sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

A mão leve de Claude Chabrol

por Giovanni Comodo

Há um tipo específico de cineasta cujo trabalho é essencialmente o mesmo de um batedor de carteiras: aproxima-se de você, da forma mais anônima e discreta possível, e, aproveitando-se de uma distração, mete a mão no seu bolso e deixa-o vazio. Trata-se de uma atividade que exige destreza, sangue-frio e prática. Quanto melhor seu trabalho, mais invisível e mais safo se torna para uma nova conquista. É um artista, afinal – e o próprio cinema já reconheceu isso, Fuller (Anjo do Mal, 1953) e Bresson (Pickpocket, 1959) que o digam –, cuja grandeza está em não deixar rastros.

Claude Chabrol (1930-2010) é da tradição dos batedores de carteira: deixa-nos de bolsos vazios e surpresos ao final de cada projeção, quase sem entender como que nos perdemos. De direção discreta e muitas vezes menosprezado em comparação aos seus colegas de geração da Nouvelle Vague, Chabrol parece deixar um conselho aos pretendentes de pequenos furtos (ou seja, fazer filmes) em Negócios à Parte (Rien ne va plus, 1997): “aprenda seu ofício, rapaz”, diz o veterano Michel Serrault ao frustrar a tentativa de um jovem candidato no metrô.

Chabrol de fato foi um aluno aplicado. Começou como crítico na revista Cahiers du Cinèma nos anos 1950, defensor de primeira hora do filme policial americano, co-autor (com Éric Rohmer) do primeiro livro que proclamava a arte de Alfred Hitchcock e tornou-se um realizador prolífico em mais 50 anos de filmes – sem fazer cerimônia entre produções para salas de cinema e para televisão. Amante de música e literatura, seu cinema combina forças dos seus dois escritores favoritos: Honoré de Balzac e Georges Simenon. Do primeiro, traz a crônica atenta da pequena burguesia francesa e seus costumes (aqui, especialmente a fora de Paris), do segundo, a virtuosidade no gênero policial, a velocidade e a secura – não há vírgula ou fotograma sobrando em seu cinema, tudo serve a um propósito. De ambos, um humor mordaz sobre as profundezas humanas. Não houve um cineasta – em sua geração ou depois – tão dedicado e constante em seu projeto de explorar a realidade e os esqueletos escondidos da boa civilidade francesa.

Negócios à Parte marca seu 50º longa-metragem e propõe um jogo de azar constante com a plateia, como se o filme em si fosse uma noite em um cassino, festivo, repleto de amigos, cores fortes, surpresas, looks, mas em que a banca sempre sai vencedora. Segundo ele próprio, “quis fazer um filme leve como uma bolha de sabão, um pouco como os filmes de Lubitsch dos anos 30, ainda que seja pretensão comparar. Os [meus] outros são pesados, sinistros. Negócios à Parte corresponde mais ao meu temperamento brincalhão.” Ora, também aqui há uma típica trapaça sua: se há muito de Lubitsch nas várias trocas, farpas e blefes em mesas de jantar entre os protagonistas, a bolha de sabão de Chabrol torna-se de ferro especialmente no terço final do filme, com a intromissão do gângster K – de aparência dócil, educado, amante de ópera, sentimental, controlador de todo o espaço (cujo piso de seu covil evoca tanto um tabuleiro de jogo de xadrez como um castelo mal-assombrado), sua música e suas pessoas, também este criminoso é um metteur en scène, um diretor.

Boa parte da graça do filme está dada já na primeira frase (“façam suas apostas”) e no prazer em sermos surpreendidos a cada momento, a cada reviravolta da trama. O traço quase invisível da mão leve de Chabrol verifica-se em cenas como a do primeiro golpe da personagem de Isabelle Huppert no bar, cedendo aos poucos informações à plateia sobre o que está havendo, mantendo o suspense sobre o que são e o que pretendem aquelas pessoas. Ou a conversa durante o teleférico, com a profundidade de campo mostrando o “alvo” do golpe à distância entre a dupla Serrault e Huppert, com cortes entre falas que nem se sentem. O filme possui uma fluidez invulgar: a passagem de planos e cenas não marca apenas mudanças espaciais, mas também de personalidades e papéis entre os seus protagonistas golpistas. O diretor cria a tensão ao oferecer ao mesmo tempo uma transparência na forma fílmica e uma completa opacidade nas intenções dos personagens e na trama. E nós, aqui, perdemos as nossas carteiras tentando acompanhar.

Contudo, a alma de Negócios à Parte tem nome e sobrenome: Isabelle Huppert. “A maldade dela me convém”, costumava brincar o diretor. Na quinta (de um total de sete) de suas colaborações com Chabrol, Huppert surge múltipla, mais misteriosa e instigante do que nunca, em uma interpretação que é a força-motriz do filme à semelhança de bonecas russas: uma mulher que se revela outra, depois outra, depois outra... Várias vezes o cineasta comentou o quanto ela conseguia lhe surpreender a cada cena, a cada parceria – e o quanto isso o provocava a mudar seus planos para o filme e para suas personagens. Se os “criminosos” (incluindo o diretor) aqui são todos à sua maneira metteurs en scène controladores sobre a sua personagem, Huppert-atriz-e-personagem se rebela contra as encenações que lhe são pretendidas o tempo todo, impondo seus próprios golpes (como bem lembrou Catalina Sofia durante o debate da sessão). É no mínimo justo afirmar que Huppert, com o seu trabalho, é tão criadora de Negócios à Parte quanto quem assina a direção.


No jogo do cinema, apostar em seu nome e no de Chabrol é sempre uma boa chance. Ainda que se perca a carteira. Olho neles.


Nota: este texto foi alterado desde que foi distribuído como folha da sessão de Negócios à Parte do Cineclube do Atalante. Foi incluída a penúltima frase no penúltimo parágrafo a partir de uma provocação da Catalina Sofia surgida durante o debate do filme, a quem agradeço e espero que não se sinta furtada.

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