sexta-feira, 8 de novembro de 2013

O Homem e o Mundo


(Ensaio sobre Cao Guimarães – fragmentos)

Quando vi Cao Guimarães pela primeira vez me surpreendi porque a imagem que construí do seu corpo era de um homem franzino e silencioso, como o personagem de A Alma do Osso. A sensação era de que ele filmava em simbiose com o seu ambiente, escondido atrás de uma rocha ou uma janela, e seus filmes só pareciam fazer sentido se a sua figura pudesse assumir a quase invisibilidade e delicadeza da sua direção. Quando esta imagem se desfez surgiu um questionamento sobre como ele e, algumas vezes, a sua equipe (que eu julgava fantasiosamente inexistente) transformavam a interferência da direção em algo quase invisível, preservando um calmo fluir do tempo, captando o homem na pureza da sua relação com o mundo. Perguntei-me como funcionava esta mediação capaz de captar o homem e o mundo no seu verdadeiro realismo, aquele definido por Bazin como capaz de “exprimir a significação a um só tempo concreta e essencial do mundo” (no clássico texto “Ontologia da Imagem Fotográfica”).
Na verdade, Cao Guimarães é um artista que tem um olhar extremamente atuante mas não se trata de interferência através do choque, do questionamento, da própria presença física do diretor diante da câmera – tudo aquilo que comumente identificamos como interferência num documentário – mas sim permitindo que as coisas possam ser sentidas visualmente e sonoramente por mais tempo pela montagem, ou simplesmente transformadas em sua plasticidade pela fotografia. Com os personagens parece haver uma atuação indireta que, a princípio, não cria nenhuma situação para além do simples ato de filmar. Os inanimados (objetos, espaços, a paisagem, os interiores das casas, a rua) passam pelo crivo do seu olhar-câmera, e retornam transformados no seu significado como fonte de poesia e beleza. Recentemente assisti Andarilho (abertura da Bienal de São Paulo - foto acima) e Acidente(Mostra Internacional de Cinema de SP), seus dois mais recentes trabalhos.

(...)

Em Acidente, o título já diz ao que veio: o acaso é o seu princípio fundante. Co-dirigido por Pablo Lobato (integrante do grupo TEIA), os diretores captaram o que desfilava aos olhos enquanto viajavam por diversas cidades mineiras. São vários capítulos que levam o nome de cada cidade. O encanto aqui é com os objetos, as paisagens, o interior das casas, a rua. Não que não existam situações com personagens – o homossexual e a fala sobre as suas dificuldades, a mulher que chega em casa sem a chave, o engraxate e a bêbada que enche o seu saco, as crianças e a procissão – mas a piração está na poesia, na verdade, no maravilhamento que se pode retirar de tudo aquilo que não é o homem, mas que carrega a marca do humano. Não existe separação, na verdade: tudo é fonte de poesia e diz algo sobre o homem que filma, que olha ou o que desfila com as pernas gordas embaixo d’água.
Acidente é uma sequência de prazeres que vem do inusitado. Seja o corte, a duração, o enquadramento, o lugar da câmera, tudo ali tem um frescor inacreditável. A única coisa que assisti que chegasse próximo da simplicidade e poder de captar a essência do mundo foi Five, de Abbas Kiarostami. Assim como ele, Cao adora a natureza – o movimento da água, das plantas, da chuva – gerando esta estética natural-fenomenológica só possível de ser captada pelo vídeo. As possibilidades abertas por este formato acabam sendo só mais uma dentre as suas ferramentas. O aparato técnico para esses artistas nunca se impõe como limite, ele é só como mais uma forma de mediação criativa entre o olhar e o mundo.
As mediações podem ser muitas porém o toque de Cao Guimarães é sempre perceptível. O trabalho de Acidenteestá bem próximo da sua série fotográfica Gambiarras: o “jeitinho” inscrustrado  no uso dos objetos. Neste trabalho fotográfico, é também o banal que assume novas dimensões e adquire um sentido inexistente antes de ser captado pela objetiva. Objetos que são reconfigurados nas suas funções ao serem captados pela câmera, têm adicionado o seu sentido estético; é o prazer da graça de ver transformado o improviso em arte.
O improviso da viagem, que forma este conjunto de “acidentes”, se intensifica com a profusão de registros e formatos. Alguns capítulos-cidade formam pequenas narrativas, como é o caso da sequência que acompanha o dia de um bar com um observador-câmera atrás do balcão. O tempo se arrasta e do lado de fora vemos um ônibus que está sempre lá. A noite cai, o ônibus dá partida e quando vemos estamos dentro dele compartilhando a visão ampliada do motorista dirigindo pela cidade. Mini-narrativas convivem com momentos de pura contemplação, e tudo revela uma outra forma de se olhar o banal, cercando estas pequenas coisas de um sentido inédito, mas simples.
É com esta mesma simplicidade que aos poucos a junção dos nomes das cidades visitadas formam um poema. Os nomes estavam lá, só precisava alguém aparecer para juntá-los. O trabalho de Cao Guimarães nos chama a ver as coisas com mais atenção, mostrando que uma postura poética diante das pessoas e do mundo ainda é possível. Com isso, ele definitivamente amplia as possibilidades expressivas do documentário e do audiovisual ao transformar tudo o que passa pelo seu olhar em poesia.

Lila Foster
(Texto integral: 
http://www.revistacinetica.com.br/caolila.htm)

Nenhum comentário:

Postar um comentário