por Giovanni Comodo
Ao crepitar de uma fogueira, dois
homens contam histórias, “não pode deixar morrer o fogo”, diz um deles. Com uma
cena tão antiga quanto a humanidade, começa o novo e mais ousado trabalho de
José Oliveira e Marta Ramos, um filme que é afinal sobre deixar a chama viva.
Qual chama? A da memória, da vida, dos companheiros de luta, dos amigos. Na
tela e para além dela.
"Guerra" nos faz acompanhar
Manuel, veterano da Guerra Colonial Portuguesa, vivido por José Lopes.
Envelhecido, caminhamos com ele pelas ruas de Lisboa em momentos com a esposa e
o filho, com os amigos veteranos, e também em seus pesadelos crescentes,
tomados por dor e culpa. Este homem, que já não diferencia passado e presente,
fantasmas e carne-e-osso, vai sucumbindo até, finalmente, descansar.
A guerra é sempre um trauma de
uma nação, uma dívida que nunca é totalmente quitada, mas que tampouco deve ser
esquecida, sob o risco de ser repetida. Ao mesmo tempo, a experiência vivida
pelas pessoas que foram lutar muito além de suas fronteiras é tão individual
que torna difícil (se não impossível) de ser compartilhada com outros. Como dar
conta, hoje no cinema, de seu horror e violência? A resposta que Oliveira e
Ramos oferecem é que não se trata de mostrar o horror da guerra em si, mas o
preço que esta continua cobrando de seus agentes e testemunhas, assombrados
pelo pecado e pela mágoa tantas décadas depois. Se os realizadores, com poucos
recursos mas grande sensibilidade e inteligência, conseguem reverberar tanto é
porque nos levam direta e irremediavelmente ao drama íntimo de um homem. É um
filme anti-guerra e anti-filme-de-guerra. As várias e progressivamente
desconcertantes cenas de Manuel em trajes de exército poderiam ser flashbacks
ou sonhos ou mesmo tardes reais em busca de si próprio em algum bosque, não
importa. Estamos ao seu lado, impotentes, e com ele vamos até o fim.
Há muita dor em “Guerra”, porém também é um filme repleto de pequenas alegrias e delicadezas. Os conselhos de Manuel a seu filho, seu jogo improvisado de futebol, a sua interação com uma menina poetisa ou a dança do casal ao som de Neil Young são momentos de grande beleza. Assim como as cenas dos veteranos reunidos em uma tarde ensolarada com suas canções (hawkisianos sempre tocam duas em seguida). É um imenso prazer ouvir e ver estes homens comuns com seus sotaques, rugas e a barriga da “experiência”. Trata-se de um registro importante: cabe ao cinema guardar para o futuro o mundo presente, suas pessoas, seus gestos, suas respirações. Já na apresentação destes veteranos, em chamada, está o cerne do filme: em dois travellings laterais, dar a ver estes homens comuns (quase todos reais combatentes da guerra), ao mesmo tempo que se insere o áudio de algo como bombas, distorcidas. Duas tomadas enganosamente simples, repletas de gravidade, respeito e de algo intangível: o peso da memória sob a luz.
Porque este filme luminoso é também um filme sobre luz. As passagens nos dias contemporâneos são banhadas por uma luz branca, leitosa, própria dos tempos do digital – como nas cenas com o filho presente –, enquanto que Manuel parece estar em plenitude nas cenas com luz amarelada, dourada, calorosa, de outra época (e de outro cinema) que parece não mais existir, em vias de desaparecer – como seu protagonista – como vemos nas cenas de sonhos ou no consultório da psicóloga em que domina o tom amarelo (uma cor que toma até os grafismos e letreiros dos créditos). Este embate de luzes desafia Manuel por todo o filme, até que ele próprio se transforma em luz no seu último instante.
Nada do que foi discutido aqui até agora seria possível sem o trabalho e a presença de José Lopes. Sua performance como Manuel, ou Manecas, é antológica. Colaborador e amigo de longa data dos diretores, partiu dele a ideia e a vontade de realizar este filme. Se na parceria anterior com José Oliveira, “Longe” (2016), Lopes já era o fio condutor do filme (de forte cunho autobiográfico), aqui as apostas são levadas às últimas consequências, em uma entrega sem reservas de ambas as partes. A cena no consultório da psicóloga, um tour de force de quase dez minutos sobre o rosto de Lopes, é emblemática: tensão, medo, orgulho, angústia, dor, uma enorme gama de sentimentos é transmitida sem necessitar que ele diga nada. Sentimos juntos. A intensidade desta cena, em brasas, consiste em uma espécie de “exorcismo doce” que acaba por nos jogar cada vez mais adentro no labirinto de memórias de Manuel e de seus fantasmas de carne e amigos de bruma – e levando consigo todo o filme, que tampouco separa o real e o imaginário, o sonho e o pesadelo.
Já não temos mais chão. Nunca tivemos realmente.
“Guerra” é também o último filme de José Lopes, que deixou este mundo em dezembro de 2019.
Já não temos mais o Zé Lopes.
A sua última cena, uma das mais
assombrosas da cinematografia recente, em que de uma só vez temos a despedida
de Manuel do filme e a de José Lopes do cinema, é nada menos que um milagre
oferecido a nós, a plateia. Vemos acontecer a alma sair do corpo de um homem e
subir aos céus neste filme. Não há outra explicação. Não é cinema mais, é real.
E de uma coragem imensa dos realizadores em exibir isto em um filme nos dias
cínicos de hoje.
“Procura a felicidade que ela deve existir” afirma Manuel/Zé pouco antes, perto
do final da projeção. Em uma história com tantas dores, há espaço para a
esperança e o amor.
E afinal, para que serve o
cinema? Oliveira e Ramos dão várias respostas a esta questão em “Guerra”: para nos
revelar histórias e pessoas que não podem ser esquecidas, para nos exibir o
invisível, para reunir quem amamos e compartilhar este sentimento. Pois o
trabalho deste casal de diretores é de amor. Por quem e onde filmam, por quem
reúnem a sua volta para realizar seu cinema – vários amigos, seus familiares e
tantos outros. E também a quem tem a chance de vê-lo.
Para manter a chama acesa. Longa
vida ao cinema, ao “Guerra” e ao Zé Lopes. Não se apagarão.
O filme "Guerra", de José Oliveira e Marta Ramos, estreia nas salas portuguesas em 19 de janeiro de 2023. Texto retirado do livro "Encontros Cinematográficos", edição organizada por Mário Fernandes e
Carlos Fernandes, publicado em 2020 por Jornal do Fundão & Stone
and The Plot.
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