quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

Clube do Filme: O Raio Verde

O Clube do Filme continua em atividade, mesmo durante a epidemia, em formato virtual. Toda quarta  quarta-feira de cada mês nos reunimos para a discussão de um filme e textos relacionados, sempre gratuitamente.

Em 2022 iremos explorar a filmografia do cineasta francês Éric Rohmer (1920-2010)!

E já começamos em janeiro com "O Raio Verde" (Le Rayon Vert, 1986).

"O Raio verde é talvez menos a realização de sucesso de um projeto inicial de nos dar um retrato de Delphine que a busca modesta da confrontação de uma idéia do mundo com a matéria luminosa, sonora e carnal do mundo. A seqüência das groselhas, o passeio de Delphine entre os arbustos agitados pelo vento, a escada de pedra sob a qual o mar vem se engolfar, a discussão sobre o pequeno muro em torno do raio verde e do romance homônimo de Jules Verne, são momentos onde se exprimem a poesia do mundo e a liberdade do cinema."
- Jean-Claude Biette (texto disponível abaixo)


O filme está disponível aqui. Qualquer problema, fale conosco.

Dois textos para leitura:
A) Crítica do filme por Jean-Claude Biette, disponível aqui.
B) Folha da sessão por João Bénard da Costa, disponível aqui.

Como de costume, nosso propósito no Clube do Filme é discutir obras e textos com um pouco mais de tempo que nos debates após as sessões do cineclube, logo, o filme não será exibido na data. Recomendamos que o filme já tenha sido visto e também a leitura dos textos, porém isso não é exigido para participação. Devido ao formato virtual, não poderemos exibir com qualidade trechos do filme e de outros trabalhos, mas acreditamos ser importante retomarmos as atividades possíveis durante a pandemia. O ingresso, como sempre, é gratuito.

Devido a limitações de tempo do Meet, voltamos com nossa sala do Jitsi.

Serviço:

Clube do Filme: "O Raio Verde" (1986), de Éric Rohmer.
Dia 26/01 (quarta-feira)
Das 19h15 às 21h30
ENTRADA FRANCA

Coordenação e mediação: Giovanni Comodo
Realização: Coletivo Atalante

segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

O Feminino em “Um dia quente de verão” (A Brighter Summer Day)


por Vera Lúcia de Oliveira e Silva

[contém spoilers]

Um filme monumental de Edward Yang[1] que, embora realizando apenas oito filmes[2], fez uma verdadeira injeção de talento e esplendor no cinema mundial, tornando-se um dos maiores autores do cinema contemporâneo. Seus filmes, embora registrem aspectos da vida urbana na sociedade classe média de Taiwan – especialmente os conflitos geracionais e a luta entre o tradicional e o moderno, o autêntico e o estrangeiro, os negócios e a arte – nem por isso ganham contornos paroquiais. Yang lhes imprime uma pegada universal que permite a cada um ali se reconhecer, se quiser, apresentando o Outro como ponto de contorno de onde nossa própria pergunta nos retorna: Quem sou eu[3]?

Começo a falar de A Brighter Summer Day citando o comentário de Fernando Oriente[4]:

‘Um Dia Quente de Verão’ é um filme em que tudo funciona com perfeição. Uma mise-en-scéne arrebatadora no apuro com que cada um de seus detalhes é confeccionado, desde a composição dos quadros, a construção dos planos, a decupagem, o posicionamento e a movimentação de câmera, os cortes, tudo funciona no ritmo certo, sempre em função das modulações dramáticas, da evolução narrativa e na alta carga de sensorialidade no tratamento das texturas dos personagens sempre organicamente entrosados com as construções do tempo e do espaço e suas relações internas. Um filme que trabalha com naturalismo as cenas, os espaços, as emoções dos personagens e insere tudo isso dentro de um tempo preciso, o tempo da memória de Edward Yang e sua adolescência nos anos 60 em Taipei.

 

‘A Brighter Summer Day’ é um filme que faz do tempo passado não só uma reconstrução simbólica de um processo de formação de personagens e de uma nação em turbulência, mas que faz essa experiência do tempo vivido servir como comentários precisos sobre a condição humana, a melancolia, o amadurecimento, as frustrações e as impossibilidades que levam o ser humano a atos extremos ou a resignação angustiada sentida sob o peso do passar de um tempo implacável. Uma obra-prima monumental.

Comentário rigoroso, que não admite nem uma palavra a menos, nem palavra alguma a mais, mesmo assim permaneço coagida a dizer algo ainda, explorando os diálogos, de onde somos desviados pelas imagens – composições plásticas que capturam o espectador a ponto de fazerem passar as legendas por baixo do pano. Aqui como alhures, a palavra também diz muito.

Se as imagens são eloquentes que baste para se falar do mundo masculino adolescente, com o seu recurso extremo à barbárie, na luta entre gangues, parece-me necessário recorrer às palavras proferidas pelas e sobre as mulheres, para notar que o feminino, naquele universo, é alvo de desconsideração, complacência e violência. O que é mais a regra que a exceção, pois a mulher, essa esfinge que não se permite decifrar, sempre despertou e desperta uma resposta que toca, e às vezes ultrapassa, os limites.

Lacan vai, diante desse desconcerto que a mulher representa para todos, em todo tempo e lugar, declarar A mulher não existe, para reafirmar que no inconsciente não há registro da diferença sexual e que a mulher representa a alteridade absoluta para os sujeitos de ambos os sexos. Yang sabe algo desse desconcerto.

Seja sobre o masculino, seja sobre o feminino, Yang falará com o mais profundo respeito, sem reverência e sem qualquer reducionismo. Limita-se a mostrar que as coisas são o que são: o Real em estado bruto. Sem negar que, em meio ao caos, há pelo menos um, a irmã mais velha de Si’r, que encontra seu caminho para o amor e o trabalho, os fundamentos para a autonomia.

Voltemos ao filme, explorando alguns de seus diálogos

-  Ming diz a Si’r Você é honrado demais: não vai dar certo na vida.

- Vaticínio que ouviremos ecoar na voz da mãe de Si’r dirigindo-se ao seu pai Você é honesto demais: não tem utilidade para a corrupção. Ela, que se ressente da estagnação do marido em sua carreira no serviço público, aponta-lhe a causa de sua vida emperrada.

- E deste homem, “inutilizado pela sua honestidade”, e que ensina a Si’r o princípio de que Há que se encontrar a verdade da vida e acreditar nela, ouviremos, sobre as mulheres: Coisas com um buraco no meio são sempre problema; e dirá à sua mulher, com quem partilhou e partilha a vida e com quem teve cinco filhos: Vocês mulheres só sabem trazer a desconfiança. Não servem para nada. Nada sabem da amizade entre homens.

E é em relação a mulheres jovens que o jovem herói, Si’r, cuidadosamente construído no campo da nossa simpatia incondicional, vai revelar o fundo lodoso – seu húmus – de sua humanidade.

Ele, que amava Ming e já lhe havia prometido presença, amizade e proteção até o fim dos tempos, toma distância quando percebe que ela não lhe dedica exclusividade. Personagem complexa, a menina, sob distintas circunstâncias adversas, tem a coragem e a habilidade de procurar e garantir segurança para si e sua mãe, mesmo que isso passe por ligações a diferentes rapazes.

Desapontado com Ming, Si’r vai em busca de outra menina, famosa pelos seus múltiplos relacionamentos com os meninos, na esperança de que ela aceite a sua intervenção salvadora:

Jade, posso ser mais próximo de você? Talvez possa ajudá-la com seus problemas.

A garota lhe dá o tratamento que lhe convém:

Você parece ansioso para me mudar. Trata-me como se eu fosse um experimento seu, de Biologia. Você tem muitas filosofias. Sou feliz do jeito que sou. E você? Você é feliz? E se eu não mudar? E se eu não mudar para me encaixar nas suas ideias? Você simplesmente vai embora? Você é um egoísta! Quem você pensa que é?

De quebra, Jade sublinha que Ming também transita entre os homens, extraindo vantagens desse trânsito, e propõe a Si’r que ofereça a ela os seus favores.

Impedido de exercer sua ambição salvadora com Jade, Si’r retoma Ming como objeto a ser resgatado para o lado luminoso da força. Ele a aborda com o mesmo discurso:

Ming, eu sei tudo sobre você, mas não me importo. Porque apenas eu posso ajudá-la. Sou a única esperança que lhe resta.

A resposta de Ming vem no mesmo registro da de Jade:

Quer dizer que você é o único que pode me ajudar a mudar, certo? Porque você é como todo o resto? Você é amável comigo apenas para que eu também seja amável com você. Assim você se sentirá seguro, certo? Você é tão egoísta! Você quer me mudar? Pois eu sou como este mundo – e você não pode mudar o mundo. Quem você pensa que é?

Ele responde com a tragédia:

Você não tem esperança! Nem vergonha, nem esperança!

E a violência, inicialmente restrita às palavras, sob a aparência de um Eros purificado, ergue-se em Tânatos, numa passagem ao ato, num “final cut”, bem no meio da rua, em plena cena cotidiana, banal e indiferente.

Si’r simplesmente não suporta ser descoberto na plena vigência da mentira que tomou por verdade, cego na paixão pela própria virtude.

O bom moço que Yang nos fez amar, ele o aniquila, debaixo dos nossos olhos, sem dó nem piedade, levando-nos a esse ponto de viragem onde desconfiamos, nós mesmos, de nossos bons propósitos e melhores intenções. Golpe de mestre do autor que sabe aonde quer nos conduzir!

Se você não tiver pressa e acompanhar o filme até os créditos finais, poderá, ainda, emprestar seus olhos à mãe que examina longamente a farda escolar de seu filho; e seus ouvidos, para escutar a lista de nomes dos jovens aprovados para a universidade naquela época; e o seu coração, para acolher a tristeza pungente do fracasso do Ideal.

Resta no ar a pergunta que não quer calar Por quê?

Yang coloca o problema sem apontar qualquer saída. Recusando-nos qualquer indicativo ou pista, deixa-nos sozinhos com a questão.

Ao espectador cabe decidir o que fazer com ela. Ignorá-la; vitimizar-se e embarcar na estratégia neurótica da denúncia e da reivindicação, que só perpetua o nada saber disso; ou tomar para si a aposta e a pergunta: Você pode saber! Você quer saber?


Agradeço aos companheiros do Clube do Filme, Giovanni Comodo, Isadora Mattiolli e Márcia Drehmer de Mello e Silva, pelo estímulo à escrita.

Curitiba, 09 de Janeiro de 2022


[2] Títulos

1983 – That Day, on the Beach

1985 – Taipei Story

1986 – Terrorizers

1991 – A Brighter Summer Day

1994 – A Confucian Confusion

1996 – Mahjong

2000 – Yi Yi

[3] Ou, de forma lacaniana: “O quê sou eu?”

[4] https://tudovaibem.com/tag/a-brighter-summer-day/

quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Rivette e Daney avant la lettre: a política do cancelamento

- Da abjeção (1961), de Rivette, passados 60 anos 

- O travelling de Kapò (1992), de Daney, quase 30 anos depois

por Vera Lúcia de Oliveira e Silva

“Tudo que seu mestre mandar...nós o faremos todo!

- E quem não fizer... ganhará um bolo!”
Cancioneiro infantil

Sem nenhuma dúvida Pontecorvo fez péssimas escolhas em Kapò (1960), todas tributárias de um pecado original: adotar o horror indizível – o Holocausto – como pano de fundo para um romance melodramático. O resto é pura consequência. O filme, entregue a si mesmo, teria sido arquivado sem ódio. Arrisco dizer que desapareceria da história, como tanta coisa ruim que se fez, se faz e se fará, porque, afinal, perfeitos só nós mesmos.

Entretanto, graças a Jacques Rivette, secundado por Serge Daney, Pontecorvo contribuiu para um importante debate na Cultura, porque o erro também ensina, tanto quanto, às vezes mais, que o acerto. Passado mais de meio século, ele ainda é lembrado, porque Rivette o condenou em um parágrafo extorsivo, no sentido de que não deixa espaço para o livre julgamento – e eventual discordância - de quem o lê: não sem pagar o preço de se expor  a ser declarado igualmente abjeto. Ao mesmo tempo, Rivette condecorou o próprio peito com a comenda da boa consciência (Eu sei: não foi só isso que ele fez em seu admirável artigo – mas para mim é inegável que também fez isso).

Daney, 30 anos mais tarde, não só subscreveu Rivette como deu testemunho, até com certo orgulho, do efeito extorsivo que Da Abjeção exerceu sobre ele. Transcrevo de O travelling de Kapò, de sua autoria:

Entre os filmes que eu nunca vi... o obscuro Kapò. Filme sobre os campos de concentração, rodado em 1960 pelo cineasta italiano de esquerda Gillo Pontecorvo, Kapò não firmou seu nome na história do cinema. Serei eu o único, nunca o tendo visto, a jamais tê-lo esquecido? Porque eu não vi Kapò mas, ao mesmo tempo, vi. Eu vi porque alguém, com palavras, me mostrou.

Ou seja, depositando uma importante contribuição à arte de se estudar Cinema sem ver os filmes (eu sei: não foi só isso que ele fez em seu admirável artigo – mas para mim é inegável que também fez isso), baseado tão somente no que leu, Daney considera-se apto a criticar o trabelling de Kapò, a partir do texto de Rivette, que ele, Daney, transcreve como se segue:

Rivette tinha trinta e três anos e eu tinha dezessete. Acho que nem tinha ainda pronunciado a palavra abjeção em minha vida. Em seu artigo, Rivette não contava o filme. Ele se contentava, em uma frase, em descrever um plano. A frase que ficou na minha memória dizia assim “Vejamos agora, em Kapò, o plano em que Riva se suicida jogando-se sobre o arame farpado eletrificado: o homem que decide, nesse momento, fazer um travelling para a frente e reenquadrar o cadáver em contra-plongée, tomando cuidado para inscrever exatamente a mão levantada num ângulo do enquadramento final, esse homem só tem direito ao mais profundo desprezo”.

A partir do texto de Rivette, que Daney qualifica como abrupto e luminoso, este segue dizendo:

Ao passar dos anos, com efeito, o travelling de Kapò foi o meu dogma de carteirinha, o axioma que não se discutia, o ponto limite de todo debate. Com qualquer um que não sentisse imediatamente a abjeção do travelling de Kapò eu não teria, definitivamente, nada a ver, nada a partilhar. Esse tipo de recusa estava, aliás, no ar da época.

Destaco o arremate - Esse tipo de recusa estava, aliás, no ar da época - e sigo para as reflexões que realmente quero partilhar.

A primeira reflexão é uma espécie de assombro assustado: quer dizer, então, que esse “tipo de recusa” já estava “no ar da época”. Ou seja, o que hoje testemunhamos entra como um nada de novo debaixo do sol (Eclesiastes 1:9). Ou uma evidência de que nossos ídolos ainda são os mesmos e as aparências não enganam, não – nós, assim Como os nossos pais (Belchior, 1976)? Quando consideramos que a diversidade de opiniões e a liberdade para expressar tal diversidade é o que promove a civilização, tal recusa sinaliza o caminho para a barbárie? Em caso afirmativo, estará ainda em tempo para se deter essa marcha?

Pois bem, passemos à segunda reflexão.

Não quer calar na minha cabeça a pergunta sobre a eleição do travelling de Kapò como a ovelha negra a ser escorraçada para o deserto (logo veremos que essa analogia não é sem consequências), uma vez que o dito travelling é perfeitamente coerente com o conjunto do filme, uma espécie de coroamento de uma obra cujo autor meteu os pés pelas mãos do começo ao fim. Por que a abjeção foi colada exatamente ali? Não pode ser mero acaso.

Terá sido por sinédoque – a parte tomada pelo todo? – puro uso abusivo de uma figura de linguagem?  Ou haverá algo mais a ser considerado? Penso que sim. Penso que o travelling de Kapò incomoda porque é sinistro – quer dizer, porque ele convoca algo do mais íntimo de cada um de nós. E Rivette e Daney, penso eu, parece-me que acusaram o golpe.

Tento me explicar. Em primeiro lugar, fazer um travelling para frente diante do horror é uma experiência factual na vida humana. Convido a pensar num médico dando atendimento a uma vítima de um acidente catastrófico: ele vai, por dever de ofício, ser capturado numa espiral de tempo dilatado. Com a percepção em câmera lenta, seus olhos farão travellings sucessivos, examinando as funções vitais e o corpo dilacerado, dando zoons para enquadrar cada um dos ferimentos, fraturas e sangramentos, um após o outro, calculando por onde começar a recompor aquele corpo de modo a deter hemorragias e estabilizar fraturas para salvar aquela vida. Encontro com o Real em toda a sua crueza, encontro para o qual espera-se que o médico esteja preparado. Mas o que dizer dos curiosos que se aglomeram no entorno? Nada têm a contribuir, mas não despregam os olhos do horror, até que, cansados ou satisfeitos, dão a vez para a leva seguinte, sedenta.

Esse pequeno resumo da ópera eu o faço para que a gente se lembre de que padecemos, em diferentes medidas, de atração mórbida e fascinação pelo horror. Com o que construo, então, uma hipótese: a eleição do travelling de Kapò, como a escolha mais desprezível que Pontecorvo teria realizado nesse filme, deve-se ao fato de se ter desvelado ali algo que nós escondemos de nós mesmos no mais profundo de nosso ser? Como “esconder de nós mesmos” é o melhor caminho para proteger qualquer gozo sinistro, garantindo sua sobrevivência inconsciente, o convite é para que se faça luz: às claras, podemos lhe dar um destino mais digno.

Há um imperativo categórico (e sobre ele um princípio de Liberdade que dá ao sujeito o direito de dizer não) que estou pronta a subscrever: a única obrigação que recai sobre todo ser humano é a de pensar até o limite sensível de sua capacidade racional e de sua sensibilidade ética. Pensar visando o Real, à revelia de seus ideais e preferências. Respondendo a esse dever, é impossível não perceber que, diante do insuportável, fica muito barato comprar a boa consciência pela saída mais fácil: abjeto é o outro!

Enquanto não pudermos reconhecer o Real em nós mesmos – e lhe dar o destino que convém, desde o mal estar até a sua inscrição na Cultura, pela sublimação – ninguém pode se sentir seguro.

Curitiba, 12 de Novembro de 2021

As imagens deste texto mostram Serge Daney e Jacques Rivette no filme "Jacques Rivette - O Vigilante" (1990), de Claire Denis e Serge Daney.