por Manuel S. Fonseca
Nos Verdes Anos, a pertinência da utilização do termo “novo” é de tal
ordem que não seria difícil encontrar mais de uma dúzia de aplicações oportunas
e razoáveis. Ressalvando o “Caso Oliveira”, não deve haver outro exemplo assim
no cinema português. Adiante se conversará de escolhas estéticas, mas basta
começar por onde se deve começar, pelo princípio: repare-se que Os Verdes Anos é a obra de estreia de um
realizador, e é o filme de entrada de cena de um novo produtor, de novos
técnicos, de novos actores, sem falar da novidade que representam os diálogos
de Nuno de Bragança ou a música de Carlos Paredes.
Mas quando se diz “novo” a
propósito de Verdes Anos, quer
dizer-se mais do que a simples circunstância da estreia. Do que estamos ou
devemos falar é do início efectivo de uma nova concepção de prática
cinematográfica em Portugal, desde os processos de produção até a uma
compreensão de mise-en-scène que viria a repor o entendimento do cinema como um
fim no lugar do meio que quase fora nas décadas anteriores, em Portugal. Por
esta razão, discordo em absoluto das leituras ainda hesitantes que, por vezes,
insinuam que talvez o “cinema novo” tenha começado com Dom Roberto de Ernesto
Souza e com Pássaros de asas cortadas
de Artur Ramos. Repare-se que, se quisermos por mera especulação, os factos
corroboram a novidade radical de Os Verdes Anos. Não só o filme se inseria numa
estratégia de produção que visava à continuidade (um produtor, Cunha Telles,
reúne à sua volta os cineastas disponíveis – disponibilidade física e teórica,
entenda-se – e são eles Paulo Rocha, Fernando Lopes, Fonseca e Costa e António
de Macedo), como igualmente essa produção se dotara previamente de quadros
técnicos formados pelo 1º Curso de Cinema do Estúdio Universitário de Cinema
Experimental, onde Cunha Telles era também elemento capital, e donde, no
domínio da fotografia, do som e da montagem sairiam as figuras de referência de
todo o cinema português que se segue aos Verdes
Anos, pelo menos até aos anos oitenta. A simples leitura das fichas
técnicas de Verdes Anos, Belarmino,
Domingo à tarde mostra a existência de um corpo unificado que acompanha os
realizadores dos filmes produzidos por Cunha Telles (lá estão Fernando Matos
Silva, Elso Roque, Acácio de Almeida, Alexandre Gonçalves). Não falo sequer da
diferença de espírito entre Os Verdes
Anos e os “pré-históricos” Dom Roberto e Pássaros de asas cortadas, ou da abissal diferença de repercussão
na crítica europeia, ou até do envelhecimento destes últimos filmes quando
comparados com o crescente enriquecimento que a passagem do tempo parece ter
trazido aos Verdes Anos...
Por vezes – e uma vez não são
vezes – não é despiciendo falas de grandezas, cabendo dizer-se que há em Paulo
Rocha uma grandeza, ainda que não da mesma ordem da de Oliveira, que jogou
contra o sucesso de Os Verdes Anos, em termos imediatos. Essa
grandeza é da irrisão dos temas face à sua visualização. Daí que, computados os
seus filmes, parece haver, em comparação com Oliveira, por exemplo, uma
dispersão temática que faz da obra de Rocha uma obra aparentemente sem núcleo.
Falta ainda, e não é este o lugar próprio para fazer a leitura que esses filmes
“pedem”, uma leitura eminentemente visual, onde os temas sejam parte
subsidiária, estabelecendo, então sim, os pontos que podem dar unidade a filmes
tão distintos como Os Verdes Anos e Vanitas.
Não admira que, nos anos
sessenta, a recepção crítica portuguesa aos Verdes
Anos fosse, por isso mesmo, extremamente equívoca. (E, até nisso o filme de
Paulo Rocha é distinto de Dom Roberto
e, sobretudo, dos Pássaros...). A crítica, dominada pela urgência
social – pela ditadura do neo-realismo, se quisermos chamar as coisas pelo seu
nome –, que obrigatoriamente exigia à obras “uma estrutura verdadeiramente
dialéctica” (a expressão é da época) agarrou-se à história, ainda por cima com
um tema tão socialmente prometedor, do jovem provinciano que chega à cidade,
apostando tudo nesse confronto entre campo e cidade.
Numa entrevista da altura (Jornal de Letras e Artes, 6 de Maio de
64), Paulo Rocha bem tenta desfazer o equívoco: “Normalmente estamos habituados
a sobrevalorizar a história em relação à mise-en-scène. Nos Verdes Anos tentou-se ir contra isso. O
que mais interessava era a relação entre o décor e o personagem, o tratamento
da matéria cinematográfica. Eram as
linhas de força, num plano, que davam o seu peso e a sua importância”. Foi isso
que a crítica “socialmente empenhada” não compreendeu, nem poderia, por
desajustamento dos parâmetros de avaliação, compreender. Daí que se falasse num
filme “mecânico no retrato das relações sociais”, ou de um filme com evidente
“insuficiência de notação psicológica” das personagens. Apetece dizer que
tinham razão, embora não fosse a razão que julgavam ter.
Ilda (Isabel Ruth) e Júlio (Rui
Gomes) não têm, de facto, profundidade psicológica, em sentido tradicional,
quero dizer, literário. No entanto, se pensarmos visualmente Os Verdes
Anos, descobriremos que a raiz social comum das duas personagens, é
pulverizada pela diferença de espaços que habitam, diferença que o filme de
Paulo Rocha rigorosa e obsessivamente mostra. Júlio está indissoluvelmente
ligados às caves (a sapataria) e a sua visão é determinada pela esquadria
rectangular e horizontal da janela que fica ao nível da rua. Repare-se, aliás,
que a personagem é sempre associada ao tema pontuador dos sapatos, outra das
referências ao ponto de vista raso que é o seu. (Parêntesis para estabelecer
filiações cinéfilas: é por esse ponto de vista raso e ao nível do solo e pela
divisão em linhas horizontais do espaço de cada enquadramento que a herança
japonesa, de que Paulo Rocha se reivindica, está já presente nos Verdes Anos).
Ilda situa-se ao nível médio do
espaço urbano, onde, ao contrário de Júlio, se move com ligeireza e à vontade.
Comungando da mesma origem social, Júlio e Ilda estão separados pela
arquitectura e, arquitectuta oblige,
pelo comportamento. Por aqui se vê que, mesmo a título de leitura sociológica
da cidade no fim do salazarismo, o filme de Paulo Rocha fartava-se de ser agudo
e pertinente. Também aqui se justifica a abertura de um segundo parêntesis para
estabelecer influências e afinidades: a disposição arquitectónica de Os Verdes Anos pode ver-se como uma
homenagem a Fritz Lang, cuja influência me parece igualmente incontestável na
criação desse clima negro que, a pouco e pouco, se vai apoderando da cidade,
até culminar no “episódio daquela noite”. É esse crescendo nocturno, tão
característico do Lang “americano”, que nos prepara afinal para a sequência
fatal, suavizando a sua aparente e abrupta irracionalidade.

No seu livro, Vinte Anos de Cinema Português: 1962-1982,
Eduardo Prado Coelho, num texto de análise aos Verdes Anos insiste na desproporção “entre a placidez em que todo o
filme decorre e o gesto final, violento e desmesurado, de Júlio”, apontando
essa desproporção como “uma das molas dramáticas mais interessantes deste
filme”, embora não deixe de nos avisar contra o “melodramatismo bastante
incomodativo”. Ao invés, Paulo Rocha sustenta que “se em vez de estarem atentos
à história e às palavras, olhassem o tratamento dado a estas, não haveria
dúvida possível, ao nível da mise-en-scène era uma progressão inexorável”. Em
que devemos ficar: na desproporção de Prado Coelho ou na inexorável progressão
de Paulo Rocha?
Já que este é um texto de “desacordos”
feito, permito-me discordar também de Eduardo Prado Coelho. De resto, toda a
leitura de Os Verdes Anos é ainda, salvo retórica própria, muito semelhantes às
leituras temáticas dos anos sessenta, ou seja, uma leitura de privilégio do
temático em detrimento do formal. Só isso explica que se fale de “ingenuidade
do protagonista” ou que se opte pela classificação simples de “um filme de
campo contra a cidade”. Eduardo Prado Coelho deixou-se iludir, creio, pelas
falsas pistas que Paulo Rocha espalhou pelo filme, a começar pela mais óbvia, a
do título. De facto, a última coisa de que aqui se trata é de “verdes anos”.
Estamos, desde o princípio, perante uma personagem (Júlio) que simula “bons
sentimentos”, mas cuja contenção – e até uma certa gaucherie de comportamento – silencia o pendor trágico. Que a
tragédia seja filmada tão subtilmente – como se de um murmúrio se tratasse –
eis o que despistou mesmo os mais avisados, fazendo-os deslizar para a visão
meramente lírica, sem perceberem que, em filigrana, todo o filme fala do
sentimento do náufrago e que a explosão – se quiserem, para voltarmos à
disposição arquitectónica, o nivelamento do subterrâneo e das alturas – está sempre
prestes a irromper.
Os Verdes Anos é um filme
do subterrâneo contra a altura, é um filme sobre a ascensão e o mergulho. Não
sou eu quem o diz. É o plano de pedra lançada ao poço, é a cena do elevador de
Santa Justa, com a sintomática réplica do tio a propósito “dos tipos que se
lançam dali a baixo”, quem o diz é a sequência do par em casa dos patrões, terminando
com o contra-plongé dos tectos e candeeiros, metáfora de um mundo às avessas em
que o constrangimento de Júlio nunca é escamoteado. Afinal, todo o filme é a
lenta e delicadíssima maturação da sequência final, constituída por dois
movimentos tão bruscos como lógicos: em primeiro lugar, a subida rápida de
Júlio a casa dos patrões de Ilda, dando-se o caso, mas não o acaso, de ser essa
a primeira vez que Júlio se comporta de um modo quase alegre e, dir-se-ia,
aliviado; em segundo lugar, após o crime, temos a descida abrupta pelas escadas
– e o elevador, e os medos que ele desperta, é, como os sapatos, um dos sinais
pontuadores recorrentes, a merecer por si uma tese – até aos três planos
finais, esmagadores, repondo (e a figura que se desenha é a pirâmide) a
hierarquia da ordem humana e divina, e impondo um silêncio que fica como o
melhor som de Os Verdes Anos. Tão sublime como esse silêncio é apenas a elipse
portentosa do crime, humilde homenagem de Paulo Rocha a Jean Renoir, de quem
foi assistente em Le Caporal Epinglé
[O Cabo Ardiloso, 1962], tão semelhante é o pudor demonstrado, como assinalou, em 1963, em texto
publicado no Jornal de Arte e Letras,
António-Pedro Vasconcelos, para que, depois, Alberto Vaz da Silva, no Tempo e o Modo, pudesse, na mais bela
síntese do filme, assumir criticamente a importância dos Verdes Anos, e cito: “os filmes belos como o seu conhecem-se como o
cristal, pelo toque”.
Texto em português de Portugal. Disponível em “Paulo Rocha: As folhas
da cinemateca”, páginas 31-35, Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema (livro
indisponível no Brasil).