sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Podcast do Atalante: novo episódio #1



Já está no ar o novo episódio do Podcast do Atalante, nosso programa quinzenal dedicado a discutir cinema e crítica cinematográfica.

Neste primeiro episódio oficial discutimos o texto escolhido por vocês em votação no Instagram: "Imagens de imagens" do diretor chileno Raúl Ruiz - o qual propõe uma discussão sobre a aparente originalidade das imagens enquanto juízo de valor e a relação com a reprodução, em uma série de provocações. O texto está disponível para leitura aqui.

No próximo episódio, a pauta será livre. Envie suas dúvidas, sugestões ou temas para nós, via blog, Facebook ou Instagram.


Ouça, participe, debata. E, se puder, fique em casa!

Disponível para ouvir aqui.

Apresentado e produzido por Catalina Sofia, Giovanni Comodo e Waleska Antunes.

Realização: Coletivo Atalante

domingo, 30 de agosto de 2020

Curso de crítica cinematográfica online: nova turma

  

Teoria, História e prática no curso de crítica de cinema: online e ao vivo. Atendendo a pedidos, a Olhar de Cinema + abre nova turma para as aulas com Giovanni Comodo do Coletivo Atalante. Em seis aulas, com início em 01/09, às terças e quintas os vídeos são disponibilizados à meia-noite e às 21h acontecem os encontros ao vivo em link exclusivo para tirar dúvidas e outras conversas com o instrutor. O curso, de caráter introdutório, também conta com grupo exclusivo na plataforma da Olhar de Cinema + e emissão de certificado de participação. Inscrições limitadas, até 01/09 às 18h.

MATÉRIAS:
- Aspectos fundamentais da crítica
– Como avaliar para além do gosto?
- Mise en scène e narrativa visual
– A busca por parâmetros: Qualidade ou interesse provocado?
– Por uma “Política dos Autores”
– Nova abordagem: por uma “Política das Atrizes”
- Dilemas da crítica
- Novas formas
- História da crítica de cinema brasileira

E muito mais.

Terças e Quintas de setembro (01, 03, 08, 10, 15, 17) com bate-papo ao vivo às 21h.

Curso online com interação ao vivo após cada aula.
Com 2 exercícios práticos, inclusive com correção.
Vagas limitadas.
Com emissão de certificado (12 horas).
Aulas gravadas para você ver (e rever) no seu tempo.

Informações e inscrições aqui: https://mais.olhardecinema.com.br/cursos/critica-cinematografica/

quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Novidade: Podcast do Atalante!


O Coletivo Atalante traz mais uma novidade: o Podcast do Atalante, um programa quinzenal dedicado a discutir cinema e crítica cinematográfica.

E você ajuda a definir a pauta: no primeiro programa do mês iremos discutir um grande texto da história da crítica do cinema, escolhido por votação em nosso Instagram, e no segundo atendemos às suas dúvidas e debates sobre os filmes que provocam a todos nós - novos títulos das salas de cinema ou mesmo das nossas sessões de cineclube.

Ouça, participe, debata. E, se puder, fique em casa!

Disponível para ouvir aqui.

Apresentado e produzido por Catalina Sofia, Giovanni Comodo e Waleska Antunes.

Realização: Coletivo Atalante

terça-feira, 18 de agosto de 2020

Clube do Filme: Os Verdes Anos

O Clube do Filme continua em atividade, mesmo durante a epidemia, em formato virtual. Sempre na quarta quarta-feira do mês nos reunimos para a discussão de um filme e textos relacionados.

O filme de agosto é "Os Verdes Anos" (1963), de Paulo Rocha.



Os Verdes Anos foi o olhar inaugural que mostrou que a lente, afinal, não serve para mentir e fazer uma ficção que distraia o nosso olhar. Serve para entrar pela verdade adentro e abrir a sua ferida, abrir os nossos olhos. E fazer ver que viver em Portugal, afinal, significa qualquer coisa. E que é por buscar os nossos sonhos como Rocha fez que vamos ao fundo do que interessa. Seja pelo inesquecível rodopio das suas personagens, entregues à frustração dos seus desejos (como quem se perde na inesquecível música de Carlos Paredes e nunca de lá sai), mas que sabe, por outro lado, que vive para amar por entre cada uma das suas notas. E que se isso não é possível, que se esqueça a vida, então.
- Francisco Valente
 
O filme está disponível para download neste link (caso expire, ou em qualquer dúvida, envie um email para nós: coletivoatalante@gmail.com)
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Textos recomendados para leitura:
1) Folha da sessão do filme, por Manuel S. Fonseca: https://coletivoatalante.blogspot.com/2020/08/os-verdes-anos-1963.html
2) Biografia de Paulo Rocha, por Maria João Madeira: disponível neste link.


Como de costume, nosso propósito no Clube do Filme é discutir obras e textos com um pouco mais de tempo que nos debates após as sessões do cineclube, logo, o filme não será exibido na data. Recomendamos que o filme já tenha sido visto e também a leitura dos textos, porém isso não é exigido para participação. Optamos pelo encontro via plataforma Jitsi, uma vez que não exige senha, links confusos nem download de nenhum aplicativo para o desktop (porém caso queira acessar pelo celular, é necessário o aplicativo Jitsi para celular, de download gratuito). Devido ao formato virtual, não poderemos exibir com qualidade trechos do filme e de outros trabalhos, mas acreditamos ser importante retomarmos as atividades possíveis durante a pandemia. O ingresso, como sempre, é gratuito.

Serviço:

Clube do Filme: Os Verdes Anos, de Paulo Rocha
Dia 26/08 (quarta-feira)
Das 19h15 às 21h30
Via Jitsi: https://meet.jit.si/ClubedoFilmeAtalante
ENTRADA FRANCA

Realização: Coletivo Atalante


segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Os Verdes Anos, 1963

por Manuel S. Fonseca

Nos Verdes Anos, a pertinência da utilização do termo “novo” é de tal ordem que não seria difícil encontrar mais de uma dúzia de aplicações oportunas e razoáveis. Ressalvando o “Caso Oliveira”, não deve haver outro exemplo assim no cinema português. Adiante se conversará de escolhas estéticas, mas basta começar por onde se deve começar, pelo princípio: repare-se que Os Verdes Anos é a obra de estreia de um realizador, e é o filme de entrada de cena de um novo produtor, de novos técnicos, de novos actores, sem falar da novidade que representam os diálogos de Nuno de Bragança ou a música de Carlos Paredes.

Mas quando se diz “novo” a propósito de Verdes Anos, quer dizer-se mais do que a simples circunstância da estreia. Do que estamos ou devemos falar é do início efectivo de uma nova concepção de prática cinematográfica em Portugal, desde os processos de produção até a uma compreensão de mise-en-scène que viria a repor o entendimento do cinema como um fim no lugar do meio que quase fora nas décadas anteriores, em Portugal. Por esta razão, discordo em absoluto das leituras ainda hesitantes que, por vezes, insinuam que talvez o “cinema novo” tenha começado com Dom Roberto de Ernesto Souza e com Pássaros de asas cortadas de Artur Ramos. Repare-se que, se quisermos por mera especulação, os factos corroboram a novidade radical de Os Verdes Anos. Não só o filme se inseria numa estratégia de produção que visava à continuidade (um produtor, Cunha Telles, reúne à sua volta os cineastas disponíveis – disponibilidade física e teórica, entenda-se – e são eles Paulo Rocha, Fernando Lopes, Fonseca e Costa e António de Macedo), como igualmente essa produção se dotara previamente de quadros técnicos formados pelo 1º Curso de Cinema do Estúdio Universitário de Cinema Experimental, onde Cunha Telles era também elemento capital, e donde, no domínio da fotografia, do som e da montagem sairiam as figuras de referência de todo o cinema português que se segue aos Verdes Anos, pelo menos até aos anos oitenta. A simples leitura das fichas técnicas de Verdes Anos, Belarmino, Domingo à tarde mostra a existência de um corpo unificado que acompanha os realizadores dos filmes produzidos por Cunha Telles (lá estão Fernando Matos Silva, Elso Roque, Acácio de Almeida, Alexandre Gonçalves). Não falo sequer da diferença de espírito entre Os Verdes Anos e os “pré-históricos” Dom Roberto e Pássaros de asas cortadas, ou da abissal diferença de repercussão na crítica europeia, ou até do envelhecimento destes últimos filmes quando comparados com o crescente enriquecimento que a passagem do tempo parece ter trazido aos Verdes Anos...

Por vezes – e uma vez não são vezes – não é despiciendo falas de grandezas, cabendo dizer-se que há em Paulo Rocha uma grandeza, ainda que não da mesma ordem da de Oliveira, que jogou contra o sucesso de Os Verdes Anos, em termos imediatos. Essa grandeza é da irrisão dos temas face à sua visualização. Daí que, computados os seus filmes, parece haver, em comparação com Oliveira, por exemplo, uma dispersão temática que faz da obra de Rocha uma obra aparentemente sem núcleo. Falta ainda, e não é este o lugar próprio para fazer a leitura que esses filmes “pedem”, uma leitura eminentemente visual, onde os temas sejam parte subsidiária, estabelecendo, então sim, os pontos que podem dar unidade a filmes tão distintos como Os Verdes Anos e Vanitas.

Não admira que, nos anos sessenta, a recepção crítica portuguesa aos Verdes Anos fosse, por isso mesmo, extremamente equívoca. (E, até nisso o filme de Paulo Rocha é distinto de Dom Roberto e, sobretudo, dos Pássaros...). A crítica, dominada pela urgência social – pela ditadura do neo-realismo, se quisermos chamar as coisas pelo seu nome –, que obrigatoriamente exigia à obras “uma estrutura verdadeiramente dialéctica” (a expressão é da época) agarrou-se à história, ainda por cima com um tema tão socialmente prometedor, do jovem provinciano que chega à cidade, apostando tudo nesse confronto entre campo e cidade.

Numa entrevista da altura (Jornal de Letras e Artes, 6 de Maio de 64), Paulo Rocha bem tenta desfazer o equívoco: “Normalmente estamos habituados a sobrevalorizar a história em relação à mise-en-scène. Nos Verdes Anos tentou-se ir contra isso. O que mais interessava era a relação entre o décor e o personagem, o tratamento da matéria cinematográfica. Eram as linhas de força, num plano, que davam o seu peso e a sua importância”. Foi isso que a crítica “socialmente empenhada” não compreendeu, nem poderia, por desajustamento dos parâmetros de avaliação, compreender. Daí que se falasse num filme “mecânico no retrato das relações sociais”, ou de um filme com evidente “insuficiência de notação psicológica” das personagens. Apetece dizer que tinham razão, embora não fosse a razão que julgavam ter.

Ilda (Isabel Ruth) e Júlio (Rui Gomes) não têm, de facto, profundidade psicológica, em sentido tradicional, quero dizer, literário. No entanto, se pensarmos visualmente Os Verdes Anos, descobriremos que a raiz social comum das duas personagens, é pulverizada pela diferença de espaços que habitam, diferença que o filme de Paulo Rocha rigorosa e obsessivamente mostra. Júlio está indissoluvelmente ligados às caves (a sapataria) e a sua visão é determinada pela esquadria rectangular e horizontal da janela que fica ao nível da rua. Repare-se, aliás, que a personagem é sempre associada ao tema pontuador dos sapatos, outra das referências ao ponto de vista raso que é o seu. (Parêntesis para estabelecer filiações cinéfilas: é por esse ponto de vista raso e ao nível do solo e pela divisão em linhas horizontais do espaço de cada enquadramento que a herança japonesa, de que Paulo Rocha se reivindica, está já presente nos Verdes Anos).

Ilda situa-se ao nível médio do espaço urbano, onde, ao contrário de Júlio, se move com ligeireza e à vontade. Comungando da mesma origem social, Júlio e Ilda estão separados pela arquitectura e, arquitectuta oblige, pelo comportamento. Por aqui se vê que, mesmo a título de leitura sociológica da cidade no fim do salazarismo, o filme de Paulo Rocha fartava-se de ser agudo e pertinente. Também aqui se justifica a abertura de um segundo parêntesis para estabelecer influências e afinidades: a disposição arquitectónica de Os Verdes Anos pode ver-se como uma homenagem a Fritz Lang, cuja influência me parece igualmente incontestável na criação desse clima negro que, a pouco e pouco, se vai apoderando da cidade, até culminar no “episódio daquela noite”. É esse crescendo nocturno, tão característico do Lang “americano”, que nos prepara afinal para a sequência fatal, suavizando a sua aparente e abrupta irracionalidade.

No seu livro, Vinte Anos de Cinema Português: 1962-1982, Eduardo Prado Coelho, num texto de análise aos Verdes Anos insiste na desproporção “entre a placidez em que todo o filme decorre e o gesto final, violento e desmesurado, de Júlio”, apontando essa desproporção como “uma das molas dramáticas mais interessantes deste filme”, embora não deixe de nos avisar contra o “melodramatismo bastante incomodativo”. Ao invés, Paulo Rocha sustenta que “se em vez de estarem atentos à história e às palavras, olhassem o tratamento dado a estas, não haveria dúvida possível, ao nível da mise-en-scène era uma progressão inexorável”. Em que devemos ficar: na desproporção de Prado Coelho ou na inexorável progressão de Paulo Rocha?

Já que este é um texto de “desacordos” feito, permito-me discordar também de Eduardo Prado Coelho. De resto, toda a leitura de Os Verdes Anos é ainda, salvo retórica própria, muito semelhantes às leituras temáticas dos anos sessenta, ou seja, uma leitura de privilégio do temático em detrimento do formal. Só isso explica que se fale de “ingenuidade do protagonista” ou que se opte pela classificação simples de “um filme de campo contra a cidade”. Eduardo Prado Coelho deixou-se iludir, creio, pelas falsas pistas que Paulo Rocha espalhou pelo filme, a começar pela mais óbvia, a do título. De facto, a última coisa de que aqui se trata é de “verdes anos”. Estamos, desde o princípio, perante uma personagem (Júlio) que simula “bons sentimentos”, mas cuja contenção – e até uma certa gaucherie de comportamento – silencia o pendor trágico. Que a tragédia seja filmada tão subtilmente – como se de um murmúrio se tratasse – eis o que despistou mesmo os mais avisados, fazendo-os deslizar para a visão meramente lírica, sem perceberem que, em filigrana, todo o filme fala do sentimento do náufrago e que a explosão – se quiserem, para voltarmos à disposição arquitectónica, o nivelamento do subterrâneo e das alturas – está sempre prestes a irromper.

Os Verdes Anos é um filme do subterrâneo contra a altura, é um filme sobre a ascensão e o mergulho. Não sou eu quem o diz. É o plano de pedra lançada ao poço, é a cena do elevador de Santa Justa, com a sintomática réplica do tio a propósito “dos tipos que se lançam dali a baixo”, quem o diz é a sequência do par em casa dos patrões, terminando com o contra-plongé dos tectos e candeeiros, metáfora de um mundo às avessas em que o constrangimento de Júlio nunca é escamoteado. Afinal, todo o filme é a lenta e delicadíssima maturação da sequência final, constituída por dois movimentos tão bruscos como lógicos: em primeiro lugar, a subida rápida de Júlio a casa dos patrões de Ilda, dando-se o caso, mas não o acaso, de ser essa a primeira vez que Júlio se comporta de um modo quase alegre e, dir-se-ia, aliviado; em segundo lugar, após o crime, temos a descida abrupta pelas escadas – e o elevador, e os medos que ele desperta, é, como os sapatos, um dos sinais pontuadores recorrentes, a merecer por si uma tese – até aos três planos finais, esmagadores, repondo (e a figura que se desenha é a pirâmide) a hierarquia da ordem humana e divina, e impondo um silêncio que fica como o melhor som de Os Verdes Anos. Tão sublime como esse silêncio é apenas a elipse portentosa do crime, humilde homenagem de Paulo Rocha a Jean Renoir, de quem foi assistente em Le Caporal Epinglé [O Cabo Ardiloso, 1962], tão semelhante é o pudor demonstrado, como assinalou, em 1963, em texto publicado no Jornal de Arte e Letras, António-Pedro Vasconcelos, para que, depois, Alberto Vaz da Silva, no Tempo e o Modo, pudesse, na mais bela síntese do filme, assumir criticamente a importância dos Verdes Anos, e cito: “os filmes belos como o seu conhecem-se como o cristal, pelo toque”.   

Texto em português de Portugal. Disponível em “Paulo Rocha: As folhas da cinemateca”, páginas 31-35, Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema (livro indisponível no Brasil).

sexta-feira, 31 de julho de 2020

Imagens de imagens

    ''Pero este libro tiene vocación viajera y los viajeros no ignoran que en el itinerario de todo viaje hay que contar con esos senderos que no conducen a ninguna parte.''

    "Mas este livro tem uma vocação de viajar e os viajantes não ignoram o fato de que, no itinerário de toda viagem, você precisa contar com as trilhas que não levam a lugar algum". 

    Trecho do Prefácio de ''Poética del Cine'' de Raúl Ruiz. 


    Capítulo III- Imagens de imagens


    Em um episódio central de Requiem, a novela de Antonio Tabucchi, existe uma passagem que eu gostaria de evocar aqui. O protagonista, que estava em busca de Fernando Pessoa, estava em um museu de Lisboa muito próximo da hora de fechar. Enquanto ele avançava pelas salas desertas, encontrava de cara um pintor aficionado que de propósito tinha ficado dentro do museu durante a noite anterior. O homem, funcionário aposentado, passava as noites obcecado em copiar um quadro de Hieronymus Bosch. Suas cópias eram várias vezes maiores que o quadro original e só representavam um detalhe da imagem; sem embargo, dado que outros detalhes haviam sido adicionados a esse detalhe, a sua versão dava a impressão de ganhar em exatidão. Sem ter consciência disso, o pintor imitava o trabalho dos copistas holandeses descritos por Henry James, que, como bons artesãos que eram, adicionavam certos detalhes a fim de tornar sua cópia mais realista. Do que se deduz que se poderia conceber uma pintura que, à medida que se copia, se torna cada vez mais realista, até a saturação do seu potencial de realismo, e muito mais além inclusive do efeito conhecido como ''realismo fotográfico''. Outros artistas têm preferido, por sua vez, reproduzir sobre a tela o conjunto de quadros pendurados no salão de um aficionado pela pintura ou no ateliê do artista: pintura de pinturas. Esses exemplos pertencem a um mesmo fenômeno. Uma imagem gera outras imagens, as quais chegam a ser de imediato fragmentos seus, seu reflexo e seu aperfeiçoamento. Tendência esta que alguns críticos sancionam como um sinal de decadência artística, uma espécie de câncer com sua inflamação e proliferação.


(O Juízo Final, de Hieronymus Bosch, óleo sobre tela- 1482)

    Copiar o trabalho de alguém que nunca fez outra coisa a não ser copiar a natureza poderia flertar com a modéstia. Mas, os artistas são realmente capazes de copiar? Monteverdi inventou a ópera convencido de que o que fazia era imitar o teatro grego. No ato de copiar existem duas coisas distintas e divergentes. Uma se desprende da especialização, a outra da invenção voluntária. No capítulo anterior, mencionei de uma novela de Kasimiers Brandys em que vemos um homem em busca de sua antiga casa em uma Varsóvia reconstruída. Os homens que refizeram esta cidade se basearam em grande medida nas pinturas de Canaletto, que se situava entre aquele pintores que utilizavam o campo-contracampo pictórico. Este dado voltava o trabalho do pintor veneziano extraordinariamente interessante aos olhos dos urbanistas encarregados de reconstruir uma cidade bombardeada. As imagens de Canaletto foram pintadas, obviamente, muito antes do período da pré-guerra. Utilizando como referência aqueles quadros, os construtores da nova Varsóvia produziam uma fascinante anacronia, na medida em que a cidade do pós-guerra se convertia no ancestral de Varsóvia anterior à guerra.

    Mas voltemos aos nossos exemplos que concernem ao ato de copiar. Primeiramente, se escolhe uma imagem de formato médio a qual será selecionado um detalhe para logo ampliá-lo. Nesta ampliação deveriam aparecer os traços do pincel, mas o que se deseja obter não é esse efeito, se não o contrário, o de conversar para a nova pintura toda a fineza de textura da tela original. De onde o agregado de novos detalhes a melhoram. Este tipo de ampliações produzem assim o resultado inverso ao da ampliação fotográfica. Em certo sentido, somos aspirados na imagem. Suponhamos agora que o copista seja alguém carente de imaginação e que, incapaz de adicionar novos detalhes, se contente com acentuar o realismo dos detalhes já presentes na estampa original. Assim, por exemplo, quando deve ampliar o detalhe de uma rosa não lhe ocorra talvez adicionar umas gotas de orvalho. Pouco a pouco este processo de amplificação nos conduz inexoravelmente a uma pura superfície, de certo. Porém, suponhamos agora que o copista seja alguém provido de sentido de integralidade, esta forma centrípeta da imaginação. Não poderá se impedir de pintar essas gotas de orvalho cujos reflexos deformados, ademais, serão captados pelo espectador e tudo que rodeia. O copista pintará os poros das pétalas, umas cenas da vida cotidiana das bactérias e finalmente, a mesmíssima estrutura molecular da flor. Estas duas maneiras de distorcer um trabalho original à força da fidelidade excessiva não são, sem dúvida, as únicas.  

    Pensemos em uma sociedade totalitária. Nela e por uma razão qualquer, só está autorizada uma pintura única e a única atividade artística tolerada consiste em copiar a dita pintura. Toda variação, reinterpretação ou comentário visual da pintura única, é sancionada por um severo castigo; não obstante o qual, por erro ou por alguma razão política obscura, está permitido copiar os detalhes, liberdade que leva a um pintor a delimitar um por cento da tela e ampliá-lo cem vezes. A uma escala tal, lhe parece possível modificar ligeiramente o ponto de vista. Cada uma de suas reproduções sucessivas comporta assim um ponto de vista do quadro ligeiramente incompatível a respeito do ponto de vista precedente. Os fragmentos que representam um detalhe do nariz do Presidente da República (presidente, ademais, que é ele próprio o tema único da pintura original) estão se deslizando lentamente de frente ao perfil. O pintor tem trabalhado durante anos em ampliar em centenas de detalhes ampliados cem vezes, até o esgotamento do seu tema. Logo após a morte do pintor, seus discípulos empreendem a reconstrução de sua obra. Recompondo a totalidade dos fragmentos, esperam ingenuamente, encontrar ao final de uma reprodução o quadro original visto do mesmo ângulo. Mas tal reconstituição se mostra impossível, não aparece nenhuma imagem realista, tomada de frente, se não centenas de ângulos, o que coloca ao conjunto um claro ar cubista- vamos salientar que nesse país o cubismo é algo totalmente fora da lei-. Contudo, se cada fragmento se dispõe em um certo ângulo e se projeta a uma velocidade de vinte e quatro por segundo, o resultado culmina em uma série de imagens que dão a impressão de uma volta ao redor do quadro autorizado.

    Vamos imaginar agora outro artista nessa mesma sociedade totalitária. Se trata de um sujeito conformado que se contenta em copiar a única pintura permitida, sem introduzir a ela alterações nem de tamanho e nem de ângulo. Mas se trata também de um grande perfeccionista que não pode ser privar de corrigir certos defeitos da imagem, em particular suas perspectivas. Como a maior parte dos pintores chamados realistas, o pintor original havia utilizando diferentes tipos de perspectivas, segundo as zonas da imagem; no fundo, por exemplo, estas se curvam como acontece em uma fotografia tirada com uma lente grande angular. Em alguns lugares do canto, os objetos do primeiro plano pareciam menores que alguns, outros, por sua vez, mais distantes, como sob o efeito de uma lente focal. Somente no centro da imagem, onde se situa o Presidente da República, as regras da perspectiva clássica haviam sido observadas escrupulosamente. A primeira tarefa do copista consistiu, pois, em unificar a perspectiva do quadro todo, no que terminou por saturar a pintura tornando-a opressora. O copista advertiu em seguida que algumas sombras não pareciam estar em seu devido lugar; não correspondiam a nenhuma fonte luminosa plausível, pelo que então decidiu devolver sua lógica a essas sombras. Adicionou detalhes e objetos a aqueles elementos que estavam inicialmente na sobra e que agora apareciam iluminados. Foi o que aconteceu com uma certa cadeira, no fundo da imagem, sobre a qual dorme um gato. Tanto assim que a cadeira se encontrava sob a sombra agora em plena luz, o gato, não menos que a cadeira, não podia permanecer em um estado de semi existência. Acontece que tudo isso aterrorizou o pintor, que não compreendeu que havia tomado demasiadas liberdades; havia tomado a si a decisão que o rabo do animal deveria se dependurar à direita e não à esquerda. Mais grave ainda, uma sombra que nenhuma fonte luminosa justificava, ocultava parte do rosto presidencial. Modificar as sombras resultava agora demasiadamente pesado na medida em que o presidente tinha uma pinta peluda no no lugar exato da sombra.  Mas talvez a decisão do pintor original de ocultar a pinta mediante uma sombra ilógica alentava os copistas a fazer algo com essa pinta, cuja existência- temos que reconhecer- não passava despercebida para ninguém. A inexplicável proliferação das sombras era talvez um meio para colocar à prova o realismo dos copistas. Depois de muito hesitar, o copista foi presa de uma precisão obsessiva; já não pôde menos que retirar a sombra e fazer a pinta. Depois de ter retirado todas as sombras ilógicas, apareceu sob elas uma multidão de novos elementos, mas por azar certos objetos simbólicos haviam desaparecido. Agora bem, toda pintura oficial, como se sabe, é alegórica ou não; verdade que em nenhuma parte será tão efetiva como em um país que somente autoriza uma única obra. Aqueles objetos simbólicos, agora destoantes, haviam sido incansavelmente estudados, até produzir um conjunto de normas que definiam a filosofia nacional única do país e aqui que o copista se encontra com eles. Sem contar que se apresenta um novo problema; a cópia resultou excessiva em sua mesmice, em sua identidade e a seus excessos de tal fervor a tornava provocativa, deixando-a praticamente aberta ao conflito, à ruptura. Seja como for, o pintor havia colocado pouco espírito no seu sistema de aplicação de princípios do realismo. Havia corrigido, por exemplo, o estrabismo do Presidente, deixando incerta a magia do seu olhar. Como a pintura de Van der Weyden utilizada por Nicolau de Cusa* naquele jogo didático, ou como certos ícones baratos, os olhos do Presidente pareciam ordinários estando sobre todos e cada um, quem quer que fosse e por onde se encontrasse e agora já não olhavam senão em somente uma direção, dando a sensação de não ver ninguém, de não demonstrar menor inquietação pelo destino de seus compatriotas. Na nova cópia o Presidente havia ficado tão severo como ausente de qualquer atrativo. Tudo em sua aparência e até em sua postura- em particular a posição das mãos-, produzia com força a impressão de que, com um desespero silencioso, o chefe não perdia por esperar o momento de poder coçar a pintura do seu rosto. Condenado à pena de morte, o pintor morre em meio a profunda perplexidade.



(A Deposição da Cruz, de Rogier Van der Weyden, óleo sobre tela- 1436)

    Um terceiro pintor aprendeu a copiar o quadro com pouquíssimas pinceladas. Cinco ou seis são suficientes. Claro, visto de perto, toda noção de realismo se torna alheia ao quadro, mas à certa distância, a pintura resulta perfeitamente crível. O pintor decide infringir as convenções e pinta uma paisagem da sua própria aldeia, realizado somente com a combinação de cinco traços que abreviam a representação pictórica oficial. O resultado mostra uma espécie de paisagem pontilhista. A pintura no começo provoca um grande escândalo colocando seu autor em pena de morte. Mas o Presidente o perdoa, aludindo que, pesando a ilegalidade da temática, a imagem respeita o espírito das leis que regem toda atividade artística. Não sem mistério, declara: Tudo nesta pintura me lembra a mim mesmo. A pintura, é, pois então, aceita e a seguir os pintores terão dois quadros para copiar. Uma nova geração de copistas prefere copiar a nova pintura oficial. Entre eles surgem duas escolas. Há aqueles que aumentam a imagem e aqueles que a aperfeiçoam sem aumentá-la. Os pintores da primeira escola, ao adicionar detalhes que a aproximam da paisagem, eliminam todo rastro do Presidente. Os membros da outra tendência acentuam os cinco traços base e concluem que o único quadro concebível é aquele que representa o mandatário. Os primeiros são condenados, os outros condecorados. Até o fim da sua vida, o pintor da paisagem do seu povo natal, havia produzido trezentos e sessenta e cinco cópias que, com mínimas variantes e dispostas lado a lado em certa ordem, reproduziam o retrato original do Chefe de Estado. O pintor morre rodeado de amor e respeito.

    Copiar é acoplar; esta associação genitora é inevitável. Do mesmo modo como a arte imita a natureza e que toda imitação é uma cópia, os homens e mulheres se juntam para fazer cópias de si mesmos. Imitatio natura, a ficção imita a natureza, diz Balde. Em outro lugar diz que a ficção imita a ideia e o estilo da natureza. Tomás de Aquino assegura que a arte é a figura do Verdadeiro; ao que William Blake replica que a mentira é uma forma de verdade. Disso, talvez, esta surpreendente apologia da alquimia: na medida em que a arte imita a natureza, os alquimistas seriam pecadores (Oldradus de Ponte). Muitos retóricos dizem que a lei, soberana de todas as artes, imita a natureza e acima de tudo, os processos naturais. O poeta Huidobro clama: Não canteis a rosa, oh poetas: fazê-la florescer no poema. A arte do criador está a medida em que ele imita o comportamento da natureza. A imitação na arte- pelo menos na poesia- se transforma assim e com toda naturalidade, na melhor maneira de produzir novas figuras jurídicas. 

    Se as obras de arte são uma imitação da natureza, se são seu estilo ou sua substância- inclusive sendo somente recreações- sim possuem o poder de criar ex nihilo, imitar as obras de arte não poderia senão ser algo bom. Somente fica por perguntar até que ponto uma imitação é aceitável. Afirma-se que Deus cria toda coisa individualmente, porque se Ele ama a cada uma de suas criaturas ele as ama em sua individualidade. Deus confere a suas criaturas os meios para se juntar, digamos, para se copiar e assim, pois, se reproduzir, mas a individualidade de cada criatura não pertence senão a Ele. Na fabricação de criaturas, a noção de progresso, não tem nenhuma pertinência. Um modelo humano dos anos setenta não difere de outro dos anos oitenta. Segundo Jacques Maritain, o trabalho de Deus não procede por progressos, se não por aprofundamentos. Um Walter Benjamin religioso poderia haver dito que Deus faz o homem à maneira de uma obra de arte, de um modo único, dotando este homem de uma aura também única. Os homens podem produzir outros homens- inclusive não faltam religiões que proíbem a reprodução humana por qualquer outro meio que não seja o do coito-. Se Deus nos deu definitivamente a capacidade de repetir o processo natural e por meio da arte, o poder de criar, por que não pensar que as máquinas- que são extensão do homem- são capazes de criar obras de arte únicas, dotadas de aura? Benjamin, S. Langer, Tomás de Aquino e segundo certos profetas, até mesmo Deus, recusam esta ideia. Para possuir uma aura, toda obra de arte requer o manipulatio, de um manejo inspirado. 

    Seria muito lamentável que hoje estas ideias fossem deixadas de lado pelo único pretexto de que tenham passado de moda. Me parece, pelo contrário, que suas consequências políticas atuais são consideráveis. Pierre de la Vigne e Pierre le Lombard, se inspirando nelas, concluem que, posto que o homem é absolvido do pecado pelo dom de Deus, deve possuir aqui e para sempre o poder de criar. Ao ponto que a origem de toda lei normativa não pode senão ser poética. A poesia é autêntica cópia da natureza. Somente ela pode definir, identificar e inventar leis que são naturais por quanto são precisamente poéticas (um erro contemporâneo de tradução nos faz acreditar- segundo Kantorowicz*- que o significado do termo grego de poiesis seria criação). Dante fala da poesia como uma ficção retórica que deve estar sujeita às regras da música. Mas, o que acontece antes com a pintura? E com o teatro? E com as artes gravadas, aquelas que Benjamin chama de ''artes mecânicas''? Na Idade Média chamavam a pintura e a escultura ''ars mechanicae'', termo este derivado de ''moechus'': adúltero (cf. Erwin Panofsky, Galileo crítico de arte).

    E se a criação inteira não fosse senão um conjunto de obras mecânicas? Mantendo o meu temperamento dado às digressões, gostaria de entregar aqui algumas variações agnósticas sobre o tema da cópia. Uma delas é bastante conhecida graças a um ensaio de Borges, ''A defesa do falso Basílides'' (presente em ''Discussão''), e estaria baseada, segundo o escritor argentino, em uma ficção teológica inventada por um herege. Li faz pouco tempo o texto, mas devo admitir que não achei a mesma coisa que Borges, mas há de se reconhecer também que seu Basílides é mais plausível que o original. Segundo Borges, este declara que o mundo foi criado trezentas e sessenta e cinco vezes. Cada criação seria uma cópia da anterior: exatamente como são cópias as bandas de vídeo segundo um processo que leva a perda de qualidade uma geração à seguinte. Nosso mundo seria a cópia número trezentos e sessenta e cinco do original. Um mundo atrapalhado em que, como acontece nas pinturas chinesas, o pleno e o vazio se juntam no espaço e nos ensinam a imperfeição e o aspecto fugitivo da existência. Outra variação sobre a natureza arbitrária da cópia mecânica do mundo foi inventada no século passado por Auguste Blanqui, quem pensava que o mundo é inacreditável e inalterado (vamos lembrar que Blanqui era ateu e atéofilo). No entanto, como no caso de um best-seller, deste mundo se fizeram circular várias cópias. Deste modo, existiria um número infinito de mundos, mas como a natureza não está isenta de erros, alguns deles seriam cópias defeituosas. Em certos mundo haveriam deslizados umas tantas páginas em branco, outros não teriam senão uma só página repetida ao infinito, outros mais, finalmente acusariam somente defeitos menores: uma garrafa de Coca-Cola a mais, uma sinfonia de Beethoven a menos.



(Adão e Eva, de Tiziano Vecellio, óleo sobre tela- 1550)

    Pelo menos no nosso mundo ocidental, Deus deu ao homem a licença para copiar e para criar. A forma mais corrente e mais complexa deste direito é o ato sexual. Os primeiros genéticos viram na mulher uma tela sobre a qual o esperma do homem pintava o que seria o filho concebido. No ditado popular chileno ''pintarle un hijo a una mujer'' (''pintar um filho a uma mulher'') denota de modo direto o ato sexual. Durante a filmagem de um filme que realizei en Túnez, um dos técnicos da equipe, que em sua infância havia criado pássaros, me contou que os pássaros fêmeas- ''como las mujeres'', pontuava ele- são sensíveis às cores durante a gestação. Presas as fêmeas em uma jaula vermelha durante esse período, seus descendentes seriam vermelhos ao nascimento e elas também. O que evoca a um texto bizantino de Georges Le Moine, que tratava de uma emperatriz do período iconoclasta (baixo Teófilo 829-892), que adorava em segredo um ícone de cristo. A imagem foi descoberta, porque seu filho nasceu barbudo.

    Já que falamos de Cristo, não é verdade por acaso que sua imagem é a mais perfeita pintura de Deus? (cf. Vicente Carducho, Diálogo 7º sobre a pintura). O hino nacional chileno proclama que Chile é a cópia feliz do Éden e assim sucessivamente. Mas nosso propósito era a imagem de Deus Filho, cópia de Deus Pai, revelada (no sentido fotográfico do termo) pelo Espírito Santo. Neste assunto, quem copia quem, dado que os três são iguais e coeternos? Existe um simpático texto mourisco do século XVI, período da Rebelião de Alpujarras, em que se tratar de justificar a Trindade desde o ponto de vista muçulmano. Imaginemos um homem que se olha no espelho. É noite, uma única vela ilumina seu rosto. Este homem é Deus Pai. Seu reflexo no espelho é Deus Filho, o esplendor da vela é o Espírito Santo, enquanto o espelho é a Virgem Maria. André Breton descobriu um filme de propaganda norte-americana, divulgada durante a Segunda Guerra Mundial, uma variante de pesadelo desta maneira de copiar. Um espião japonês entra clandestinamente nos Estados Unidos, se aloja em um hotel e uma vez sozinho em seu quarto se olha no espelho, transformando-se assim em dois espiões japoneses. Por consequência, em um breve lapso os espiões japoneses chegavam a ser mais numerosos que os cidadãos norte-americanos. Eu dizia a mim mesmo que, convertidos em cidadãos, aquela multidão de espiões estava em condições de levar à presidência dos Estados Unidos um candidato japonês. Ainda mais aterrorizante, posto que esta vez se trata de conceitos filosóficos consistentes, a saber, os do jovem Wittgenstein: um mundo no qual a linguagem pode ser reduzida à proporções ou formas lógicas que se compõem de átomos nos quais o filósofo veria imagens.

    As proposições mais simples articuladas em nossas práticas verbais são extraordinariamente complexas comparadas com os átomos, o que faz impossível a descrição exaustiva de uma só proposição. Aqui, sem dúvidas, o vocábulo imagem não remete somente à pintura, podendo designar também uma partitura musical que seria copiada por músicos ou a mesma cópia, reproduzida sob forma de gravação. Cada cópia é produzida segundo códigos diferentes- com meios diferentes-. Em um sistema de correspondências tal, podemos postular que em seu conjunto as artes poderiam se copiar umas às outras. Imaginemos que aquelas correspondências sejam a tal ponto precisas, que, depois de ouvir o equivalente musical de ''O Vento Levou'', sejamos capazes de escrever a novela em que se baseia o filme, enquanto uma pintura que iria conter todo esse filme nos permitiria transcrever a integralidade daquela partitura musical. Algo assim como se eu pudesse citar um poema assobiando seu equivalente musical.



(A Hipótese do Quadro Roubado, de Raúl Ruiz-1978)


    Em 1924, depois de uma longa estadia em uma clínica psiquiátrica, o historiador de arte Aby Warburg decide dedicar o resto da sua vida (cinco anos) a colocar de pé um museu de reproduções, um museu sem nenhuma obra original. As cópias expostas ali deveriam estar organizadas de modo a suscitar aumentar desvios teóricos seguindo uma ideia de montagem específica e premeditada, consistente em uma justaposição de imagens. O propósito de Warburg era colocar em evidência conexões entre figuras que, tendo uma origem geográfica e histórica diferente, adotassem um comportamento idêntico (muito frequententemente de êxtase ou de embriaguez). No mesmo muro, Warburg havia pendurado recortes publicitários junto à reproduções de imagens da Grécia Antiga, pinturas renascentistas e recortes de jornais. Havia ali algo da linguagem múltipla que eu evoquei anteriormente falando do jovem Wittgenstein. A avidez de Warburg consistia mais que nada em sublinhar a continuidade, ao longo da história, de mesmos gestos, mesmas atitudes humanas, de mesmas ''intensidades''. Certos observadores viram nesta justaposição um continuum de intensidade que tinha algo como o efeito de apagar todo o sentimento de identidade atual.

(Projeto Atlas Mnemosyne, de Aby Warburg)

    Uma prática comum nos salões parisienses do século XIX evoca curiosamente o dispositivo de Warburg. Penso naquilo que se conhece como ''quadros plásticos'': um grupo de modelos vivos escolhem um quadro suficientemente sugestivo de um pintor antigo, cuja cena tentam recriar de forma teatral, adaptando cada um uma posição correspondente às que se vêm nesse decorado artificial. Agora bem, já sabemos que os pintores utilizavam também modelos vivos. De maneira inevitável os modelos do quadro vivo se mexem um pouco, imperceptivelmente, e devem fazer esforços repetitivos para recuperar a ''pose'' inicial. Giram incessantemente em torno dessa pose que lhes foge de alcance. Resulta-se disso uma certa tensão física, a mesma que devem ter experimentado os modelos originais do atelier do pintor. Tal intensidade comum é como uma ponte que liga ambos grupos de modelos. Os rápidos movimentos dos modelos originais, inscritos na pintura, são reproduzidos agora pelos modelos que executam o quadro plástico. Em certo sentido, os primeiros foram reencarnados nos modelos do quadro e, pelo menos, o que se reencarnou foi aquela tensão. Em tais gestos reencarnados, alguns filósofos como Nietzsche e Klossowski viram uma ilustração e inclusive talvez uma prova do eterno retorno.




(A Hipótese do Quadro Roubado, de Raúl Ruiz- 1978)


    Todas estas ideias haviam sido reviradas na minha cabeça antes que os trabalhos de Pierre Klossowski as fizeram evidentes, a ponto de chegar a se cristalizar mais tarde em um conto teórico, que contarei em seguida e que começa no final do século XV. Um contemporâneo de Piero della Francesca- que pode ser até mesmo Piero em pessoa- perde a visão e, cego, decide continuar pintando segundo um procedimento de sua invenção, não muito diferente da simetria do corpo humano de Durer. Seguindo este método, o artista utiliza uma série de números para ditar uma pintura, sem que seja necessário ver ou apalpar a tela. Deste modo, o pintor dita e os discípulos executam. Dois amigos passam para vê-lo em seu atelier, mas ocorre que ambos estão incluídos no quadro. O pintor os reduziu de memória a uma série de fórmulas matemáticas. Um dos amigos se reconhece imediatamente na tela, enquanto o outro não. O sistema do artista - que não deixa de ter algumas limitações- deformou seu rosto, certamente pelo motivo de que alguns rostos não são facilmente integráveis em uma fórmula matemática. Ao cabo de alguns quantos séculos, desde o fim do século XIX, em 1986 exatamente, um pintor alemão, especializado na reprodução em pequena escala de obras de grandes pintores, descobre a pintura ditada pelo artista cego, com a grande de surpresa de reconhecer nela seu próprio rosto. Conclui que, posto que seu rosto havia sido previsto séculos antes do seu nascimento, ele deve estar imbuído de uma missão. Mas qual viria a ser aquela missão?


(A Flagelação de Cristo, de Piero della Francesca, óleo e têmpera sobre tela- entre 1455 e 1460)

    O pintor romântico- que depois de tudo isso talvez não seja alemão, se não austríaco e nada impede pensar que seu nome não seja Adolf Hitler-, decide reproduzir aquela obra do Renascimento, mas modifica a tal ponto a composição, que adiante a sua imagem está situada no centro do quadro, criando um desequilíbrio nos elementos que compõem a pintura. Em um acesso de modéstia, o pintor decide retirar totalmente sua presença da composição. Só que no lugar de corrigir o desequilíbrio, ele acentua. Decide então retornar ao centro do mesmo quadro, para o qual tem que reorganizar novamente todos os elementos, com o efeito final de deixar a pintura profundamente melancólica. Em consequência desta série de tentativas falhas,  ele deixa de lado a pintura, devolve os pincéis e entra para a política.

    A pintura, não obstante, sobrevive- obra mestra inacabada, como no relato de Balzac-, sem figuras, sem composição, mas coberta de uma massa de pinceladas díspares, e desaparece por alguns anos antes de ser descoberta por soldados britânicos enquanto despejam os escombros de uma rua bombardeada. Entre esses soldados há um professor de história da arte, admirador fervoroso da arte moderna, que toma notas da data inscrita na tela e deduz que o autor é um dos primeiros artistas abstratos, mas exatamente um abstrato de uma linha de expressão das mais contemporâneas. Depois de haver pendurado essa pintura em meio a outras coisas de sua coleção privada, o homem perde a vista e se retira em um lar para cegos. O único bem que ele decide levar consigo é essa pintura, pois quer tê-la perto de si durante os longos dias de escuridão. Esta decisão sua não carece de boas razões, já que a pintura é tátil e, melhor ainda, ao tocá-la deixa a impressão de que ela quer que a toquem, como se pudesse, pelo tato, comunicar suas figuras invisíveis; só que essas figuras vomitam ódio e mostram uma paranoia agitada. Logo o colecionador cai doente e se suicida batendo a cabeça contra uma coluna neoclássica, a pintura ficará nessa instituição para cegos. No fim dos anos sessenta, uma cantora de rock, a quem os refletores do estádio em que deveria se apresentar a deixa cega, se aloja no mesmo quarto em que se encontra a pintura. Uma estreita relação se estabelece entre a pintura e a cantora que lê nela uma partitura musical. Do que resulta uma curiosa combinação de ars nova e música militar prussiana, com  algo de Mahler e um pouco de Franz Lehar. Um dos médicos da instituição organiza de vez em quando, espetáculos de luz e som para arrecadar fundos para caridade. Tendo a ideia de traduzir a música da cantora cega em sequências luminosas e coloridas, o efeitos destas vá desencadear em uma risada histérica que irá durar várias semanas, com a sua morte, em consequência de um ataque do coração. Afortunadamente, seus colegas tiveram a ideia de gravar suas gargalhadas e assim comprovaram que estas provocam a quem as ouvir uma irresistível vontade de dançar. Decidem então utilizar a gravação durante uma festa anual de entrega de diplomas a uns estudantes de medicina. Durante a festa, um cirurgião especialista em pulmão, enlouquecido pelo estrondo da risada dançante, apunhala um dos seus colegas. Um vídeo de um aficionado, filmado também por acaso durante a festa, servirá de prova no processo. Um dos membros do júri, professor de arte, tem a grande surpresa de comprovar que, em seus movimentos, o baile filmado descreve o equivalente dinâmico exato da coreografia retratada em uma pintura do Renascimento. Ao cabo de uma investigação, o professor descobre que a pintura em questão havia sido ditada por um pintor cego, a quem finalmente remontaria, em sua origem, a causa do crime. Infelizmente, durante o processo são difundidas diante o júri as gravações da risada, cujos membros ao ouví-las começam a dançar. Em meio a um baile frenético, o juíz mata o professor de arte cravando em um olho uma pena de rabo de faisão. A história segue ainda sem explicação, mas, tortuosa como é, terá permitido pelo menos no que me concerne, alcançar o objetivo que eu me havia proposto. Isto não era outra coisa além de fazer plausível a ideia de que toda imagem não é mas do que a imagem de uma imagem; imagem traduzível a todos os códigos possíveis e que esse processo não pode senão desembocar em novos códigos geradores de imagens, estas mesmas geratrizes e apetitosas.

    Em Variedades, Paul Valéry adverte que a noção de terra incognita, segundo a qual no mundo existem regiões ainda inexploradas, não é válida. Todos temos consciência de que a terra é indubitavelmente redonda e do mesmo modo possuímos todos uma vaga ideia daquilo que podem parecer aquelas regiões do nosso planeta que ainda não vimos. A exploração e invenção são cada vez mais objeto de especialização. O mundo se transformou em um lugar, portanto, o mundo tem lugar. É certo que, válido para o espaço, no se pode dizer o mesmo do tempo e nesse terreno ainda há muito que ser explorado. Estabelecendo novas conexões entre acontecimentos situados em épocas diferentes, a ideia de história tem sido e continuará sendo profundamente modificada e é assim como pouco a pouco o templo linear e a ordem cronológica têm sido desestimulados em proveito da justaposição de acontecimentos ocorridos em tempos diferentes e em lugares diversos do planeta.

    Algumas daquelas justaposições das quais a minha conferência viria a oferecer um bom exemplo, resultam apenas críveis. Esta exploração do tempo cada vez mais há de conceber proposições anacrônicas, à maneira daquelas que fazia valer o jesuíta Antônio Vieira em seu História do Futuro, ou bem Lope de Vega ao descrever aquela cena em que um anjo vem contar a Isabel, a Católica, a futura história da Espanha (O menino inocente).  

    Em uma loteria de sincronismos e anacronismos, por pouco que nosso espírito se deve levar à melancolia, terminaríamos por acreditar que o mundo não tem sido até agora mais que uma Anunciação, e que como em certas pinturas religiosas, para completar o quadro, não falta se não a Epifania. Se poderia proclamar inclusive que, a partir deste momento para que tudo deva tornar-se real, bastaria que deixássemos de estar sujeitos como estamos aos transtornos que a história e o progresso nos têm imposto sem cessar. Pessoalmente não creio ser mais melancólico que entusiasta. Há alguns anos que na América Latina tínhamos inclusive o costume de descrever nossa situação como a de uma disponibilidade sem qualidades (lembremos que Gide havia proposto traduzir O homem sem qualidades de Musil, por ''O homem disponível'').



(O filme que está por vir, de Raúl Ruiz- 1997)

    Copiar, inventar, descobrir, são processos extremamente complexos e nem sempre cômodos de diferenciar. O terreno sobre o qual se fundou a maior parte das nossas convicções vem se tornado incerto à força de paradoxos, contradições e redundâncias- o todo, corrompido por uma boa dose de má fé-. Esse território se revelava ao mesmo tempo, ser um amontoado de ideias esmagadoras que, abaixo o pretexto de datar de algum tempo, escaparam da nossa atenção. É possível que nos achássemos demasiadamente ocupados verificando a cada momento em que ponto da cronologia oficial do mundo estávamos situados, passando o tempo em classificar nossas obras como boas ou ruins; boas, por serem novas, ou ruins, por serem antigas- em uma singular perversão do argumento teológico da existência de Santo Anselmo, fabricante de mundos perfeitos. Perfeitos por não terem sido nunca antes vistos.

Tradução feita por Catalina Sofia.

Disponível em: https://mipersianamericana.tumblr.com/