quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Conversa com Gabriel Mascaro e Marcelo Pedroso (fragmentos)


A conversa a seguir aconteceu durante a mostra Encontro com cineastas pernambucanos, organizada pelo SESC Palladium, em Belo Horizonte, entre os dias 5 e 9 de junho deste ano. A mostra foi uma oportunidade valiosa de reencontrar os filmes de Gabriel Mascaro e Marcelo Pedroso, dois dos olhares mais instigantes do cinema brasileiro contemporâneo. Realizadores que experimentam, a cada filme, maneiras diferentes de se relacionar com a realidade brasileira – e descobrem, no processo, novas possibilidades estéticas –, Marcelo e Gabriel também são dois sujeitos fortemente interessados nas discussões que circundam o cinema: duas vozes singulares (como se poderá perceber), mas que partilham de um mesmo entusiasmo pelo debate e não hesitam em se posicionar diante dos temas mais controversos.
Do começo, com a direção conjunta de KFZ-1348 (2008), passando pela proposta radical de Um lugar ao sol(2009) – dirigido por Gabriel e montado por Marcelo – até a apropriação das imagens alheias em Pacific(Pedroso, 2009) e Doméstica (Mascaro, 2012), as aventuras pela ficção em Avenida Brasília Formosa(Mascaro, 2010) e Corpo Presente (Pedroso, 2011) ou o experimento terrorista Câmara Escura (Pedroso, 2012), esses dois olhares seguem afirmando, a cada filme, suas singularidades e suas potências. Na conversa de aproximadamente duas horas que tive com eles, convivem a retórica densa de cada um e a abertura ao livre fluxo das ideias compartilhadas, a convicção e a espontaneidade. Alguns dias antes que os protestos escancarassem a indignação de tantos brasileiros nas ruas, palavras como tensão, política e violência já ocupavam o centro do debate.

(...)

Já que você falou de Um Lugar ao Sol, acho muito interessante essa pergunta: qual ética a gente vai buscar pra trabalhar num mundo em que a ética dominante é a do capital? Será que é a ética do amigo? Por outro lado, o que me incomoda em Um Lugar ao Sol é que o resultado estético da abordagem daqueles personagens talvez não problematize algo que a gente já sabe sobre eles, e que resulta em certa planificação. Algo que eu vejo em Pacific Doméstica – que é o gesto de tornar as coisas ainda mais complexas do que elas parecem a primeira vista – eu não percebo emUm Lugar ao Sol. O gesto terrorista me interessa muito, tanto em Câmara Escura quanto em Um Lugar ao Sol, mas nesse último eu acho que a montagem ou o próprio método só conseguiram confirmar uma expectativa que o espectador já tinha sobre aqueles personagens. Ou seja: como ir além do ridículo, como ir além do riso que, de certa maneira, faz parte do consenso? Como operar de uma forma realmente dissensual?
Gabriel – Eu procuro sempre imaginar Um Lugar ao Sol como um grupo de personagens em estado de exceção. Foram os últimos nove que aceitaram participar de um filme sobre morar em coberturas, dentro de um livro que mapeia pessoas que fazem parte de um guia de socialites. É um estado de exceção. Porque o inimigo de verdade não dá entrevista pra mim. Ele está cultivando nióbio em algum lugar… O inimigo de verdade tem outro rosto, está muito distante, não está no filme. Eu me interesso pelo filme a partir do momento que você percebe um grupo de personagens em estado de exceção que tenta, a partir de um filme, instrumentalizar um jogo para falar algo, cultivar um certo mundo socialite num filme que, de alguma forma, desconstrói isso. Acho que eles acham que estão sendo terroristas comigo e eu estou sendo com eles. É um jogo performático, eu estou performando, eles também estão.
Marcelo – Esses filmes estão sujeitos e expostos aos riscos e aos erros. E eu acho que Um Lugar ao Sol é um filme fundador de um tipo de olhar, de uma experiência. De um redirecionamento do olhar documental para outras possibilidades. Ao mesmo tempo é um filme com todos os problemas que ele traz. Porque são os problemas que ele traz que fizeram Pacific, que fizeram Doméstica. Então, a gente não deve se esquivar nem blindar o filme, de jeito nenhum.
Gabriel – Eu lembro que participei da oficina de formação do Doc TV, e foi meu primeiro contato com Jean-Claude Bernardet. Nessa oficina, ele nos desafiou, com muita força: “o documentário brasileiro vai mudar quando os diretores pararem de chamar os personagens para o palco no dia do lançamento”. Aquilo foi muito forte pra mim. Os filmes tinham uma condescendência, um pacto com a aprovação do personagem. No lançamento de Doméstica no Rio, um personagem do filme disse pra mim: “Ó, você roubou esse filme de mim, viu? Eu quero autoria do filme. Fui em que filmei, é minha história”. Quando eu poderia imaginar que esse jogo perverso que instrumentalizou o olhar dos personagens, e virou o jogo contra eles, ia fazer com que, no final, o cara pedisse a autoria do filme, dizendo que eu estou enrolando? Isso traz uma força do próprio descontrole que esse método coloca em jogo. No Pacific, alguém fez uma crítica ao filme no Youtube: “só tem gente bizarra nesse filme”. Aí um personagem respondeu: “Que bizarro o quê? Não sou bizarro não. Minha viagem foi massa, minha esposa curtiu, o cara pediu pra fazer um filme e é isso aí, minha vida é essa. Estou muito feliz”. Quando você pensa o jogo e abre mão desse pacto, o próprio jogo se reverte. Se há um ponto em comum entre esses filmes que a gente está citando, talvez seja a possibilidade de um risco da não aprovação pelo personagem. É um jogo que se constitui como risco que leva em conta a câmera, o cinema, a arte como um tensionador de uma experiência de mundo.
Marcelo – Eu acho que a duração compartilhada, aquele instante em que documentarista e personagem dividem a cena, é capaz de implodir perspectivas de mundo que estão enraizadas nos dois. Se o filme não conseguir abrir essa dimensão que a gente consiga olhar, se identificar, se projetar, ver a nós mesmos ali dentro, a gente está fodido. Na primeira sessão do Pacific lá em Recife, no Janela, eu saí da sala. Porque as pessoas riram tanto durante o filme que eu fiquei numa crise. Fui pro debate mortificado. As pessoas diziam: “Quem era você? Você era um espectro ali?” No outro dia eu reuni a equipe e disse: “Ó, esse filme não vai existir não. A gente vai sepultar hoje mesmo, acabou. Obrigado, foi massa o trabalho de vocês, mas esse filme saiu pela tangente. Como é que pode a gente fazer um filme em que se exercita um olhar e uma sensibilidade sobre o mundo, sobre as pessoas e a reação é escárnio, é riso descontrolado?”. Aí passei por um processo de conversa com a equipe, e passei a entender o quanto esse riso de escárnio do público durante as sessões também denota a própria dificuldade do público de olhar para aquilo.
Gabriel – Acho também que tem um pacto que se estabelece entre mim, espectador, e aquele personagem que está sendo ridicularizado pelo grupo, que me faz negar que aquela experiência é válida. Por outro lado, pra mim, rir é muito mais complexo do que o ridículo. Eu me divirto muito com Pacific, mas na diversão existe a complexidade. No Doméstica tem várias cenas com riso, engraçadas. De repente, a mulher fala do filho morto: silêncio. Cena propositalmente montada pra ser uma virada narrativa clássica. Eu não tenho problema nenhum com o riso. O riso é parte desse jogo de risco: é uma experiência, em si, tensa. Acho que dentro do riso tem muita tensão, muita potência.

Falando agora dos filmes mais recentes: de onde vem esse interesse de olhar para as imagens dos outros?
Marcelo – Tinha uma coisa de começar a se debruçar sobre a coisa do espetáculo. Um primeiro movimento: por que a gente precisa filmar se está todo mundo filmando? Eu nem conhecia muito os filmes que se valiam desse procedimento. Fui conhecendo durante a montagem, Videogramas de uma Revolução, umas coisas assim. Mas tinha esse desejo de apreender a imagem enquanto um dos elementos que constitui a vida coletiva. Isso olhando para si próprio, olhando para o apetite por imagens que existe no seio da minha própria família. Nessa época de Pacific, ainda não era nem Facebook, era Fotolog, mas eu já ficava completamente arrebatado por essa construção social que as pessoas faziam em torno de si mesmas. Tinha uma coisa muito clara pra mim: quem eu sou e quem eu quero ser. Quem eu sou é algo intangível, porque a gente está permanentemente construindo esses personagens, mas quem eu quero ser diz muito sobre quem eu sou; quem eu quero ser, às vezes, é a dimensão palpável de quem eu sou. Isso não é nada novo, é Jean Rouch, já estava lá. Jaguar; Eu, um Negro. O que Jean Rouch fez naquela época, hoje está sendo feito permanentemente em todos os lares que possuem um celular com câmera. Era partir desse pressuposto para entender as relações em um mundo que tem a imagem como centro de força.
Gabriel – No meu caso, eu assisti o Sociedade do Espetáculo, do Guy Debord. Há um momento em que ele pontua: por que filmar, se o mundo está repleto de imagens? O que fazer com essas imagens? Então ele ressignifica as imagens de publicidade a partir das teses do livro dele. No Doméstica eu tento fazer uma experiência próxima, mas que também se distancia: me apropriar um pouco do Reality TV, que negocia sua experiência do espetáculo, mas na forma midiática. Não mais a performance presa a um desejo, mas o jogo como processo da imagem. Doméstica, antes de tudo, é um filme sobre a negociação da imagem, onde eu articulo com um pesquisador local, que fala com um jovem, que fala com a empregada. Há uma rede de hierarquização na relação do fazer, estabelecida a partir do pacto que é fundada num jogo. É em cadeia. Eu nunca falei com a empregada, nunca falei com o jovem, nunca tive nenhum contato com ele. De que forma esse jogo pode tensionar algo para além dele? Para o jovem é um filme sobre a empregada, para mim pode ser um filme sobre um jovem que está falando sobre a empregada. São vários eixos possíveis a partir do processo.
Marcelo – Eu estava ficando curioso com essa ausência da cena. Talvez seja uma das grandes tensões, reflexões do documentário a impossibilidade do real, o real reinventado pela presença da equipe e da câmera. Aí eu ficava achando que esse gesto era uma articulação entre o cinema de interação – porque havia interação, não entre uma equipe e os personagens, mas entre o personagem e uma câmera – e um cinema de observação que consumava o ideal do cinema direto, da mosca na parede. Eu não estava no navio, era um olho realmente invisível que estava lá, ninguém sabia que aquilo ia virar filme, e eu ficava muito deslumbrado com esse esvaziamento.

Tanto em Pacific quanto em Doméstica, há um trabalho de dramaturgia muito forte. Como é que vocês pensam isso na montagem? Essa organização dramatúrgica de um projeto não-dramatúrgico, no sentido tradicional?
Marcelo – Esses filmes dão margem a perceber o quanto a forma de filmar é roteirizada a partir de experiências de imagem que o personagem reproduz no ato de filmar. A imagem vem contaminada por outras imagens, ela reverbera um catatau de imagens que o personagem absorveu ao longo da vida e que estão ali, voltando à tona. E pelo fato de essas imagens já serem elaboradas a partir de uma certa matriz demiseenscène, a forma como as pessoas se organizam no espaço já encontra filiações que permitem que a gente estabeleça uma dramaturgia a partir de algo que já está presente ali. A apropriação que os personagens têm da linguagem cinematográfica, jornalística ou documental nos permite criar essas pontes. Não são imagens puras e brutas que correspondam a um estado virgem de um olhar, mas imagens que já vêm contaminadas por esses princípios.
Gabriel – Quando essas imagens chegam pra gente, a gente também não se imagina trabalhando com uma pureza, ou uma ingenuidade nesse processo de articulação. Eu gosto de imaginar e desconfiar dessas imagens. No Pacific pode ser que tenha coisas que não foram filmadas por eles. Pode ser que tenha voz offque não seja real. No Doméstica, pode ser que eu tenha filmado também. Provocar esse desconforto eu acho que é bacana. Imaginar um corpo de filme que está num limiar de uma tensão de mundo que se dá a partir dessa reapropriação, ressignificação do olhar do outro, mas que também se dá a partir de uma montagem que flerta com uma experiência narrativa que organiza essas imagens.
Marcelo – Esse gesto acaba gerando uma escrita que não é sem autor, mas em cuja noção de posse ou de autoria é truncada. Esses deslocamentos que se operam geram um tipo de coisa que nem te pertence, nem pertence a quem filmou. É um tecido polifônico, o que você quiser chamar, mas que é alheio. É como se fosse uma escrita estrangeira. Porque, por exemplo, no exercício mais convencional do documentário, a gente está aqui, eu estou filmando vocês, isso aconteceu, aí você fala uma coisa que eu achei massa, aí eu vou explorar mais isso. Esse controle se desagrega nesses filmes. Você não tem a possibilidade de “porra, queria tanto poder ver mais disso, queria tanto explorar esse garçom que apareceu nas entrelinhas”. Transformar essa impossibilidade em potência é que é a grande história.
Gabriel – As relações de poder ficam meio dissipadas, isso cria uma suspensão e um desconforto. “Como assim tu articulou plenamente? Como assim tu conseguiu fazer um filme como Pacific, na dimensão da articulação mesmo?”. Esse desconfiar abre para um descontrole, para um outro regime de negociação das imagens.
Marcelo – Para mim o filme não tem que ser puro, ou puritano (o que seria pior ainda). Manter-se fiel a uma filiação estética, ou a um procedimento. O filme nasce de um gesto inicial e, até virar filme, passa por tanta coisa que se soma ali, que não importa. Não vou te achar mais honesto ou menos honesto. Para mim é como o filme foi capaz de se apoderar do mundo, transformar aquilo em imagem e som. A própria reação de desconfiança revela a matriz ideológica de quem espera algo dado do mundo.

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