Após a Nouvelle Vague
Maurice Pialat já
tinha 43 anos quando realizou seu primeiro longa-metragem, Infância
Nua (1968). Antes
disso, dirigira alguns curtas, L’Amour Existe (1960) tendo sido o filme de estreia.
O começo tardio da carreira como cineasta se deve, em parte, ao fato de que o
cinema não foi sua primeira ocupação. Pialat trabalhou, antes, como pintor, até
perder as esperanças de conseguir sobreviver das artes plásticas e tentar
outras atividades. Passou, então, pela televisão e pelo teatro, onde foi
assistente de direção e ator.
Embora L’Amour Existe tenha
ganho o prêmio de melhor curta-metragem no festival de Veneza de 1961 e aberto
algumas portas, Pialat demoraria quase uma década até realizar seu primeiro
longa. Enquanto esperava, viu a Nouvelle Vague estourar como fenômeno de
público e crítica e, logo depois, se extinguir. A obra de Pialat vem na ressaca
da Nouvelle Vague, e esse dado é crucial, pois ajuda a definir o tom dos seus
primeiros filmes. Pialat, que era consideravelmente mais velho que a geração de
Truffaut e Godard, não se colocava contra a NV, da qual, mal ou bem, partilhava
alguns valores e algumas referências (Renoir, principalmente). Ele apenas
representava o momento posterior, mais sombrio e desencantado. De Os
Incompreendidos (Truffaut,
1959) a Infância Nua, dePierrot le Fou (Godard, 1965) a Nós
Não Envelheceremos Juntos (Pialat,
1972), a diferença de tom é gritante. A amargura já tomou conta.
Há, portanto, um
desencontro entre Pialat e a geração que, mesmo sendo mais jovem, havia
começado a filmar antes dele. Enquanto os “jovens turcos” preparavam nas
páginas dos Cahiers du Cinéma o golpe de estado da Nouvelle Vague,
Pialat se aventurava na pintura e tentava ganhar a vida da maneira que podia.
Quando chega ao cinema, ele traz uma bagagem de pintor e não de cinéfilo, ao
contrário dos jovens críticos aficionados pelo cinema americano. Ao falar de
suas “filiações”, de seus parentescos cinematográficos, Pialat não puxa
referências cinéfilas. Apesar de admirar Bresson, Carné, Pagnol e outros
cineastas franceses, Pialat diz que sua verdadeira influência é Lumière (“o
último pintor impressionista”, segundo Godard). O que ele busca em seus filmes
é a nudez de olhar que caracteriza aquelas pequenas vistas lumièrianas em que
as pessoas são filmadas pela primeira vez.
Filmar as pessoas,
filmar o mundo como se o cinema estivesse nascendo naquele momento. Desconfiar
da instituição-cinema, da máquina reprodutora de aparências. Rejeitar a
decupagem técnica e todo o “savoir faire” do cinema; agir como se não houvesse
uma “linguagem cinematográfica” já constituída. Redescobrir a potência
primitiva do cinematógrafo: eis o caminho que Pialat toma quando começa a
filmar.
Curiosamente,
é com uma geração ainda mais jovem que a da NV que ele encontrará afinidade.
Cineastas como Philippe Garrel, Jean Eustache e Jacques Doillon certamente
estão mais próximos de Pialat, em termos de temperamento artístico, do que
Chabrol ou Truffaut (que chegou a produzir Infância Nua, antes de
romper relações com Pialat). É a geração pós-Nouvelle Vague, movida por uma
exigência de autenticidade, de representação crua dos sentimentos, por uma
obsessão de captura do gesto verdadeiro, da fala espontânea, do fato apreendido
pela verdade mecânica da câmera. Mesmo na Nouvelle Vague, já havia Godard, que
também empreendia uma busca pelos “minutos extraordinários de verdade” que
derivam da destruição da montagem sintática (reencontrando, assim, a potência
do plano individual) e da rejeição das regras da boa interpretação, almejando
conseguir do ator, pelos caminhos menos convencionais, “um gesto imprevisto,
uma mímica incontrolada, uma entonação involuntária”.[1] A
modernidade do Godard dos primeiros filmes já residia, entre outras coisas,
numa tentativa de recuperar o impulso primordial do cinematógrafo. Mas isso
convivia com dezenas de citações, referências, experimentações com a mise
en scène e a
narrativa, invenções formais etc. A geração pós-NV simplifica as coisas, reduz
ao básico.
Partindo de premissas
comuns a outros cineastas surgidos na virada dos anos 1960-70, mas caminhando
de modo um tanto solitário, Pialat constrói uma estética calcada na apreensão
de uma verdade que só pode aparecer durante a filmagem, no corpo-a-corpo do
cineasta com a realidade e com os atores. A câmera é o instrumento que
possibilita a transcrição luminosa dessa verdade, que nem o roteiro nem a
montagem podem inventar: ou ela ficou impressa na película, ou nunca existiu. A
meta de Pialat, ao rodar um filme, não é simplesmente traduzir em imagens o que
está escrito no roteiro, mas recriar inteiramente na filmagem a consistência
cinematográfica da história e dos personagens, isto é, suscitar diretamente no
real bruto a matéria dramática do enredo. Um filme não é a realização de um
projeto, mas a descoberta de um evento desencadeado na frente da câmera.
Não é que Pialat
rechaçasse o cinema de roteiro, a história bem contada, a narrativa bem
construída. Não havia um projeto antinarrativo na origem do cinema de Pialat.
Na verdade, ele muitas vezes se cobrava uma maior clareza narrativa, uma maior
habilidade na hora de encadear as situações dramáticas. A questão é que, acima
da necessidade de contar uma boa história, existia em Pialat uma atração pela
massa bruta do real e, mais ainda, um respeito pela matéria do mundo, uma
exigência de imprimir na película a força intrínseca dos seres e das coisas,
algo que as técnicas de narração, assim como o preciosismo estético, só
poderiam deturpar. Registrar a autenticidade de um gesto, de um olhar ou de uma
entonação é muito mais importante para ele do que conceber enquadramentos
rebuscados, movimentos de câmera virtuosos ou dispositivos cênicos complexos.
Muitas vezes, aliás, um plano rodado por Pialat está “mal iluminado” e “mal
sonorizado”, criando zonas de sub ou superexposição, de indefinição das figuras
e das vozes: ele gosta de levar os materiais ao limite e ver até onde a verdade
que busca nos atores é capaz de se inscrever na placa sensível do filme.
Pialat não possui uma
estilística sistemática ou um programa textual recorrente ao qual o crítico
pode se ater para analisar sua obra. O estilo de Pialat não é uma forma
particular de compor o quadro, movimentar a câmera ou conduzir a narrativa.
Tampouco há motivos visuais recorrentes na obra de Pialat, ou cores de
predileção. Suamise en scène frustra os cinéfilos
acostumados a encontrar a assinatura estilística de um autor nos lugares em que
ela mais comumente se manifesta (a linguagem visual, a composição plástica, a
“escritura”). O estilo-Pialat é tão somente sua maneira particular de atacar o
real, seu olhar direto e nada indulgente para tudo o que está diante da câmera.
(...)
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