quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Estranha Compulsão


(Compulsion, Richard Fleischer, EUA, 1959)

Uns óculos caídos sem explicação na cena do crime. São eles que vão fazer vacilar o crime perfeito. São eles que tudo ensombrarão no último fôlego de uma longa caminhada sobre um abismo de nada. E Deus. E Orson Welles, possuindo um advogado sem escrúpulos e sem piedade e se calhar sem sangue, que é o mais violento ser deste pós-apocalíptico circo, vai fechar o vórtice desenhado por Richard Fleischer em “Compulsion”, de uma forma e com uma lábia que é inútil traduzir em palavras que diminuam a sua expressão e jogo de cintura. Pode-se dizer que a pressão que mete em quem o escuta, ao dizer que o mal não vai matar o mal, que o poder não se pode comportar como as bestas que praticaram o acto inominável em causa, bestas defendidas por ele, ou, talvez o cúmulo, que levá-los à forca seria regredir brutalmente na concepção e busca de uma humanidade melhor. Discurso, ética e estética que está ao nível do que Chaplin fez em “The GreatDictator” e que será o apogeu do Welles actor e do Welles encenador, medonha caveira carcomida a insónias.

Super-Homem, Nietzsche, indiferença emocional, gelo, desprezo, superioridade, relativismo filosófico, liderança suprema, Moisés, arrogância legítima, virtudes incompreensíveis ao rasteiro…e cada vez mais supremos até de tudo estarem desprendidos. Judd e Straus, o paranoico e o esquizofrénico, querem estar para além ou para aquém do bem e do mal, do certo e do errado, sem cauções de sanidade judicial ou medicinal. Querem-se fundir num e praticar o mal de cada vez pior, horrifico, limpo, inconsequente. Aglutinação de carnes tenras que compreende o sensível, o moral e, de maneira mais aparentemente soterrada, o sexual. Fortíssimo filme erótico de uma carga e tensão a rebentar as bordas do scope em constante desequilíbrio. Ora abarcando, ora isolando lá pelos cantos mortos.

Sem paixão, sem amor, sem desculpas. Judd cultiva arrepiosos animais empalhados, Strauss brinca com manhosos ursinhos sorridentes. Judd tenta ser mais perfeito do que o mestre sodomizante, mas acaba vergado às confusões e sensações que os olhos e o roçar numa moça loira produzem. Uma espécie ou um concurso mesmo de Supra-Deuses que só finda quando o primeiro for ao tapete ou à ultra referida guilhotina. História passional entre dois homens em que o reflexo é história de horror sem causa. O que falhou e os levou ao encarceramento eterno que se revela mais cruel do que a corda que os esganaria de vez?

Uns óculos que vão baralhar e atrofiar tudo, alibis, argumentos, nexos, personalidades? A formosa Ruth fala na infelicidade do paranoico. O Wilk de Welles vai por caminhos patológicos, advogando por amor. Mas neste cruzamento ou atamento entre o “Rope” de Hitchcock com os vampiros libertinos e sugadores que Abel Ferrara pôs à luz do dia em “The Addiction”, a escorregadela ou a falha que se detecta mesmo mesmo no ressoar derradeiro, aqui a coisa é estendida e distendida e reinventada para lá mesmo do último apito do árbitro, é a sentença privada e nocturna de Welles. Muito mais sentenciosa e fatalista do que a do oficial, e que reza, no idioma original, assim – “In thoseyearsto come youmightfindyourselfasking...if it wasn'tthehandofGoddroppedthoseglasses. Andifhedidn't, whodid?” Pumba, The End.

Não querendo puxar a brasa a nenhuma sardinha, muito menos ter certezas num palco onde elas estão fora de serviço, faltou aos dois putos espertos e mais ainda ao cabecilha o que faltou ao artista de “ArmoredCarRobery”, sendo esta uma rima perfeita ou um chafurdamento mais fundo - o respeito ou a simples consciência de uma possível transcendência, ilógica ou lógica à sua maneira, isto para não usar ou deixar em elipse metáforas ou habitantes divinos. O que transporta este filme para outro degrau ou patamar é precisamente a elevação desta questão ou desta incógnita, infinitesimal ou colossal, a estrados metafísicos, em consonância com todas as verborreias que escorrem no ora metálico ora viscoso preto e branco. Fora ou além da esfera e do peso dos corpos, do dinheiro, da posição social. Em amplitudes que justamente ao evocarem o contrário do mal só para ele caminham e o largam, besta na selva. Mal difuso que se entranha e não se isola do bem. Terror da beleza e beleza do terror, como também lá se diz.

Irracional, inaudito, insuperável. Mente que não calámos, alma que não acedemos, rol de eventos que corre imperialmente, fazendo-nos ajoelhar quando e onde quiser. Fora do que podemos tocar plana o que não podemos tocar. Ou ver. Sentir. O que nos foge ou seca como a água sobre a pele quente. Como pergunta terminal do que andamos aqui a fazer, para quê, porquê. O que Fleischer largou às feras é a impossibilidade da cura. Reconciliação. Abraço. De um modo tão amplo e circular que só podemos responder como responde aquele Straus das certezas todas – de boca cosida.

Confrontar se faz favor, para fins de outro tipo de inteligência, os dois tipos de tratamento da realização, isto é, antes de Welles e depois de Welles, que invade e tudo modifica num rompante sereno. Serenidade filha-da-puta. Duas partes distintas, duas respirações, duas pulsões. Como se na primeira não houvesse nada da ordem da crença e estivéssemos a flutuar e a pairar num crispado vácuo. Cenas e planos que se chocam e entrechocam, durações e ritmos convulsos, perigoso atrito, olhares desencontrados. E na segunda fossem precisos os caminhos e os saberes, por exemplo, de uma découpage que permita dar luta ou emplacamento àquele Altíssimo ou àquele Diabo que suga tudo do campo. Olhar encontrado, escansão, movimento e significâncias tão claras como negras. E no embate do claro e do negro estará o tom geral. De onde o choque dual produz o que lá está. Sem resoluções.

José Oliveira
(Texto original: 
http://raging-b.blogspot.com.br/2013/08/uns-oculos-caidos-sem-explicacao-na.html)

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