Um filme monumental de Edward Yang[1] que, embora realizando apenas oito filmes[2], fez uma verdadeira injeção de talento e esplendor no cinema mundial, tornando-se um dos maiores autores do cinema contemporâneo. Seus filmes, embora registrem aspectos da vida urbana na sociedade classe média de Taiwan – especialmente os conflitos geracionais e a luta entre o tradicional e o moderno, o autêntico e o estrangeiro, os negócios e a arte – nem por isso ganham contornos paroquiais. Yang lhes imprime uma pegada universal que permite a cada um ali se reconhecer, se quiser, apresentando o Outro como ponto de contorno de onde nossa própria pergunta nos retorna: Quem sou eu[3]?
Começo a falar de A Brighter Summer Day citando o comentário de Fernando Oriente[4]:
‘Um Dia Quente de Verão’ é um filme em que tudo funciona com perfeição. Uma mise-en-scéne arrebatadora no apuro com que cada um de seus detalhes é confeccionado, desde a composição dos quadros, a construção dos planos, a decupagem, o posicionamento e a movimentação de câmera, os cortes, tudo funciona no ritmo certo, sempre em função das modulações dramáticas, da evolução narrativa e na alta carga de sensorialidade no tratamento das texturas dos personagens sempre organicamente entrosados com as construções do tempo e do espaço e suas relações internas. Um filme que trabalha com naturalismo as cenas, os espaços, as emoções dos personagens e insere tudo isso dentro de um tempo preciso, o tempo da memória de Edward Yang e sua adolescência nos anos 60 em Taipei.
‘A Brighter Summer Day’ é um filme que faz do tempo passado não só uma reconstrução simbólica de um processo de formação de personagens e de uma nação em turbulência, mas que faz essa experiência do tempo vivido servir como comentários precisos sobre a condição humana, a melancolia, o amadurecimento, as frustrações e as impossibilidades que levam o ser humano a atos extremos ou a resignação angustiada sentida sob o peso do passar de um tempo implacável. Uma obra-prima monumental.
Comentário rigoroso, que não admite nem uma palavra a menos, nem palavra alguma a mais, mesmo assim permaneço coagida a dizer algo ainda, explorando os diálogos, de onde somos desviados pelas imagens – composições plásticas que capturam o espectador a ponto de fazerem passar as legendas por baixo do pano. Aqui como alhures, a palavra também diz muito.
Se as imagens são eloquentes que baste para se falar do mundo masculino adolescente, com o seu recurso extremo à barbárie, na luta entre gangues, parece-me necessário recorrer às palavras proferidas pelas e sobre as mulheres, para notar que o feminino, naquele universo, é alvo de desconsideração, complacência e violência. O que é mais a regra que a exceção, pois a mulher, essa esfinge que não se permite decifrar, sempre despertou e desperta uma resposta que toca, e às vezes ultrapassa, os limites.
Lacan vai, diante desse desconcerto que a mulher representa para todos, em todo tempo e lugar, declarar A mulher não existe, para reafirmar que no inconsciente não há registro da diferença sexual e que a mulher representa a alteridade absoluta para os sujeitos de ambos os sexos. Yang sabe algo desse desconcerto.
Seja sobre o masculino, seja sobre o feminino, Yang falará com o mais profundo respeito, sem reverência e sem qualquer reducionismo. Limita-se a mostrar que as coisas são o que são: o Real em estado bruto. Sem negar que, em meio ao caos, há pelo menos um, a irmã mais velha de Si’r, que encontra seu caminho para o amor e o trabalho, os fundamentos para a autonomia.
Voltemos ao filme, explorando alguns de seus diálogos
- Ming diz a Si’r Você é honrado demais: não vai dar certo na vida.
- Vaticínio que ouviremos ecoar na voz da mãe de Si’r dirigindo-se ao seu pai Você é honesto demais: não tem utilidade para a corrupção. Ela, que se ressente da estagnação do marido em sua carreira no serviço público, aponta-lhe a causa de sua vida emperrada.
- E deste homem, “inutilizado pela sua honestidade”, e que ensina a Si’r o princípio de que Há que se encontrar a verdade da vida e acreditar nela, ouviremos, sobre as mulheres: Coisas com um buraco no meio são sempre problema; e dirá à sua mulher, com quem partilhou e partilha a vida e com quem teve cinco filhos: Vocês mulheres só sabem trazer a desconfiança. Não servem para nada. Nada sabem da amizade entre homens.
E é em relação a mulheres jovens que o jovem herói, Si’r, cuidadosamente construído no campo da nossa simpatia incondicional, vai revelar o fundo lodoso – seu húmus – de sua humanidade.
Ele, que amava Ming e já lhe havia prometido presença, amizade e proteção até o fim dos tempos, toma distância quando percebe que ela não lhe dedica exclusividade. Personagem complexa, a menina, sob distintas circunstâncias adversas, tem a coragem e a habilidade de procurar e garantir segurança para si e sua mãe, mesmo que isso passe por ligações a diferentes rapazes.
Desapontado com Ming, Si’r vai em busca de outra menina, famosa pelos seus múltiplos relacionamentos com os meninos, na esperança de que ela aceite a sua intervenção salvadora:
Jade, posso ser mais próximo de você? Talvez possa ajudá-la com seus problemas.
A garota lhe dá o tratamento que lhe convém:
Você parece ansioso para me mudar. Trata-me como se eu fosse um experimento seu, de Biologia. Você tem muitas filosofias. Sou feliz do jeito que sou. E você? Você é feliz? E se eu não mudar? E se eu não mudar para me encaixar nas suas ideias? Você simplesmente vai embora? Você é um egoísta! Quem você pensa que é?
De quebra, Jade sublinha que Ming também transita entre os homens, extraindo vantagens desse trânsito, e propõe a Si’r que ofereça a ela os seus favores.
Impedido de exercer sua ambição salvadora com Jade, Si’r retoma Ming como objeto a ser resgatado para o lado luminoso da força. Ele a aborda com o mesmo discurso:
Ming, eu sei tudo sobre você, mas não me importo. Porque apenas eu posso ajudá-la. Sou a única esperança que lhe resta.
A resposta de Ming vem no mesmo registro da de Jade:
Quer dizer que você é o único que pode me ajudar a mudar, certo? Porque você é como todo o resto? Você é amável comigo apenas para que eu também seja amável com você. Assim você se sentirá seguro, certo? Você é tão egoísta! Você quer me mudar? Pois eu sou como este mundo – e você não pode mudar o mundo. Quem você pensa que é?
Ele responde com a tragédia:
Você não tem esperança! Nem vergonha, nem esperança!
E a violência, inicialmente restrita às palavras, sob a aparência de um Eros purificado, ergue-se em Tânatos, numa passagem ao ato, num “final cut”, bem no meio da rua, em plena cena cotidiana, banal e indiferente.
Si’r simplesmente não suporta ser descoberto na plena vigência da mentira que tomou por verdade, cego na paixão pela própria virtude.
O bom moço que Yang nos fez amar, ele o aniquila, debaixo dos nossos olhos, sem dó nem piedade, levando-nos a esse ponto de viragem onde desconfiamos, nós mesmos, de nossos bons propósitos e melhores intenções. Golpe de mestre do autor que sabe aonde quer nos conduzir!
Se você não tiver pressa e acompanhar o filme até os créditos finais, poderá, ainda, emprestar seus olhos à mãe que examina longamente a farda escolar de seu filho; e seus ouvidos, para escutar a lista de nomes dos jovens aprovados para a universidade naquela época; e o seu coração, para acolher a tristeza pungente do fracasso do Ideal.
Resta no ar a pergunta que não quer calar Por quê?
Yang coloca o problema sem apontar qualquer saída. Recusando-nos qualquer indicativo ou pista, deixa-nos sozinhos com a questão.
Ao espectador cabe
decidir o que fazer com ela. Ignorá-la; vitimizar-se e embarcar na estratégia
neurótica da denúncia e da reivindicação, que só perpetua o nada saber disso;
ou tomar para si a aposta e a pergunta: Você pode saber! Você quer saber?
Curitiba, 09 de Janeiro de 2022
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