quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Meu Ódio Será Sua Herança, de Sam Peckimpah


(The Wild Bunch, EUA, 1969, 145', cor)

Com Meu Ódio Será Sua Herança Sam Peckinpah não só expande seu vocabulário cinematográfico, através de uma série de procedimentos que resultam numa violência gráfica em forma bastante vigorosa e depurada, como também redimensiona o universo do faroeste flagrando-o numa fase tardia. "O tempo das armas está acabando", diz Pike (William Holden), líder do bando que pretende fazer o último serviço antes de cada um seguir seu rumo. O fim do Velho Oeste, contudo, revela-se um momento cruento e caótico como nunca: armamentos pesados foram introduzidos; ganham corpo conflitos políticos da magnitude da revolução social mexicana liderada por figuras populares como Pancho Villa e Emiliano Zapata; os foras da lei recebem menos para cumprir missões cada vez mais arriscadas. Tudo indica que é hora de parar, mas o destino impõe uma última e aparentemente trivial missão para o bando que, como na cena do assalto ao trem, uma das melhores que o cinema de faroeste já fez, mostra perfeito entrosamento (o filme em nenhum momento apresenta os membros do grupo arquitetando ou debatendo uma estratégia de ação, tudo parece se construir no momento da ação se pôr em cena – a vontade dos personagens se confunde à própria mise-en-scène). Peckinpah busca sempre uma animalidade e um sadismo que parecem compor a estrutura íntima do homem. E no western, gênero cuja tipologia já é marcada por uma espécie de barbarismo pré-civilização, ele encontrou um terreno fecundo (Pistoleiros do Entardecer e Pat Garrett & Billy the Kid são outros dois grandes filmes seus).
A missão derradeira em Meu Ódio Será Sua Herança consiste em roubar um carregamento de armas e entregá-lo ao General Mapache, que combate os villinistas e recebe ajuda das nações imperialistas interessadas em devolver o México ao Porfirismo. O fator complicador é o fator humano (Preminger só faria sua obra-prima sobre o tema dez anos depois, em 1979): Sanchez, membro mais jovem do grupo, de origem mexicana, descobre que a mulher que havia deixado em sua aldeia debandou-se para o lado de Mapache. Ali, mais até do que na tomada de consciência política (sua aldeia luta a favor da redistribuição de terras e contra a ordem conservadora personificada no general), está a origem do ódio que selará não só seu destino como o de todos. O cinema de Peckinpah é basicamente construído através do ponto de vista de personagens com uma moral própria clara e inabalável (bem à moda dos mocinhos do western), como a do personagem de William Holden em Meu Ódio Será Sua Herança. Não à toa, lealdade e companheirismo são temas centrais - é ao decidir resgatar Sanchez, tornado prisioneiro do sádico General Mapache após desviar algumas armas para a aldeia, que Pike e seus companheiros assumem uma questão de vida ou morte.
O repertório de estilo de Sam Peckinpah inclui o uso constante do zoom e da câmera-lenta, além da variação máxima do ponto de vista dentro de uma mesma cena (o que às vezes alcança um inesperado grau de contundência). Um repertório que ele retomará em momentos posteriores de sua carreira, mesmo que em contextos diferentes (as cenas de rodeio e a cena dos tratores derrubando um velho rancho em Junior Bonner; as cenas de guerra em Cruz de Ferro). A composição mais marcante do filme permite que a metralhadora giratória com que o General Mapache é presenteado metonimize o trabalho iniciado pela câmera e complementado na moviola, composição que atinge seu ápice na seqüência da matança final, quando uma explosão é picotada em quatro partes intercaladas por ações que ocorrem simultaneamente, como que correspondendo à demanda de um olhar ubíquo. Por frenética que seja essa seqüência bastante sanguinolenta, o principal elemento de sutura entre os planos continua sendo o olhar.
Se Eisenstein fala nos anos 20 das “explosões” que movem um filme, gerando um cinema fundado no “desarranjo psicotrópico e na perturbação cronológica”, em Peckinpah a montagem surge como etapa menos geradora de sentido que instigadora dos sentidos. Tanto a montagem quanto a movimentação de câmera nas cenas de ação em Meu Ódio Será Sua Herança respondem a um princípio de provocação e inserção do espectador, o que o torna muito próximo da violência que se espalha pelo filme: sua montagem não se concentra só na construção narrativa, mas antes no efeito psicológico. "Ninguém coloca você dentro de um filme tão efetivamente quanto Peckinpah", afirma Paul Seydor (autor do livroPeckinpah: The Western Films, originalmente publicado em 1980, e do documentário The Wild Bunch: An Album in Montage, indicado ao Oscar de sua categoria em 1997). Ser transportado para dentro deMeu Ódio Será Sua Herança, quase 25 anos depois de Peckinpah o ter realizado, é realmente um privilégio enorme.

Luiz Carlos Oliveira Jr.
(Originalmente publicado em WWW.contracampo.com.br)

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