcançada, que resta manter por ínfimas modulações e retornos perpétuos à dominante (vocês conhecem a “Cantata 1952” de Stravinsky?); assim as estrofes sucessivas dos Fioretti (Francisco, Arauto de Deus) se encadeiam sob o baixo (decifrável) da caridade. Ou é no coração do filme, este momento em que os personagens vivem contra o seu fundo e se procuram sem sucesso visível; essa vertigem de si que os domina, como no centro da sinfonia o próprio deleite por si mesmo da nota fundamental; de onde vem a grandeza de Roma, Cidade Aberta [Roma, Città Aperta, 1945] ou de Paisá, senão deste brusco repouso dos seres, destes ensaios imóveis diante da fraternidade impossível; desta súbita lassidão, que os paralisa um segundo no seio mesmo da ação. A solidão de [Ingrid] Bergman está no centro de Stromboli como no de Europa 51: ela gira em vão, sem progresso aparente; ela avança, porém, sem saber, pelo próprio desgaste do tédio e do tempo, que não poderão resistir a um esforço tão prolongado, a um retorno tão obstinado sobre a sua queda, uma fadiga tão pouco cansada, tão ativa, tão impaciente, que acabará por vencer o muro da inércia e do abandono, esse exílio do verdadeiro reino.
14.
A obra de Rossellini “não é alegre”; ela é mesmo profundamente séria e recusa
totalmente a comédia; imagino que Rossellini condenaria o riso com a mesma
virulência católica que Baudelaire; (e o catolicismo também não é alegre, apesar
dos bons apóstolos; Onde Está a Liberdade? [Dov’é la Libertá?, 1954] deve ser,
deste ponto de vista, curioso de se ver). O que ele diz incansavelmente? Que os
seres estão sozinhos e numa solidão irredutível, que só temos do outro uma
ignorância total, salvo milagre ou santidade; que só a vida em Deus, em seu
amor e seus sacramentos, só a comunhão dos santos, podem nos permitir
encontrar, conhecer, possuir um outro ser além de nós mesmos; e que não nos
conhecemos nem nos possuímos senão em Deus. Através de todos estes filmes, os
destinos humanos traçam curvas separadas que só se cruzam por acidente; face a
face, homens e mulheres se fecham em si mesmos e prosseguem seu monólogo
obsessivo, relação do “universo concentracionário” dos homens sem Deus.
No entanto, Rossellini não é apenas cristão, mas católico; ou seja, carnal até o escândalo; nos lembramos do escândalo de O Milagre; mas o catolicismo é por vocação uma religião escandalosa; que o nosso corpo também participe do mistério divino, à imagem do corpo de Cristo, não é do gosto de todo mundo, e há decididamente neste culto, que faz da presença carnal um dos seus dogmas, um sentido concreto, pesado, quase sensual, da matéria e da carne, que repugna fortemente os puros espíritos: sua “evolução intelectual” não lhes permite mais participar de mistérios tão grosseiros. E, além disso, o protestantismo está mais na moda, particularmente entre os céticos e os libertinos; eis uma religião mais intelectual, um pouco abstrata, que lhes apresenta logo seu homem; as ascendências huguenotes douram certamente um brasão. Não esquecerei tão cedo as caras desgostosas com que alguns falavam, não há muito, dos choros e das fungadas de [Ingrid] Bergman em Stromboli. E é preciso reconhecer, eles vão (Rossellini vai frequentemente) até os limites do suportável, do que se pode decentemente admitir, até a beira do despudor. No filme, a direção de Bergman por Rossellini é toda conjugal, e baseia-se mais no conhecimento íntimo da mulher do que no da atriz; digamos também que nosso pequeno mundo do cinema admite mal uma tal ideia do amor (que nada tem de louco ou alegre), uma concepção tão séria e verdadeiramente carnal (não temamos repetir esta palavra) de um sentimento hoje disputado pelo angelismo e pelo erotismo, quando eles não se associam; que os nossos Dolmancés se choquem com sua representação (ou mesmo só com sua imagem em filigrana, através do rosto da esposa submissa), como de alguma obscenidade estranha aos seus agradáveis, ligeiros – e tão modernos – caprichos.
15. Paremos aqui; mas vocês
compreendem agora o que é esta liberdade: a da alma ardente, no seio da
providência e da graça, que nunca a abandonam em suas tribulações, salvando-a
dos perigos e dos erros e usando todas as provações em proveito da sua glória.
Rossellini tem o olho de um moderno, mas o espírito também: ele é o mais
moderno de nós todos. E o catolicismo ainda é o que ele tem de mais moderno.No entanto, Rossellini não é apenas cristão, mas católico; ou seja, carnal até o escândalo; nos lembramos do escândalo de O Milagre; mas o catolicismo é por vocação uma religião escandalosa; que o nosso corpo também participe do mistério divino, à imagem do corpo de Cristo, não é do gosto de todo mundo, e há decididamente neste culto, que faz da presença carnal um dos seus dogmas, um sentido concreto, pesado, quase sensual, da matéria e da carne, que repugna fortemente os puros espíritos: sua “evolução intelectual” não lhes permite mais participar de mistérios tão grosseiros. E, além disso, o protestantismo está mais na moda, particularmente entre os céticos e os libertinos; eis uma religião mais intelectual, um pouco abstrata, que lhes apresenta logo seu homem; as ascendências huguenotes douram certamente um brasão. Não esquecerei tão cedo as caras desgostosas com que alguns falavam, não há muito, dos choros e das fungadas de [Ingrid] Bergman em Stromboli. E é preciso reconhecer, eles vão (Rossellini vai frequentemente) até os limites do suportável, do que se pode decentemente admitir, até a beira do despudor. No filme, a direção de Bergman por Rossellini é toda conjugal, e baseia-se mais no conhecimento íntimo da mulher do que no da atriz; digamos também que nosso pequeno mundo do cinema admite mal uma tal ideia do amor (que nada tem de louco ou alegre), uma concepção tão séria e verdadeiramente carnal (não temamos repetir esta palavra) de um sentimento hoje disputado pelo angelismo e pelo erotismo, quando eles não se associam; que os nossos Dolmancés se choquem com sua representação (ou mesmo só com sua imagem em filigrana, através do rosto da esposa submissa), como de alguma obscenidade estranha aos seus agradáveis, ligeiros – e tão modernos – caprichos.
Vocês estão cansados de me ler; eu começo a ficar cansado de escrever, minha mão, ao menos, está cansada; pois teria gostado de lhes dizer ainda várias coisas. Uma bastará: a novidade impressionante das atuações, que parecem apagadas, mortas pouco a pouco por uma exigência mais alta; todos os gestos, os impulsos, as exuberâncias devem ceder a esta restrição íntima que os obriga a se apagar e a escoar na mesma humildade apressada, como se corressem para chegar ao fim. Esta maneira de esvaziar os atores deve revoltá-los frequentemente, mas há um tempo para escutá-los e outro para fazê-los calar. Se vocês querem minha opinião, creio que esta é a verdadeira atuação do cinema de amanhã. E, no entanto, quanto amor tivemos pela comédia americana e por tantos filminhos cujo charme estava quase todo na invenção impetuosa dos movimentos e das atitudes, nos achados espontâneos de um ator, nas caretas gentis, no piscar de olhos de uma atriz ágil e agradável... Se até ontem era verdade que um dos objetivos do cinema é esta busca deliciosa do gesto, se isto ainda era verdade até dois minutos atrás, talvez tenha deixado de sê-lo depois deste filme; há nele uma ausência de busca superior a todo sucesso, um abandono mais belo que todo entusiasmo, um desfecho mais inspirado do que a performance mais sensacional de qualquer diva. Este aspecto cansado, este hábito de todos os gestos, tão profundo que o corpo já não os realça mais, mas os retém e guarda em si, eis a única atuação que poderemos saborear em muito tempo; depois deste sabor amargo, toda gentileza perde a graça e a memória.
16. Depois do aparecimento de Viagem à Itália, todos os filmes subitamente envelheceram dez anos; nada mais implacável do que a juventude, do que esta intrusão categórica do cinema moderno, em que podemos enfim reconhecer o que esperávamos de maneira confusa. Com o perdão dos espíritos desgostosos, é isso que os choca e os importuna, é isso que procede hoje, e que é verdadeiro em 1955. Eis nosso cinema, a nós que nos preparamos, por nossa parte, para fazer filmes (já lhes disse, talvez seja para daqui a pouco); já fiz, para começar, uma alusão a ele que lhes intrigou: haverá uma escola Rossellini? E quais serão seus dogmas? Não sei se há escola, mas sei o que é preciso: trata-se, em primeiro lugar, de nos entendermos sobre o sentido da palavra realismo, que não é uma simples técnica de roteiro, nem um estilo de mise-en-scène, mas um estado de espírito: que a linha reta é o caminho mais curto de um ponto a outro (julguem desta perspectiva vossos De Sica, Lattuada, Visconti). Em
segundo lugar: malditos sejam os céticos, os lúcidos, os circunspectos; a ironia e o sarcasmo já tiveram seu tempo; trata-se enfim de amar o cinema com força bastante para não saborear muito aquilo que atende hoje por este nome, e para querer dar dele uma ideia um pouco mais exigente. Vocês veem que isso não constitui um programa, mas pode bastar para estimular a agir.
Eis uma carta bem longa. É preciso desculpar os solitários; o que eles escrevem se parece com cartas de amor que se enganaram de endereço. E, além disso, creio não existir hoje assunto mais premente.
Uma última palavra: comecei com uma frase de Péguy; eis aqui uma outra que lhes ofereço para concluir: “O kantismo tem as mãos puras (Kant e Lutero, e você também, Jansen, deem as mãos), mas ele não tem mãos”.
Creiam-me sempre devotado a vocês, Jacques Rivette.
(Texto retirado do catálogo “Jacques Rivette – Já Não Somos Inocentes” e originalmente publicado na revista Cahiers du Cinéma, n. 46, abril de 1955.)
Gente, voce salvou o meu dia, estou em um curso de cinema em Montreal, já li esse texto mil vezes em Frances e esta bem dificil, por mais que eu saiba o francês. Voce salvou meu dia :) Muito Obrigada
ResponderExcluirDe nada!
ExcluirFico feliz que essa publicação tenha te ajudado.
Caso tenha interesse no catálogo do Jacques Rivette do qual retiramos esse texto, segue o link para o download:
https://vaievemproducoes.files.wordpress.com/2013/09/rivette-miolo-final.pdf
Cara..vcs são demais!
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