quinta-feira, 18 de abril de 2013

Zulmira, antes de Madalena


XAVIER, Ismail. “A falecida e o realismo à contrapelo de Leon Hirszman” (fragmento.) In: O Olhar e a Cena. São Paulo: Cosac & Naify, 2003 (pp. 255-260)

Para compensar o nascimento na pia de gafieira e corrigir o que o incomoda como "mancha de origem", o Boca de Ouro sonha com a glória do caixão de ouro e planeja o seu enterro como coroamento da grande
vingança sobre a sociedade. A acumulação de riqueza se põe então a serviço do fetiche centrado na caveira dourada e na pompa de sua preservação: a vida trabalhando para a morte. Para afrontar a prima Glorinha, compensar
 sua desimportância diante dos vizinhos e vingar-se da vida e do marido, Zulmira planeja seu próprio enterro como quem tece os cordéis de um grande crime, providenciando com diligência todas as encomendas e deixando tudo preparado, desde os detalhes pomposos do ritual até a forma de financiá-lo, tarefa difícil no espaço de pobreza em que se move. Prove, até mesmo, o acontecimento central: sua própria morte. Ao Boca de Ouro e a Zulmira o destino reserva o grande logro de um miserável enterro à vista de todos, não lhes dando a chance desta derradeira revanche em que tanto se empenharam.
O que mata o bicheiro é o que se mostra de imediato como prepotência, ambição desmedida. O que mata Zulmira é a culpa, a erotização da morte como compromisso entre o prazer de seduzir e a moral ascética — enquanto cadáver poderá se exibir nua para os vizinhos. Antes disso, no tecer da trama, recusa o sexo e o marido, restando-lhe uma certa volúpia de antecipação, quando investe neste prazer de dar a ver, embora apenas quando inerte e frio, o corpo que esconde agora em vida. Alimentada por este imaginário, ela encaminha a própria morte com requinte, sob o olhar impotente do marido e fora da vista de Pimentel, o secreto ex-amante milionário, a quem ela não deixa de reservar uma surpresa: a ele caberá o papel de financiar a pompa do enterro. Ao marido Tuninho caberá receber o dinheiro sem perguntas e pagar a funerária.
Nem tudo, entretanto, funciona como previsto. Embora Tuninho decida cumprir o prometido no leito de morte, o encontro com Pimentel entorna o caldo. O milionário recebe aquele que se apresenta como primo de Zulmira e, de início, se mostra disposto a colaborar, não ciente da quantia que deverá desembolsar. No entanto, durante a conversa, Pimentel revela, envaidecido, o seu af air com Zulmira, deixando o marido humilhado (teria ela previsto esta hipótese?). Este, na base da chantagem, extrai do milionário a enorme soma determinada pela falecida. Em seguida, dá o troco na mulher, encomendando o mais barato dos enterros, e vai para o Maracanã. Enquanto o caixão miserável de Zulmira é carregado pelos vizinhos, Tuninho vive seu momento catártico no estádio lotado para ver o clássico Vasco x Fluminense, solitário na multidão.
Diante da desgraça do casal protagonista de A Falecida, seu cotidiano besta, a falta de perspectiva, o isolamento, observadores apressados do Cinema Novo e da cultura militante saída dos Centros Populares de Cultura dos anos 60 já se perguntaram como, afinal, Leon Hirszman fez a ponte entre seu projeto de cinema político e o compromisso de filmar a peça de Nelson Rodrigues, logo após o golpe militar de 1964. Difícil transformar o final da história em recado de esperança, em profissão de fé nas transformações sociais geradas em lutas pautadas pela mobilização das classes oprimidas. A
pergunta tem sua graça, mas, considerando o melhor do Cinema Novo e o percurso deste cineasta, revela sua dimensão adversária, de caricatura, pois ser dogmático e expositor de ações exemplares foi coisa que Leon nunca fez depois de seu episódio — A pedreira de São Diogo — em Cinco vezes favela (1962), produção do CPC. Ao contrário, sua tônica foi a do estudo, em profundidade, de certas personagens em cenários de crise e dissolução, como em A Falecida (1965). Se o movimento da protagonista é aqui sempre descendente, nada é muito distinto do que se pode ver num conjunto de filmes brasileiros desencantados feitos no período 1965-70, em que há nítido empenho em entender melhor a mentalidade daquelas camadas da população de que se esperava outro comportamento na crise política recém-vivida. Ao mesmo tempo, este tipo de movimento descendente corresponde a forças
presentes na obra de Leon que superam a conjuntura dos anos 60. O que vemos em A Falecida não está alheio ao clima de outros filmes, notadamente São Bernardo (1972), adaptação de Graciliano Ramos que guarda suas afinidades com esta adaptação de Nelson Rodrigues. Embora distintas na formação e no contexto social, há traços comuns de inquietude tolhida nas duas mulheres, Zulmira e Madalena. E é sugestivo comparar o tratamento dado a estas personagens interrogadas por Leon com insistência, em planos longos, na procura de imagens capazes de sugerir a força escondida na imobilidade, a energia de uma expansão contida que, na inversão própria aos ressentidos ou melancólicos, se desdobra num caminho de morte. São projetos de abandono do mundo que amadurecem, ganham configuração definida e se espelham na determinação com que estas mulheres conduzem as longas cenas de despedida, observadas de perto e com paciência por uma câmera que continua a interrogá-las mesmo quando elas estão lá de corpo estendido, inertes. Cada qual a seu modo, elas encontram na morte anunciada a contundente resposta à cegueira do marido, alcançando um efeito devastador sobre Tuninho e Paulo  Honório, condenados a conhecer a mulher tarde demais. Este paralelismo, e outras semelhanças no ritmo, na exploração do rosto e na atmosfera dos diálogos, assinalam um traço de estilo que é do cineasta e não depende do texto de origem, traço que adquire maior contundência quando lembramos a enorme diferença entre Paulo Honório e Tuninho, entre o empresário rural modernizador que transforma a natureza e os homens à sua volta, sempre à vontade com as coisas do poder, e o pequeno homem desempregado que habita a casinha acanhada do subúrbio, todo amarrado na malha da cidade grande, sem chances de se projetar em qualquer coisa, à exceção do imaginário do futebol, que define o calendário de sua vida. A distância é enorme mas não impede a aproximação trazida por um certo modo de olhar a teia implacável que dissolve o mundo das personagens, marcando todas as vivências com um sopro de melancolia que contamina até mesmo os momentos mais dinâmicos e vitais na carreira do fazendeiro Paulo Honório.
A questão da morte é, portanto, o ponto de convergência. O estudo da alienação, em Leon Hirszman, se dá pela observação insistente dirigida a personagens enredadas em engrenagens mortíferas que, de modos distintos, pensam controlar. E há, no olhar do cineasta, uma atenção também especial ao momento da crise em que cabe à personagem masculina se expor; diante da perda, enfrentar ou não sua própria verdade. Tal momento, no caso em pauta, terá papel decisivo na leitura, para muitos tão contracorrente, que Leon fez da peça. Dentre as histórias de Nelson Rodrigues, A Falecida representa um momento especial de triunfo da morte; três atos de ações e sentimentos estruturados em torno de um enterro. Drama doméstico, culpa, o enlace de amor e morte, o desejo e a moral inconciliáveis — estão aí os mesmos lances do jogo tipo "tema e variações" do dramaturgo que encontrou mais tarde, no cinema dos anos 70, adaptações que privilegiaram uma exacerbação das intensidades em chave tragicômica, um teatro da crise dos arcaísmos patriarcais que alcançou resultados notáveis nos filmes de Arnaldo Jabor, principalmente em Toda nudez será castigada (1972). No filme de Leon Hirszman, porém, a palavra de ordem é a sobriedade e tudo se condensa em lances mínimos, numa leitura da peça que se afasta, de um lado, dos excessos do melodrama e, de outro, das extroversões da comédia. Resulta o passo lento de conversas em surdina separadas por cortes que, na aparente continuidade, envolvem saltos discretos no tempo, intervalos subentendidos que só reforçam o tom melancólico das cenas, numa desaceleração que contrasta com o texto sempre ágil de Nelson Rodrigues. O tempo escoa entre uma fala e outra, entre uma cena e outra. O cinema aqui não se impregna do estilo clássico, hollywoodiano, que celebraria a afinidade entre a fluência, o domínio de tempo e espaço, presentes no texto do dramaturgo, e aquilo que, em geral, se identifica como "técnicas cinematográficas". Na contramão, porque mais no feitio do cinema moderno, o filme ressalta os intervalos e não se apressa em ver fluir a palavra, dando ensejo a um olhar que descreve ambientes, desenha o espaço de tristeza do casal e interroga a superfície dos rostos, a tensão dos olhares, o face-a-face com o vazio. Do próprio estilo realista já adestrado na configuração dos espaços emerge uma observação insistente que assume o risco de uma interação mais detida entre câmera e ator, um olhar que exige tempo para se adensar. O essencial é depositar, na textura da imagem, a carga de uma existência de periferia urbana trabalhada em sua dimensão mais introspectiva, quando ligada a Zulmira, e de ilusória extroversão, quando ligada a Tuninho.
Permanece afastada, portanto, a ênfase nas reviravoltas e nos "golpes de teatro". E fica longe, igualmente, um certo cinema da velocidade. Lances de impacto, revelações são inevitáveis, mas ainda nestes casos permanece a tendência a dilatar o tempo da cena, fazer menos ágeis o diálogo e a própria ação, mesmo quando esta se precipita. O que em São Bernardo vai se afirmar como uma dramaturgia do plano-seqüência e da imobilidade, aqui já se esboça como uma dramaturgia de primeiros-planos. Em foco, o rosto desafortunado.

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