por Vera Lúcia de Oliveira e Silva
Nada me preparou para o final trágico – nem mesmo rever
o filme, tomando como farol as palavras de Paulo Rocha: “se em vez de estarem atentos à história e às
palavras, olhassem o tratamento dado a estas, não haveria dúvida possível, ao
nível da mise-en-scène era uma progressão inexorável”.
Segui supostos indícios – mas acabei concluindo que Paulo
Rocha deixou pistas falsas e redobrou a falsificação com suas palavras sobre a progressão inexorável. Se há no filme
algum indício concreto, ele foi apontado por Kátia Patrício – a homologia entre
a cena na TV, onde modelos contracenam com um tigre enjaulado, e a cena em que
Ilda “desfila” os trajes da patroa para um Julio acuado, sentado em um
banquinho, mais apropriado para uma criança. Lembrou-me Nietzsche: O que sabe o homem, de fato, sobre si
mesmo?... na indiferença do seu não-saber, ele repousa sobre o impiedoso, o
voraz, o insaciável... um assassino sobre as costas de um tigre.
Então, tomada pelo impacto da pergunta – de onde vem
a grandeza trágica com que se encerram os Verdes
Anos? – decidi entrar em cheio na tragédia, deixando de lado possíveis
anúncios premonitórios, abandonando de vez uma talvez crônica da morte anunciada.
Fui diretamente ao dia do desfecho e fiz a leitura mítica que passo a
partilhar.
Na tarde daquele dia, Júlio parece bem: diferente
dos dias precedentes, asseado e elegante, passeia com Ilda pelo campus da
Universidade, cuja arquitetura altaneira aponta à Cultura, talvez como um aceno
de um possível destino pulsional
alternativo à violência.
Naquele dia ele propõe casamento. Embora interessada
por ele e sua companhia, Ilda recusa a proposta, alegando lúcidas razões de
ordem prática. A seguir ela pede licença e vai confraternizar com amigos de sua
aldeia natal. No giro seguinte do parafuso, Júlio “acabará” com ela. É na
ambigüidade da palavra “acabar”, que ele convence a patroa a permitir que se
encontrem pela última vez: está tudo acabado entre nós; só quero devolver
uma foto; é só um minuto. A patroa que, anteriormente, em um diálogo de cores
maternais, fizera à moça advertências quanto ao perigo representado pelos
rapazes, da cidade ou do campo, cede ao argumento de Júlio, talvez levada por
sua aparência descontraída e benevolente.
De fato, pela primeira vez em toda a mise-en-scène “Júlio
se comporta de um modo quase alegre e, dir-se-ia, aliviado”. A patroa vence as
reticências e permite o encontro fatal.
Uma vez a sós, o homem penetra o corpo da mulher.
Que emite, não um grito de dor ou um pedido de socorro, mas um arfar de gozo . Consuma-se o casamento
entre Eros e Tânatos, bodas de sangue entre o Amor e a Morte.
Considerando que a
musa trágica por excelência é o castigo imerecido;
e que o homem está no mundo como ser-para-a-morte,
sendo a morte um problema imposto pela própria existência; então o desfecho
trágico sustenta-se por si só, sem necessidade de uma progressão inexorável explícita. Surpreende: como erupção
assombrosa do Real.
Na cena seguinte, o filme alinha três figuras
femininas míticas: a Mãe, a Mulher e a Morte – as três Moiras, as que fiam,
tecem e cortam o destino dos homens e dos deuses (na psicanálise lacaniana, uma
"interpretação" encontra a marca do seu acerto -ou não- naquilo
que ela produz em associações, no depois. Se assim for, encontro em O Rio
de Ouro, de 1998, uma espécie de "confirmação" da possibilidade de
leitura de Paulo Rocha à luz da tragédia grega, pois, aqui, às margens do
Douro, Isabel Ruth encarna, em plena majestade, a condensação das
três Moiras).
Voltemos ao Verdes Anos: Júlio sai da cena do crime.
A mise-en-scène continua a entregar elementos para apoiar a tese das bodas
consumadas. Despido do paletó e da gravata, ele saltita pelas escadas. Vai a um
bar, chama a atenção de todos, quebrando uma vidraça, e expõe a mão ensangüentada, estampando-a no
linho branco do casaco do garçom – como um lençol exposto na manhã seguinte às
núpcias, para honra dos noivos e suas famílias .
Cena final: o homem sozinho – ele e seu ato – face a
face com aquilo que o ultrapassa e esmaga, o Destino, em três planos de
potência avassaladora.