,por Jean-Baptiste Thoret
Característica da estética barroca, o risco de
transbordamento – ou mesmo de um estilhaçamento da forma pela matéria- se
traduz em Argento por um jogo constante de dissociação entre o contorno
e a figura, entre a silhueta e a efígie. Em seus filmes, ambas não
coincidem forçosamente, e testemunham um transbordamento do quadro pelas
matérias que o constituem. Para além das determinações psicológicas de seus
personagens- o que é um esquizofrênico senão a existência de duas
personalidades no seio de um mesmo corpo?- , é constante que um mesmo contorno
abrigue duas formas ( como neste plano em Tenebrae, onde o assassino se destaca
da silhueta do inspetor Giermani: dois corpos no interior de uma mesma
silhueta); ou que uma mesma forma preencha diversos contornos ( em Suspiria,
Helena Markos, figura refratada em diversos elementos, não compõe uma figura homogênea,
apesar da aparição final de um corpo decaído); ou que uma cor escape de sua
forma e se transforme numa mancha móbil ( a fuga de Sara em Suspiria, escandida
por deslocamentos de manchas luminosas); que uma sombra se desloque sem
referente corporal ( a seqüência da piscina em Suspiria). Ou ainda que uma
função se torne autônoma e invista momentaneamente o corpo de um personagem:
como neste plano de Gabriele Lavia em Inferno que, alguns segundos depois da
queda da eletricidade, parece habitado pelo Mal, ou o de Karl Malden em Gato de
nove caldas , quando Giovani por um instante o toma pelo assassino, quando ele
volta ao mausoléu. Em Suspiria de Profundis, Thomas de Quincey descreve assim
as Três Feiticeiras: “Quem são estas irmãs? E o que fazem? Deixem-me
descrever suas formas e sua presença; se fossem uma forma, seria a que flutua
sem cessar em seu contorno; se fosse uma presença, seria a que sem cessar
avança para o primeiro plano, ou recua por entre as sombras”. O movimento
avança sempre sobre a forma que o contém: ponto essencial de uma estética que
busca desestabilizar o mundo, fazê-lo sair de seus limites. Nos filmes de
Argento, não sabemos para onde vai o mundo, porque ignoramos o que o sustenta.
Em Inferno, no entanto, uma seqüência fornece um
modelo rigoroso da forma como este procede. Incomodado com a proliferação
de gatos em sua loja, o antiquário Kazanian decide uma noite afogar em um lago
da cidade alguns gatos que conseguira capturar. A sequência se abre com três
planos compostos segundo um mesmo princípio simétrico. Uma linha de horizonte (
uma ponte, bosques) cinde o quadro em duas partes iguais: no alto, uma visão
“cartão postal” de buildings nova iorquinos , depois a de um vendedor
ambulante embaixo, seu reflexo num lago circundado por vegetação. Imagens de um
mundo indissociável de sua dimensão muda e ativa, de sua dobra, em suma. Pois
a linha der contato separa menos as duas partes do quadro do que as coloca
em relação: entre o moderno e o arcaico, entre o sólido e o líquido, entre
o macrocosmo ( a lua) e o microcosmo ( o lago e os ratos), entre a realidade e
sua imagem, algo vai circular em segredo, e segundo um processo indiferente às
leis da lógica e da causalidade. A composição bipartida do plano ilustra um dos
princípios matriciais do cinema de Argento, que estabelece contrastes com o
propósito de experimentar a síntese ( figurativa, plástica, cinematográfica),
que imagina novas figuras a partir de elementos a priori antitéticos. Uma
vez que a configuração da sequência foi estabelecida- dois motivos de quadros
que se opõem e se respondem-, uma série de planos precisa a natureza de sua
relação: a água dos esgotos da cidade que deságua no lago designa uma dinâmica
de troca ( de um termo a outro), enquanto os ratos, símbolos límpidos do contágio,
a precisam. A partir daí, cada evento que advenha em uma das metades do quadro
vai se atualizar, por contágio, em outra. Paralelamente à morte de Kazanian (
este cai no lago, é devorado pelos ratos, depois assassinado por um vendedor
ambulante apercebido no começo da seqüência), uma outra série de planos mostra
a progressão de um eclipse lunar, como se este signo de mau agouro se
atualizasse na parte inferior do quadro ( lembremos aqui que para Paracelso a
lua envenena a água na qual se reflete).
Assistimos então a uma montagem que estabelece
entre planos ou elementos do quadro correspondências inéditas ( o afogamento
dos gatos desencadeia a morte do astro, que se “realiza” através da morte do
personagem). O equilíbrio entre o mundo e sua dobra é rompido em proveito
de uma nova lógica, fundada sobre princípios alquímicos, próximos do pesadelo:
a indistinção do macrocosmo ( os ciclos lunares e a influência cósmica) e do
microcosmo, do corpo e do espírito, da causa e do efeito. O lago, enfim, cheio
das sevícias inflingidas por Kazanian aos gatos da cidade, condensa uma energia
negativa que se transforma em ação assassina. Este exemplo ilustra também o
status particular desta seqüência no cinema de Argento: única por possuir seu
próprio modo de funcionamento, a ponto de constituir às vezes um pequeno filme
autônomo dotado de uma estrutura a ser decifrada; e um esquema cuja lógica tem
de ser respeitada, na medida em que a seqüência também se integra a um
conjunto, o filme. A arte do desvio é o fruto deste paradoxo: um desejo
constante de escapar do continuum fílmico e o dever, apesar disso, de se
relacionar a este ( de s’y raccorder).
Em um artigo, Stéphane Bouquet opunha um cinema do
plano a um cinema do fluxo; no primeiro, “um cinema para o qual encenar é desenhar
(...), e portanto organizar o inorgânico, o informe, o não-estruturado, para
finalmente construir um sentido ou uma emoção”; já o cinema do fluxo é
“subordinado a um princípio de desfilamento permanente e contínuo” das imagens,
que visaria a “gerar ritmo onde outros geram sentido”. O cinema de Argento se
situa precisamente na encruzilhada destas duas concepções, como se portasse em
si os traços de um cinema que teria trocado a arte da mise en scène ( da
fixação) pela da movimentação ( mise en mouvement). Fixar um plano, ou dizendo
de outra maneira, desenhá-lo e regrá-lo, fixar um espectador como se fixa um
alvo. Para ele, o combate entre plano ( e tudo o que este supõe: vitória da
Razão, da ordem, do discurso) e fluxo ( poder absoluto da sensação e do
movimento) não é regrado. É mesmo o equilíbrio entre estas duas formas de
considerar a mise en scène que esclarece a natureza de suas imagens e do
movimento que as anima. Do plano, este conservou uma relação dialética com o
mundo: potências distintas existem e se opõem, por que negá-lo? Do fluxo, seus
filmes possuem a presciência: a poderosa vida orgânica das coisas, seus tônus,
seu fantasma, não seriam mais capitais que as próprias coisas?
Dario Argento seria então um cineasta da ligação,
que tentaria encontrar um ponto de equilíbrio entre a vontade de “por o mundo
em compartimentos” ( ou em planos, o que dá no mesmo) e o desejo de se
abandonar às potências invisíveis que presidem a seu destino. O “por em
relação” ( mise en rapport) nele é um procedimento central: nada se opõe, tudo
se comunica, como em um pesadelo- os níveis de realidade e de tempo, os
espíritos, as situações, os espaços; basta compreender a natureza da relação
que se opera entre eles. Daí a recorrência das passagens, corredores, halls,
e de tudo o que permite relacionar em seu cinema. Daí talvez esta sensação de
abalo sísmico ( tremblement): o plano vai resistir aos movimentos que o inflam?
Esta dualidade explica a importância dos cenários e
particularmente da arquitetura em seus filmes: estilo gótico em Inferno,
metafísico e hipperrealista em Profondo rosso, Art Déco e expressionista
em Suspiria. Em Suspiria, o assassinato de Daniel, o pianista cego, dá-se no
centro de uma grande praça, composta por imensos prédios e colunas maciças. Quando
o personagem penetra no lugar, o espaço subitamente se anima: gemidos e ruídos
estridentes surgem na trilha sonora, sombras e manchas luminosas desfilam nas
fachadas, até que um movimento de câmera- encarregado de reproduzir o ponto de
vista ( ou o espírito?) de uma gárgula- fende o ar até o centro da praça. Tudo
concorre aqui a movimentar o espaço, a transmitir a sensação de uma atividade
espiritual ou orgânica, como se no coração destas estruturas imóveis
palpitassem forças vias e desconhecidas, “ a sensação estranha de que neste
momento funestas constelações deveriam estar se movendo sob uma camada
desconhecida” 1. Se Argento concede tamanha importância à arquitetura, é
precisamente porque esta lhe permite jogar com a oposição entre fixidez e
movimento, entre o inanimado e o vivo, entre a profundeza e a superfície: o
exterior não revela o interior mas o dissimula, o mascara.
O universo parece com efeito submetido a forças
subterrâneas que abalam suas fundações, e conduzem às vezes à destruição:
Suspiria e Inferno acabam com o incêndio edesmoronamento de redutos maléficos,
como o colapso final que evoca a queda da Casa de Usher na novela homônima de
Edgar Poe. Para Argento, a verdade do mundo reside em sua dobra: “O mistério
dos seres se oculta em sua aparência, ou mais precisamente na tautologia
metafísica de sua forma física. Pensar a coisa, tentar captar-lhe o mistério é
passar de uma forma para outra, do corpo carnal ao corpo sutil (...): não
assumir a evanescência da aparência mas ao contrário levar a aparência à
incandescência para transformá-la em representação”. 2 Não há portanto
incompatibilidade de natureza entre a essência e a aparência, entre a cena e
suas coxias, mas um jogo permanente de troca, de ecos e de relances. O cinema
de Argento só visa o mundo sob o horizonte do Grande Segredo que este
dissimula: em superfície ( daí a recorrência do trompe l’oeil) como em
profundeza ( o uso da plongée), tudo nele parte e chega em uma imagem, em uma
forma. É por este motivo que o barroco de seus filmes é um barroco inquieto,
sombrio, que não se desdobra para cima mas para as profundezas, tanto espaciais
quanto temporais, instâncias pesadas pela presença dos mortos. Os mortos são os
cadáveres que ressurgem à superfície ( o corpo putrefato com o qual topa Rose
Elliot no começo de Inferno, ou aquele mumificado que Mark Daly descobre em
Profondo rosso); ou as camadas do tempo, que os assassinos pensavam enterradas
no fundo de sua memória, e que explodem na superfície do tempo presente. Nos
filmes de Argento, não cessamos de acertas as contas com os meios originários.
“Os mortos vão enfim reencontrar os vivos!”, grita Helena Markos no final de
Suspiria. Um ruído de relâmpago, um clamor surdo, gemidos insistentes, tudo
concorre para replicar o mundo com um rumor inquietante, ou mórbido. Daí esta
impressão permanente de um poder ascendente que se agita sob o plano e ameaça
absorvê-lo: uma chuva de vermes que se abate sobre bailarinas ( Suspiria), uma
nuvem de insetos que encobre uma casa ( Phenomena), ou camundongos que remontam
do subsolo ( Inferno) são signos de um processo de deliquescência e de
infiltração. Em Argento, todo plano é ameaçado de fuga pelo mais insignificante
de seus recessos, de suas fendas ou de seus interstícios. Todo plano é
entreaberto.
Jean-Baptiste Thoret, Dario Argento, mágico do medo, Cahiers du Cinéma
Auteurs.
Notas:
1. Giorgio de Chirico, citado por Paolo Baldacci em Chirico, o metafísico, 1888-1919
2. Mylene Buydens, A imagem no espelho.
Tradução: Luiz Soares Júnior.
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