sábado, 30 de setembro de 2017

Às coisas sérias




















Claude Chabrol critica Janela Indiscreta de Alfred Hitchcock em 1955

...1 Seja como for, penso que o lançamento de Rear Window é suscetível de unificar a frente da crítica cinematográfica. Os próprios críticos anglo-saxônicos, que desde há algum tempo atacavam os filmes de Hitchcock, consideram Rear Windowseriamente e com simpatia. Na verdade, Rear Window apresenta, desde a sua primeira visão, um centro de interesse imediato, digamos: mais elevado do que a maior parte das obras precedentes, o que em si mesmo é suficiente para o fazer entrar na categoria das obras sérias, para além do simples divertimento policial.

Deste modo, não desejaria sublinhar aqui o que se tornou já tão aparente: a má consciência do personagem principal, ‘voyeur' no sentido menos brilhante do termo; mas antes dedicar-me a esclarecer alguns elementos menos evidentes, mas ainda mais interessantes, que enriquecem a obra com ressonâncias muito especiais e permitem afastar as objeções e as críticas provocadas por uma visão superficial de Rear Window na última Bienal de Veneza.

Desde os seus primeiros minutos, Rear Window apresenta-nos um conjunto de tocas de coelhos perfeitamente isoladas, observadas a partir duma toca de coelho fechada e incomunicável. Daí a concluir que o comportamento dos coelhos é ou deveria ser o centro do interesse, vai apenas um passo rapidamente rompido, visto que igualmente nada se opõe a esta interpretação dos elementos presentes. Basta apenas admitir que o estudo deste comportamento é feito por um coelho essencialmente idêntico aos outros. O que conduz à idéia de um deslocamento perpétuo entre o comportamento real dos coelhos e a interpretação dada pelo coelho observador que, em definitivo, é a única que nos é comunicada, visto que na continuidade deste comportamento, continuidade multiplicada pelo número de tocas observadas, toda a ruptura e todo a escolha nos são impostas. Se o coelho observador é ele próprio observado com uma objetividade total, a de uma câmara que não se autoriza a saída da toca deste observador, somos forçados o admitir que todas as outras tocas e todos os coelhos que elas contêm se resumem a uma deformação múltipla da toca e do coelho objetivamente, isto é diretamente, apresentado. Deste modo, em Rear Window, o outro lado do pátio deve ser considerado coma uma múltipla projeção dos problemas amorosos de James Stewart.

Os elementos constitutivos desta múltipla projeção são, com efeito, outras tantas relações emotivas possíveis entre indivíduos de sexo oposto, incluindo mesmo a ausência de relações emotivas, traduzida pela solidão respectiva de dois seres vizinhos, incluindo mesmo o ódio finalmente assassino, passando pela fome sexual dos primeiros dias.

Posto isto, convém acrescentar a estes elementos um outro, capital, que é o que se poderia chamar a tomada de posição do autor, cuja tomada, combinando-se com os dados artísticos impostos pela idéia, se desenvolvem diretamente nos personagens apresentados, e manifesta-se abertamente cristão, pela fé da evidência e o testemunho de três citações evangélicas.

Devidamente estabelecidas estas premissas, deixo ao leitor a conclusão deste silogismo que duma vez por todas situa o clima moral da obra, para passar ao seu significado propriamente dito.

A janela que dá para o pátio compõe-se, como sublinha o genérico, de três partes. Observemos esta trindade. A obra compõe-se, com efeito, de três elementos, três temas, se se quiser, concomitantes e finalmente unificados.

O primeiro é uma intriga sentimental opondo e reunindo sucessivamente James Stewart e Grace Kelly. Ambos procuram um terreno de entendimento, porque, se estão apaixonados um pelo outro, os respectivos 'eu', um tudo-nada divergentes, são um obstáculo.

O segundo tema é de ordem policial, situado, por sua vez no outro lado do pátio, e por conseguinte com um caráter semi-obsessivo bastante complexo. Combina-se, de resto, com grande habilidade com um tema da indiscrição, que percorre toda a obra e lhe confere uma parte da sua unidade. Este elemento policial apresenta além disso todos os caracteres habituais das obras anteriores de Hitchcock, levados aos extremos limites, visto que jamais se chega a saber se o crime não terá sido concretizado pela única vontade de Stewart.

Finalmente o último tema é mais complexo para ser definido numa palavra: apresenta-se como uma espécie de pintura realista do pátio, embora realista seja um termo particularmente mal escolhido para o caso, visto que esta pintura refere-se a seres que são a priori entidades, projeções mentais. O fim, aqui, é esclarecer, justificar e afirmar a concepção fundamental da obra, o seu postulado: a existência da estrutura egocentrista do mundo, estrutura de que a relação dos temas entre si procura dar uma imagem fiel. Assim, o indivíduo é o átomo altamente diferenciado, o par a molécula, o edifício o corpo composto de um número X de moléculas, e ele mesmo altamente diferenciado do resto do mundo. Os dois personagens exteriores têm o duplo papel de confidentes inteligentes, um inteiramente lúcido, outro inteiramente mecanizado, e testemunhas também comprometidas, generalizando o exposto.

Se quisermos arriscar uma comparação musical para esclarecer a relação dos temas, pode dizer-se que os três se compõem das mesmas notas, mas expostas numa ordem diferente, e em tonalidades diferentes, servindo cada um de contraponto aos outros. Uma tal comparação não é excessiva, visto que seria fácil determinar, no ritmo da obra, quatro 'tempi' diferentes, ou quatro formas constituintes, definíveis em termos musicais. Como convém a uma obra tão elaborada como esta, encontra-se em Rear Window um momento de cristalização dos temas numa única lição, um gigantesco acordo perfeito: a morte do cãozinho. Esta seqüência, a única que é tratada à margem do ponto de vista narrativo enunciado mais acima (a única em que a câmara desce ao pátio, quando 0 herói não se encontra lá) é, a partir de um elemento em si mesmo pouco dramático, duma intensidade trágica, comovente. Creio que uma tal veemência, uma tal seriedade possam parecer um pouco deslocadas na circunstância: um cão é apenas um cão e a morte de um cão pode parecer um acontecimento cujo lado trágico não tem relação com as palavras pronunciadas pela dona do animal, e as próprias palavras: 'Não podemos estar mais perto uns dos outros, entre vizinhos?', que resumem o sentido moral do filme, parecem algo desajeitadas e sobretudo ingênuas para justificar um estilo tão solene. Mas essa deslocação anula-se a si própria, porque o tom não deixa subsistir qualquer dúvida, e dá às coisas e sentimentos a sua intensidade real: trata-se do massacre de um inocente e de uma mãe que chora o seu filho2, e invectiva.

Desde logo, as implicações desta cena são vertiginosas, onde as responsabilidades se perseguem umas às outras em todos os planos imagináveis e condenam um mundo monstruosamente egocêntrico, onde todos os elementos, em todos os escalões, se enclausuram numa ímpia solidão.

Enquanto que no plano dramático ela apresenta o duplo interesse de um salto policial, exasperando a suspeita, e a ilustração de um tema caro ao seu autor: a materialização de um ato criminoso indiretamente desejado (no caso preciso: esta morte confirma as esperanças de Stewart.

Deste ponto de vista, a cena do confronto entre o assassino e o 'voyeur’ apresenta um grande interesse: a comunicação procurada pelo primeiro, 'Que quer de mim2' seja chantagem ou confissão, compromete o segundo que a recusa no reconhecimento da sua abjeção e autentifica, em certa medida, a sua responsabilidade. A recusa de Stewart ilumina assim a razão profunda da solidão do mundo, que se verifica ser acima de tudo a ausência de comunhão entre os seres, numa palavra, a ausência de amor.

Outras obras de Hitchcock, tais como Rebecca, Under Capricorn ou Notorious mostraram o aspecto inverso do problema, a saber, o que pode ser a força do amor; e este aspecto não está apesar de tudo ausente de Rear Window em que a personagem encarnada por Grace Kelly apoia a sua preciosa ambigüidade numa oposição entre o seu 'possível' e o seu 'ser'. Sendo o 'possível' justamente a irradiação tangível da sua beleza e do seu encanto, suficientemente poderosa para transformar a atmosfera triste e solitária do quarto do doente num jardim de flores onde a cabeça de James Stewart repousa num plano inesquecível: a introdução em simultâneo com a donzela dessa poesia inefável que é o amor entre dois seres, justificada além disso, essa poesia, por uma brincadeira de autor inteligente, no conjunto da obra que dá, na atmosfera sufocante de Rear Window, que é a própria atmosfera da nossa cloaca, uma visão fugitiva do nosso paraíso terrestre e perdido3.

Não querendo repetir o que é evidente, deixo ao espectador o cuidado de apreciar, neste filme, a perfeição técnica e a extraordinária qualidade da cor.

Rear Window dá-me a satisfação de acolher a lamentável cegueira dos céticos com uma doce e misericordiosa hilaridade.

1 Ninguém ignora que os Cahiers du Cinéma se debruçam com regularidade sobre o ‘caso’ Hitchcock e os sarcasmos dos nossos colegas acerca disso. De Georges Sadoul a Denis Marion, de Jean Quéval a George Charensol, nenhuma ironia nos foi poupada. Procurou-se mesmo fazer chicana pelos terrenos mais movediços: até quererem fazer crer que um dia traduzi ‘larger than life’ por metafísico, do que todos os que me conhecem sabem que sou incapaz.

2 O casal do cão representa além disso o casamento estéril, no espírito de Stewart; o que explica que o cão não seja de fato uma criança. Desde Sabotage que Hitchcock desconfia terrivelmente das mortes de crianças, que uma sensibilidade normal tem dificuldade de suportar.

3. A última seqüência de Rear Window é característica da maquiagem de uma cena no seu contrário, em que Hitchcock passa por mestre. As coisas voltam à ordem, e duas notações divertidas fazem um ‘happy end’; de fato, trata-se pura e simplesmente de uma constatação terrível: as coisas e as pessoas ficaram as mesmas, cegamente.

Claude Chabrol
in Cahiers du Cinéma, n.° 46, abril de 1955. Tradução de Manuel Cintra Ferreira, com modificações de Ruy Gardnier.

Texto retirado de http://www.contracampo.com.br

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