- Da abjeção (1961), de Rivette, passados 60 anos
- O travelling de Kapò (1992), de Daney, quase 30 anos depois
“Tudo que seu mestre mandar...nós o faremos todo!
- E quem não fizer... ganhará um bolo!”
Cancioneiro infantil
Sem nenhuma dúvida Pontecorvo fez péssimas escolhas em Kapò (1960), todas tributárias de um pecado original: adotar o horror indizível – o Holocausto – como pano de fundo para um romance melodramático. O resto é pura consequência. O filme, entregue a si mesmo, teria sido arquivado sem ódio. Arrisco dizer que desapareceria da história, como tanta coisa ruim que se fez, se faz e se fará, porque, afinal, perfeitos só nós mesmos.
Entretanto, graças a Jacques Rivette, secundado por Serge Daney, Pontecorvo contribuiu para um importante debate na Cultura, porque o erro também ensina, tanto quanto, às vezes mais, que o acerto. Passado mais de meio século, ele ainda é lembrado, porque Rivette o condenou em um parágrafo extorsivo, no sentido de que não deixa espaço para o livre julgamento – e eventual discordância - de quem o lê: não sem pagar o preço de se expor a ser declarado igualmente abjeto. Ao mesmo tempo, Rivette condecorou o próprio peito com a comenda da boa consciência (Eu sei: não foi só isso que ele fez em seu admirável artigo – mas para mim é inegável que também fez isso).
Daney, 30 anos mais tarde, não só subscreveu Rivette como deu testemunho, até com certo orgulho, do efeito extorsivo que Da Abjeção exerceu sobre ele. Transcrevo de O travelling de Kapò, de sua autoria:
Entre os filmes que eu nunca vi... o obscuro Kapò. Filme sobre os campos de concentração, rodado em 1960 pelo cineasta italiano de esquerda Gillo Pontecorvo, Kapò não firmou seu nome na história do cinema. Serei eu o único, nunca o tendo visto, a jamais tê-lo esquecido? Porque eu não vi Kapò mas, ao mesmo tempo, vi. Eu vi porque alguém, com palavras, me mostrou.
Ou seja, depositando uma importante contribuição à arte de se estudar Cinema sem ver os filmes (eu sei: não foi só isso que ele fez em seu admirável artigo – mas para mim é inegável que também fez isso), baseado tão somente no que leu, Daney considera-se apto a criticar o trabelling de Kapò, a partir do texto de Rivette, que ele, Daney, transcreve como se segue:
Rivette tinha trinta e três anos e eu tinha dezessete. Acho que nem tinha ainda pronunciado a palavra abjeção em minha vida. Em seu artigo, Rivette não contava o filme. Ele se contentava, em uma frase, em descrever um plano. A frase que ficou na minha memória dizia assim “Vejamos agora, em Kapò, o plano em que Riva se suicida jogando-se sobre o arame farpado eletrificado: o homem que decide, nesse momento, fazer um travelling para a frente e reenquadrar o cadáver em contra-plongée, tomando cuidado para inscrever exatamente a mão levantada num ângulo do enquadramento final, esse homem só tem direito ao mais profundo desprezo”.
A partir do texto de
Rivette, que Daney qualifica como abrupto e luminoso, este segue
dizendo:
Ao passar dos anos, com efeito, o travelling de Kapò foi o meu dogma de carteirinha, o axioma que não se discutia, o ponto limite de todo debate. Com qualquer um que não sentisse imediatamente a abjeção do travelling de Kapò eu não teria, definitivamente, nada a ver, nada a partilhar. Esse tipo de recusa estava, aliás, no ar da época.
Destaco o arremate - Esse tipo de recusa estava, aliás, no ar da época - e sigo para as reflexões que realmente quero partilhar.
A primeira reflexão
é uma espécie de assombro assustado: quer dizer, então, que esse “tipo de
recusa” já estava “no ar da época”. Ou seja, o que hoje testemunhamos entra
como um nada de novo debaixo do sol (Eclesiastes 1:9). Ou uma evidência
de que nossos ídolos ainda são os mesmos e as aparências não enganam, não
– nós, assim Como os nossos pais (Belchior, 1976)? Quando consideramos
que a diversidade de opiniões e a liberdade para expressar tal diversidade é o
que promove a civilização, tal recusa sinaliza o caminho para a barbárie? Em caso
afirmativo, estará ainda em tempo para se deter essa marcha?
Pois bem, passemos à segunda reflexão.
Não quer calar na minha cabeça a pergunta sobre a eleição do travelling de Kapò como a ovelha negra a ser escorraçada para o deserto (logo veremos que essa analogia não é sem consequências), uma vez que o dito travelling é perfeitamente coerente com o conjunto do filme, uma espécie de coroamento de uma obra cujo autor meteu os pés pelas mãos do começo ao fim. Por que a abjeção foi colada exatamente ali? Não pode ser mero acaso.
Terá sido por sinédoque – a parte tomada pelo todo? – puro uso abusivo de uma figura de linguagem? Ou haverá algo mais a ser considerado? Penso que sim. Penso que o travelling de Kapò incomoda porque é sinistro – quer dizer, porque ele convoca algo do mais íntimo de cada um de nós. E Rivette e Daney, penso eu, parece-me que acusaram o golpe.
Tento me explicar. Em primeiro lugar, fazer um travelling para frente diante do horror é uma experiência factual na vida humana. Convido a pensar num médico dando atendimento a uma vítima de um acidente catastrófico: ele vai, por dever de ofício, ser capturado numa espiral de tempo dilatado. Com a percepção em câmera lenta, seus olhos farão travellings sucessivos, examinando as funções vitais e o corpo dilacerado, dando zoons para enquadrar cada um dos ferimentos, fraturas e sangramentos, um após o outro, calculando por onde começar a recompor aquele corpo de modo a deter hemorragias e estabilizar fraturas para salvar aquela vida. Encontro com o Real em toda a sua crueza, encontro para o qual espera-se que o médico esteja preparado. Mas o que dizer dos curiosos que se aglomeram no entorno? Nada têm a contribuir, mas não despregam os olhos do horror, até que, cansados ou satisfeitos, dão a vez para a leva seguinte, sedenta.
Esse pequeno resumo da ópera eu o faço para que a gente se lembre de que padecemos, em diferentes medidas, de atração mórbida e fascinação pelo horror. Com o que construo, então, uma hipótese: a eleição do travelling de Kapò, como a escolha mais desprezível que Pontecorvo teria realizado nesse filme, deve-se ao fato de se ter desvelado ali algo que nós escondemos de nós mesmos no mais profundo de nosso ser? Como “esconder de nós mesmos” é o melhor caminho para proteger qualquer gozo sinistro, garantindo sua sobrevivência inconsciente, o convite é para que se faça luz: às claras, podemos lhe dar um destino mais digno.
Há um imperativo categórico (e sobre ele um princípio de Liberdade que dá ao sujeito o direito de dizer não) que estou pronta a subscrever: a única obrigação que recai sobre todo ser humano é a de pensar até o limite sensível de sua capacidade racional e de sua sensibilidade ética. Pensar visando o Real, à revelia de seus ideais e preferências. Respondendo a esse dever, é impossível não perceber que, diante do insuportável, fica muito barato comprar a boa consciência pela saída mais fácil: abjeto é o outro!
Enquanto não pudermos reconhecer o Real em nós mesmos – e lhe dar o destino que convém, desde o mal estar até a sua inscrição na Cultura, pela sublimação – ninguém pode se sentir seguro.
Curitiba, 12 de Novembro de 2021
As imagens deste texto mostram Serge Daney e Jacques Rivette no filme "Jacques Rivette - O Vigilante" (1990), de Claire Denis e Serge Daney.
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