quinta-feira, 25 de julho de 2013

“A Margem, um filme admirável” (fragmentos)


Lançado quase clandestinamente no Rio de Janeiro, embora tenha obtido grande receptividade da crítica paulista, um filme surpreendeu e espantou pela originalidade e poder de criação: A Margem, de Ozualdo R. Candeias. Revelando um admirável estilista, num país onde a preocupação maior não é o estilo, mas o enquadramento aos modismos mais em voga, A Margem reintegra nos quadros do cinema brasileiro algo que se supunha extinto: o lúcido e rigoroso desenvolvimento do tema, ao lado de uma superior visão da problemática individual diante dos impasses surgidos da problemática social.
            Participante e ao mesmo tempo espectador da realidade sobre a qual se debruça, Candeias construiu um filme de rara exatidão, seguindo uma linha de observação que permanece exterior ao drama, não se vinculando ao destino das personagens, mas, através delas, traduzindo uma generosa visão-de-mundo, quase naif, mas sempre lucidamente colocada, onde a marginalidade dos habitantes deste mundo é o jogo perigoso e, quase sempre, acarretando o fracasso do mais fraco, o marginal - o homem e a mulher de A Margem.
            Segundo o próprio Candeias, “A Margem é uma estória mais ou menos estranha de duas estranhas estórias de amor; a película pretende contar o que aconteceu a quatro pessoas sem importância, que tanta importância deram ao amor (quando lhes deram uma oportunidade para amar) que acabaram morrendo por ele”. Essa “estória mais ou menos estranha” é localizada no universo marginal de uma favela à beira do Rio Tietê, onde dois casais, quatro pessoas anônimas (Mário Benvenuti & Valéria Vidal, um branco e uma negra; José Bento Rodrigues & Lucy Rangel, um negro e uma branca), sobrevivendo sob mínimas condições humanas, marginalizados do contexto social, tentam reintegrar-se na existência através do amor. Não falham, mas morrem, porém nem sempre a morte é o fim.
            Candeias baseou-se em personagens reais, a fim de desenvolver a premissa básica que orientou seu filme, que é a de expor a igualdade dos homens, embora as transitórias desigualdades provocadas pelo poder econômico, nível social ou apenas melhores oportunidades: “Por princípio sou anti-racista, e creio que todos os seres humanos são iguais, todos têm capacidade de amar, não importa sob quais condições e foi isso que quis dizer no meu filme.”
            O clima de realismo, que mescla com o supra-realismo, longe de resultar numa incômoda ou incongruente mistura de formas de abordagem, é resolvido exemplarmente, pelo sólido flúxo narrativo, que se alterna, no crescendo da trama, num ou noutro estilo, através de sutil mas poderosa enunciação do choque entre a sensibilidade do indivíduo diante da dureza do quadro social e as suas tentativas de superação de tal contexto problemático.
            Seguindo sua concepção de cinema, que para Candeias “é muito importante, não devendo ser apenas um espetáculo, mas sendo veículo de apresentação de problemas, com ou sem solução, ou expor novas alternativas a problemas com soluções já estabelecidas, pois ao cinema cabe o decisivo papel de fornecer ao homem meios de superar-se a si mesmo”. A Margem foi planejado no sentido de atender às precariedades da produção e às intenções de Candeias: um filme sobre o amor num meio ambiente tragicamente hostil a qualquer manifestação de individualidade.


Jaime Rodrigues (02/03/1968)

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