Lançado quase clandestinamente no Rio de Janeiro, embora tenha obtido
grande receptividade da crítica paulista, um filme surpreendeu e espantou pela
originalidade e poder de criação: A Margem, de Ozualdo R. Candeias.
Revelando um admirável estilista, num país onde a preocupação maior não é o
estilo, mas o enquadramento aos modismos mais em voga, A Margem
reintegra nos quadros do cinema brasileiro algo que se supunha extinto: o
lúcido e rigoroso desenvolvimento do tema, ao lado de uma superior visão da
problemática individual diante dos impasses surgidos da problemática social.
Participante e ao mesmo
tempo espectador da realidade sobre a qual se debruça, Candeias construiu um
filme de rara exatidão, seguindo uma linha de observação que permanece exterior
ao drama, não se vinculando ao destino das personagens, mas, através delas,
traduzindo uma generosa visão-de-mundo, quase naif, mas sempre
lucidamente colocada, onde a marginalidade dos habitantes deste mundo é o jogo
perigoso e, quase sempre, acarretando o fracasso do mais fraco, o marginal - o
homem e a mulher de A Margem.
Segundo o próprio
Candeias, “A Margem é uma estória mais ou menos estranha de duas
estranhas estórias de amor; a película pretende contar o que aconteceu a quatro
pessoas sem importância, que tanta importância deram ao amor (quando lhes deram
uma oportunidade para amar) que acabaram morrendo por ele”. Essa “estória mais
ou menos estranha” é localizada no universo marginal de uma favela à beira do
Rio Tietê, onde dois casais, quatro pessoas anônimas (Mário Benvenuti &
Valéria Vidal, um branco e uma negra; José Bento Rodrigues & Lucy Rangel,
um negro e uma branca), sobrevivendo sob mínimas condições humanas,
marginalizados do contexto social, tentam reintegrar-se na existência através
do amor. Não falham, mas morrem, porém nem sempre a morte é o fim.
Candeias baseou-se em
personagens reais, a fim de desenvolver a premissa básica que orientou seu
filme, que é a de expor a igualdade dos homens, embora as transitórias
desigualdades provocadas pelo poder econômico, nível social ou apenas melhores
oportunidades: “Por princípio sou anti-racista, e creio que todos os seres
humanos são iguais, todos têm capacidade de amar, não importa sob quais condições
e foi isso que quis dizer no meu filme.”
O clima de realismo,
que mescla com o supra-realismo, longe de resultar numa incômoda ou
incongruente mistura de formas de abordagem, é resolvido exemplarmente, pelo
sólido flúxo narrativo, que se alterna, no crescendo da trama, num ou noutro
estilo, através de sutil mas poderosa enunciação do choque entre a
sensibilidade do indivíduo diante da dureza do quadro social e as suas
tentativas de superação de tal contexto problemático.
Seguindo sua concepção de cinema,
que para Candeias “é muito importante, não devendo ser apenas um espetáculo,
mas sendo veículo de apresentação de problemas, com ou sem solução, ou expor
novas alternativas a problemas com soluções já estabelecidas, pois ao cinema
cabe o decisivo papel de fornecer ao homem meios de superar-se a si mesmo”. A
Margem foi planejado no sentido de atender às precariedades da produção e
às intenções de Candeias: um filme sobre o amor num meio ambiente tragicamente
hostil a qualquer manifestação de individualidade.
Jaime Rodrigues
(02/03/1968)
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