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segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

O Feminino em “Um dia quente de verão” (A Brighter Summer Day)


por Vera Lúcia de Oliveira e Silva

[contém spoilers]

Um filme monumental de Edward Yang[1] que, embora realizando apenas oito filmes[2], fez uma verdadeira injeção de talento e esplendor no cinema mundial, tornando-se um dos maiores autores do cinema contemporâneo. Seus filmes, embora registrem aspectos da vida urbana na sociedade classe média de Taiwan – especialmente os conflitos geracionais e a luta entre o tradicional e o moderno, o autêntico e o estrangeiro, os negócios e a arte – nem por isso ganham contornos paroquiais. Yang lhes imprime uma pegada universal que permite a cada um ali se reconhecer, se quiser, apresentando o Outro como ponto de contorno de onde nossa própria pergunta nos retorna: Quem sou eu[3]?

Começo a falar de A Brighter Summer Day citando o comentário de Fernando Oriente[4]:

‘Um Dia Quente de Verão’ é um filme em que tudo funciona com perfeição. Uma mise-en-scéne arrebatadora no apuro com que cada um de seus detalhes é confeccionado, desde a composição dos quadros, a construção dos planos, a decupagem, o posicionamento e a movimentação de câmera, os cortes, tudo funciona no ritmo certo, sempre em função das modulações dramáticas, da evolução narrativa e na alta carga de sensorialidade no tratamento das texturas dos personagens sempre organicamente entrosados com as construções do tempo e do espaço e suas relações internas. Um filme que trabalha com naturalismo as cenas, os espaços, as emoções dos personagens e insere tudo isso dentro de um tempo preciso, o tempo da memória de Edward Yang e sua adolescência nos anos 60 em Taipei.

 

‘A Brighter Summer Day’ é um filme que faz do tempo passado não só uma reconstrução simbólica de um processo de formação de personagens e de uma nação em turbulência, mas que faz essa experiência do tempo vivido servir como comentários precisos sobre a condição humana, a melancolia, o amadurecimento, as frustrações e as impossibilidades que levam o ser humano a atos extremos ou a resignação angustiada sentida sob o peso do passar de um tempo implacável. Uma obra-prima monumental.

Comentário rigoroso, que não admite nem uma palavra a menos, nem palavra alguma a mais, mesmo assim permaneço coagida a dizer algo ainda, explorando os diálogos, de onde somos desviados pelas imagens – composições plásticas que capturam o espectador a ponto de fazerem passar as legendas por baixo do pano. Aqui como alhures, a palavra também diz muito.

Se as imagens são eloquentes que baste para se falar do mundo masculino adolescente, com o seu recurso extremo à barbárie, na luta entre gangues, parece-me necessário recorrer às palavras proferidas pelas e sobre as mulheres, para notar que o feminino, naquele universo, é alvo de desconsideração, complacência e violência. O que é mais a regra que a exceção, pois a mulher, essa esfinge que não se permite decifrar, sempre despertou e desperta uma resposta que toca, e às vezes ultrapassa, os limites.

Lacan vai, diante desse desconcerto que a mulher representa para todos, em todo tempo e lugar, declarar A mulher não existe, para reafirmar que no inconsciente não há registro da diferença sexual e que a mulher representa a alteridade absoluta para os sujeitos de ambos os sexos. Yang sabe algo desse desconcerto.

Seja sobre o masculino, seja sobre o feminino, Yang falará com o mais profundo respeito, sem reverência e sem qualquer reducionismo. Limita-se a mostrar que as coisas são o que são: o Real em estado bruto. Sem negar que, em meio ao caos, há pelo menos um, a irmã mais velha de Si’r, que encontra seu caminho para o amor e o trabalho, os fundamentos para a autonomia.

Voltemos ao filme, explorando alguns de seus diálogos

-  Ming diz a Si’r Você é honrado demais: não vai dar certo na vida.

- Vaticínio que ouviremos ecoar na voz da mãe de Si’r dirigindo-se ao seu pai Você é honesto demais: não tem utilidade para a corrupção. Ela, que se ressente da estagnação do marido em sua carreira no serviço público, aponta-lhe a causa de sua vida emperrada.

- E deste homem, “inutilizado pela sua honestidade”, e que ensina a Si’r o princípio de que Há que se encontrar a verdade da vida e acreditar nela, ouviremos, sobre as mulheres: Coisas com um buraco no meio são sempre problema; e dirá à sua mulher, com quem partilhou e partilha a vida e com quem teve cinco filhos: Vocês mulheres só sabem trazer a desconfiança. Não servem para nada. Nada sabem da amizade entre homens.

E é em relação a mulheres jovens que o jovem herói, Si’r, cuidadosamente construído no campo da nossa simpatia incondicional, vai revelar o fundo lodoso – seu húmus – de sua humanidade.

Ele, que amava Ming e já lhe havia prometido presença, amizade e proteção até o fim dos tempos, toma distância quando percebe que ela não lhe dedica exclusividade. Personagem complexa, a menina, sob distintas circunstâncias adversas, tem a coragem e a habilidade de procurar e garantir segurança para si e sua mãe, mesmo que isso passe por ligações a diferentes rapazes.

Desapontado com Ming, Si’r vai em busca de outra menina, famosa pelos seus múltiplos relacionamentos com os meninos, na esperança de que ela aceite a sua intervenção salvadora:

Jade, posso ser mais próximo de você? Talvez possa ajudá-la com seus problemas.

A garota lhe dá o tratamento que lhe convém:

Você parece ansioso para me mudar. Trata-me como se eu fosse um experimento seu, de Biologia. Você tem muitas filosofias. Sou feliz do jeito que sou. E você? Você é feliz? E se eu não mudar? E se eu não mudar para me encaixar nas suas ideias? Você simplesmente vai embora? Você é um egoísta! Quem você pensa que é?

De quebra, Jade sublinha que Ming também transita entre os homens, extraindo vantagens desse trânsito, e propõe a Si’r que ofereça a ela os seus favores.

Impedido de exercer sua ambição salvadora com Jade, Si’r retoma Ming como objeto a ser resgatado para o lado luminoso da força. Ele a aborda com o mesmo discurso:

Ming, eu sei tudo sobre você, mas não me importo. Porque apenas eu posso ajudá-la. Sou a única esperança que lhe resta.

A resposta de Ming vem no mesmo registro da de Jade:

Quer dizer que você é o único que pode me ajudar a mudar, certo? Porque você é como todo o resto? Você é amável comigo apenas para que eu também seja amável com você. Assim você se sentirá seguro, certo? Você é tão egoísta! Você quer me mudar? Pois eu sou como este mundo – e você não pode mudar o mundo. Quem você pensa que é?

Ele responde com a tragédia:

Você não tem esperança! Nem vergonha, nem esperança!

E a violência, inicialmente restrita às palavras, sob a aparência de um Eros purificado, ergue-se em Tânatos, numa passagem ao ato, num “final cut”, bem no meio da rua, em plena cena cotidiana, banal e indiferente.

Si’r simplesmente não suporta ser descoberto na plena vigência da mentira que tomou por verdade, cego na paixão pela própria virtude.

O bom moço que Yang nos fez amar, ele o aniquila, debaixo dos nossos olhos, sem dó nem piedade, levando-nos a esse ponto de viragem onde desconfiamos, nós mesmos, de nossos bons propósitos e melhores intenções. Golpe de mestre do autor que sabe aonde quer nos conduzir!

Se você não tiver pressa e acompanhar o filme até os créditos finais, poderá, ainda, emprestar seus olhos à mãe que examina longamente a farda escolar de seu filho; e seus ouvidos, para escutar a lista de nomes dos jovens aprovados para a universidade naquela época; e o seu coração, para acolher a tristeza pungente do fracasso do Ideal.

Resta no ar a pergunta que não quer calar Por quê?

Yang coloca o problema sem apontar qualquer saída. Recusando-nos qualquer indicativo ou pista, deixa-nos sozinhos com a questão.

Ao espectador cabe decidir o que fazer com ela. Ignorá-la; vitimizar-se e embarcar na estratégia neurótica da denúncia e da reivindicação, que só perpetua o nada saber disso; ou tomar para si a aposta e a pergunta: Você pode saber! Você quer saber?


Agradeço aos companheiros do Clube do Filme, Giovanni Comodo, Isadora Mattiolli e Márcia Drehmer de Mello e Silva, pelo estímulo à escrita.

Curitiba, 09 de Janeiro de 2022


[2] Títulos

1983 – That Day, on the Beach

1985 – Taipei Story

1986 – Terrorizers

1991 – A Brighter Summer Day

1994 – A Confucian Confusion

1996 – Mahjong

2000 – Yi Yi

[3] Ou, de forma lacaniana: “O quê sou eu?”

[4] https://tudovaibem.com/tag/a-brighter-summer-day/

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Mais luz


A Brighter Summer Day
 é o quarto filme de um cineasta taiwanês chamado Edward Yang. Não é, no entanto, um desconhecido, visto que seu primeiro filme, That Day On The Beach foi descoberto aqui mesmo em 1984. É, todavia, uma revelação, já que A Brighter Summer Day se impõe, pela amplidão de seu material romanesco e o refinamento de sua mise en scène, como um afresco intimista tão belo quanto os filmes de Hou Hsiao-Hsien. O filme de Edward Yang mostra que a ideia de um cinema jovem está ainda bem viva. Ainda bem.        

A Brighter Summer Day. É a adolescência, a imaturidade , os ritos de passagem, de iniciação, grandes temas eternos das nouvelles vagues, que filma o cineasta taiwanês Edward Yang, menos conhecido que o seu compatriota Hou Hsiao-Hsien, no seu quarto filme, A Brighter Summer Day. Um rapaz de quinze anos, Xia’o Si’r, é confrontado de repente pela verdadeira vida. Em Formosa, no começo dos anos 60, gangues rivais pilham os bairros, o rock’n’roll está no seu auge e a juventude tem o futuro à sua frente. Há certamente a autoridade, esta dos professores, dos pais, mas não importa! Suavemente, Xia’o Si’r, o herói do filme, vai ser lentamente levado, ao fim de um percurso emocionalmente muito intenso, até a tragédia. Entrementes, Xia’o Si’r terá encontrado Ming pela qual apaixona-se loucamente e Ma que se torna seu melhor amigo. A traição, a política e também o crime se misturarão à história. É sobre amor, amizade, rivalidade, violência que se trata. Nós compreenderemos que A Brighter Summer Day é um grande filme romanesco, que dá a ver, sem explicação, sem gordura psicológica, sentimentos, atos, trajetos, o tempo.            

O que é novo comporta em seu seio uma parte obscura. Obscura, não porque ela é incompreensível, mas porque, apesar do seu brilho, ela é impalpável, secreta, pois ela se dissimula ao ponto de que se nós a entrevemos, percebemos com dificuldade que son infracassable noyau de nuit[1] brilha de um esplendor muito particular. A beleza de A Brighter Summer Day é dessa ordem, tanto evidente como clandestina. Aliás, a primeira sequência do filme está inteiramente sob o signo da clandestinidade. Nós estamos em um estúdio de cinema com um metteur en scène e uma atriz. A câmera se eleva lentamente em direção à parte superior (eco, talvez, de um famoso plano de Cidadão Kane) onde estão escondidos dois rapazes que observam a cena. Pouco tempo depois, eles serão perseguidos, em uma cena engraçada, por ter tido acesso àquilo que não deveriam ver. A tensão do olhar é ainda mais forte, de maneira que o olho é submetido à lei da invisibilidade ou, pelo menos, da dissimulação, do que se esconde. Para Edward Yang, o cinema continua a ser uma experiência fundamentalmente clandestina, uma aventura do olhar que gira em torno de um batimento primitivo, de uma cintilação original. A Brighter Summer Day seria mais uma variação sobre o cinema no cinema? Não exatamente. Antes um filme que inscreve literalmente dentro de si o funcionamento da captação da luz, do seu processamento pela projeção, de sua absorção pelo espectador.           

Retornemos ao primeiro plano do filme: uma lâmpada acesa no centro do quadro brota da escuridão. Faça-se a luz! Essa claridade, intensamente luminosa e, no entanto, tão tênue, tão frágil, imprime o seu selo indelével nas três horas excepcionais do filme de Edward Yang. Uma lanterna servirá, aliás, de objeto de transição e parcial – objeto de fetichismo e de troca, exatamente parecido com o cinema, projetando de uma só vez um feixe de luz que ilumina uma parte da cena. Diversas vezes, nós procuraremos um interruptor, nós acenderemos velas, enquadraremos uma lâmpada logo acima de um bilhar, faróis iluminarão a noite, um fósforo romperá de repente a escuridão ou, ao contrário, a luz se apagará bruscamente. Esse extraordinário trabalho sobre a luz – falaríamos mais precisamente de brilho – testemunha de uma concepção geral do cinema baseada na lacuna, onde aquilo que falta é tão capital quanto o que está, tanto no plano da visão quanto no da narrativa. Pela sua atração pela opacidade, Yang propõe uma experiência de cegueira mais potente e, acima de tudo, menos metafórica que aquelas nas quais nós fomos imersos esses últimos meses (em particular em Os Amantes da Ponte Neuf ou em Até o Fim do Mundo). Nenhum personagem cego em A Brighter Summer Day: é o próprio cinema que tende à cegueira para nos conduzir com precisão a uma regeneração do olhar, ao ponto que esse filme me fez pensar na famosa frase de Mizoguchi: “é preciso lavar os olhos entre cada olhar.” O que Yang pratica admiravelmente, inventando para cada plano, um quadro, uma rede de sensações, uma aliança de cores, um espaço-tempo que trabalha nosso olho internamente. Logo, a lacuna: o que reside no campo da visão está, por vezes, no limite da invisibilidade, em um canto do quadro, ou envolto por fragmentos, pela claridade, como nessa sequência de acerto de contas onde a violência se reduz a faixas, turbulências, relâmpagos que torcem a tela, impedindo que o espectador seja pego na armadilha do seu próprio gozo. Yang vai filmar até mesmo o reflexo de dois corpos, não em um espelho, mas em uma porta pintada de branco. Plano-limite que beira o maneirismo, o caráter estrito do pictórico, mas que in extremis lhe escapa ao reenquadrar esses mesmos personagens, fantasmas que voltam a ser humanos, de repente, ao descer a escada. Do mesmo modo, a horizontalidade do quadro é frequentemente quebrada por uma vertical, por uma porta, uma parede, um rodapé, uma abertura (Yang filma frequentemente de um cômodo para o outro), inscrevendo um quadro dentro do quadro e, consequentemente, um esconderijo no plano. Nós estamos, naturalmente, no oposto absoluto do voyeurismo profissional, do exibicionismo declarado. Nós podemos pensar em Ozu, com o qual Yang (que o prefere, talvez, a Naruse) partilha um gosto pronunciado pela frontalidade, mas a diferença entre os dois, reside no fato de que o cineasta taiwanês trabalha essencialmente nos planos-sequências e seus corolários, a profundidade de campo, de tempo, o fora de campo (ele parece, algumas vezes, surpreendentemente próximo da pintura holandesa), enquanto que Ozu visava antes de tudo a superfície, quase a natureza morta (outra maneira de chegar à imagem-tempo descrita por Deleuze). Fora de campo, que em Yang é externo, mas também, nessa lógica do que está escondido, interno ao plano (uma estética do canto). Fora de campo sonoro sobretudo, que nos faz ouvir tiros, ruídos diversos, fragmentos de conversas, o trovão, palavras de ordem, toda uma comunidade de sons, tratada da maneira mais democrática do mundo, que contribui para o refinamento da percepção criada por Yang. Jamais, no entanto, A Brighter Summer Day cai na armadilha do formalismo, sendo nutrido pela palpitação da vida, a sensação do tempo que passa, o sentimento pungente da existência.          

A Brighter Summer Day não é um filme em linha reta, muito menos um filme sinuoso, em vez disso um quebra-cabeça que se ordena pouco a pouco ou, melhor, um tecido sobre o qual estão trançados motivos que convergem paralelamente em um mesmo ponto, um jogo de xadrez no qual as peças seriam deslocadas simultaneamente por uma mão invisível e onde nós ignoraríamos a posição das peças entre si até o fim da partida. Nós poderíamos falar aqui de dramaturgia de agregados, de maneira que Yang dá o sentimento de realizar paralelamente blocos de tempos heterogêneos, juntando-os com um senso de elipse tão surpreendente quanto natural. Não se trata de processos de narração, de montagem, mas simplesmente de estados. Há certamente um personagem central, Xia’o Si’r, cuja importância não cessa de crescer à medida que o filme avança. Esse, adolescente próximo dos personagens de Hou Hsiao Hsien (por exemplo, Poeira no Vento), faz a ligação entre diversos níveis de realidade. Três grandes polos: a escola, a família, a delinquência que remete a uma outra triangulação geográfica, política, histórica, esta de Taiwan, polarizada, simultaneamente, pela China Popular, pelo Japão e pelos EUA. Yang trabalha conjuntamente o individual e o coletivo, resolvendo o conflito muitas vezes visível em outro lugar (na França, por exemplo), entre o intimismo e a História. A Brighter Summer Day é ao mesmo tempo íntimo e histórico, do mesmo modo que é simultaneamente clássico e moderno, violento e contemplativo (um filme yin e yang, por assim dizer!). A América é onipresente, pela simples razão de que ela é um elemento constitutivo da identidade de Taiwan, como também da cinefilia de Yang. O próprio título, A Brighter Summer Day, além da sua alusão à luz (brighter), é o fragmento de uma canção célebre de Elvis Presley, Are You Lonesome Tonight, encarnação do imaginário americano, que é como a sombra luminosa do filme. Na passagem, a palavra exata empregada por Presley, é bright e não brighter: o mal entendido, a decalagem da palavra define perfeitamente a relação com a América, um sonho (rêverie) à distância, uma fantasia pura, um deslocamento sutil, uma visão oblíqua. Outra sequência mostra uma cena de paquera (a palavra é adequada? Não tenho certeza, a cena é tão bela e emocionante que nos faz pensar no seu equivalente em Mes Petites Amoureuses de Eustache) em um cinema onde quatro adolescentes, duas garotas, dois rapazes, vieram ver Rio Bravo. Pelo menos, nós o adivinhamos já que Yang jamais filmará o ecrã, preferindo nos fazer ouvir a banda-sonora, pontuada por tiros da grande cena de tiroteio no fim do filme. Cena mítica, constitutiva de toda uma cinefilia, essa da geração de Edward Yang (que nasceu em 1948). A câmera enquadra os olhares e as mãos, capta a tensão e afirma, de passagem, sem insistência, sem ostentação, em oposição a toda neurose cinefílica, a emoção da descoberta do cinema ligada àquela do amor. A América ainda, com os gêneros: particularmente, film noir e melodrama que são frontalmente abordados, mesmo se eles são tratados de maneira nitidamente mais contemplativa que em qualquer filme americano, incluindo Nicholas Ray, no qual pensamos aqui. A Brighter Summer Day é Juventude Transviada ou Caminhos Perigosos, guerra de gangues adolescentes que exige, além da melancolia, o fluxo do tempo e a dúvida no momento da ação (a passagem ao ato é problemática e, em especial, a relação com as armas de fogo). Como na grande sequência central onde se cristalizam, o tempo de um concerto e por uma deslumbrante simultaneidade, as múltiplas dimensões do filme: romance de iniciação, história de amor, film noir, comédia musical...             

O outro polo é a China, imagem virtual que trabalhada pelos pais. É o exílio, o deslocamento, mas também a obsessão paranoica pelo comunismo. O pai de S’ir, que veio de Shanghai, acabará por ser acusado de simpatizar com o comunismo pelas autoridades taiwanesas, da mesma maneira que seu filho é interrogado pela burocracia do liceu, assim induzindo um vínculo sutil de filiação entre os dois. Pois A Brighter Summer Day está, sem dúvida, sob o signo da memória. Primeiramente, porque a China é essa memória escondida, autêntico fora de campo não somente espacial, mas acima de tudo, temporal. Em seguida, porque o filme se passa em 1960. Sem o mínimo passadismo: contudo, uma sensação fugaz lança um véu sobre a imagem. É a melancolia, o sentimento que algo de irremediável aconteceu, um passado filmado absolutamente no presente e, no entanto, inscrito definitivamente nos arcanos da memória. Nesse sentido, o personagem-chave do filme é talvez o marinheiro, figura fitzgeraldiana, chefe de gangue supremamente elegante e, entretanto, tão frágil, que volta sem avisar no meio do filme e desaparece sem mais nem menos um pouco mais tarde, em uma cena surpreendente de assassinato. Personagem tutelar e secreto que assombra literalmente, através de sua beleza opaca, os outros personagens e o filme em seu conjunto. Eu falei, mais acima, do sentimento pungente da existência; é exatamente disso que se trata aqui, da sua insignificância e sua fulgurância, da sua tragédia e de sua banalidade, à semelhança dessa sequência final onde, após o clímax (que eu não lhe revelarei), uma fita na qual está gravada uma versão de Are You Lonesome Tonight, destinada a Elvis Presley, terminará finalmente em uma lixeira.     

Thierry Jousse                                                                                                                 

[1] Ndt: Referência a André Breton que, na ocasião de uma entrevista radiofônica, lança essa sentença: “É partindo desse ponto de vista que o surrealismo fez de tudo para eliminar os tabus que impedem que nós tratemos livremente o mundo sexual e de todo esse mundo sexual, incluindo as perversões – mundo ao qual eu fui levado a dizer, mais tarde, que ‘em despeito às pesquisas memoráveis que operaram Sade e Freud’, não cessou, que eu saiba, de opor a nossa vontade de penetração do universo seu indestrutível núcleo de escuridão (son infracassable noyau de nuit).”   
(O texto Plus de Lumière foi publicado originalmente na revista Cahiers du Cinéma, n° 454, em abril de 1992. Traduzido por Letícia Weber Jarek.)

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Cineclube da Cinemateca: "A Brighter Summer Day" de Edward Yang

Neste domingo, dia 20, excepcionalmente às 13h30, o Cineclube da Cinemateca exibe "A Brighter Summer Day" de Edward Yang. Sempre com entrada franca!

Cineclube da Cinemateca apresenta:
"A Brighter Summer Day" de Edward Yang
Ambientando em Taiwan na década de 1960, o filme acompanha o jovem Xiao Si’r em meio a violentos conflitos entre gangues rivais, formadas por adolescentes. A revisitação ao passado traumático das famílias continentais, inseguras quanto ao futuro político, é permeada pela inocência maculada dos adolescentes que protagonizam este delicado épico. Estes jovens descobrem sem nenhum alívio as dores do crescimento, entre paixões, disputas e sentimentos desencontrados. Livremente inspirado em fatos ocorridos durante a juventude do diretor.


Serviço:
20 de novembro
Excepcionalmente às 13h30*
Na Cinemateca de Curitiba
(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)
(41) 3321 - 3552
ENTRADA FRANCA
Realização: Cinemateca de Curitiba e Coletivo Atalante