(Ensaio sobre Cao
Guimarães – fragmentos)
Quando vi Cao
Guimarães pela primeira vez me surpreendi porque a imagem que construí do seu
corpo era de um homem franzino e silencioso, como o personagem de A
Alma do Osso. A sensação era de que ele filmava em simbiose com o seu
ambiente, escondido atrás de uma rocha ou uma janela, e seus filmes só pareciam
fazer sentido se a sua figura pudesse assumir a quase invisibilidade e
delicadeza da sua direção. Quando esta imagem se desfez surgiu um
questionamento sobre como ele e, algumas vezes, a sua equipe (que eu julgava
fantasiosamente inexistente) transformavam a interferência da direção em algo
quase invisível, preservando um calmo fluir do tempo, captando o homem na
pureza da sua relação com o mundo. Perguntei-me como funcionava esta mediação
capaz de captar o homem e o mundo no seu verdadeiro realismo, aquele definido
por Bazin como capaz de “exprimir a significação a um só tempo concreta e
essencial do mundo” (no clássico texto “Ontologia da Imagem Fotográfica”).
Na verdade, Cao
Guimarães é um artista que tem um olhar extremamente atuante mas não se trata
de interferência através do choque, do questionamento, da própria presença
física do diretor diante da câmera – tudo aquilo que comumente identificamos
como interferência num documentário – mas sim permitindo que as coisas possam
ser sentidas visualmente e sonoramente por mais tempo pela montagem, ou
simplesmente transformadas em sua plasticidade pela fotografia. Com os personagens
parece haver uma atuação indireta que, a princípio, não cria nenhuma situação
para além do simples ato de filmar. Os inanimados (objetos, espaços, a
paisagem, os interiores das casas, a rua) passam pelo crivo do seu
olhar-câmera, e retornam transformados no seu significado como fonte de poesia
e beleza. Recentemente assisti Andarilho (abertura da Bienal
de São Paulo - foto acima) e Acidente(Mostra Internacional de
Cinema de SP), seus dois mais recentes trabalhos.
(...)
Em Acidente,
o título já diz ao que veio: o acaso é o seu princípio fundante. Co-dirigido
por Pablo Lobato (integrante do grupo TEIA), os diretores captaram o que
desfilava aos olhos enquanto viajavam por diversas cidades mineiras. São vários
capítulos que levam o nome de cada cidade. O encanto aqui é com os objetos, as
paisagens, o interior das casas, a rua. Não que não existam situações com
personagens – o homossexual e a fala sobre as suas dificuldades, a mulher que
chega em casa sem a chave, o engraxate e a bêbada que enche o seu saco, as
crianças e a procissão – mas a piração está na poesia, na verdade, no
maravilhamento que se pode retirar de tudo aquilo que não é o homem, mas que
carrega a marca do humano. Não existe separação, na verdade: tudo é fonte de
poesia e diz algo sobre o homem que filma, que olha ou o que desfila com as
pernas gordas embaixo d’água.
Acidente é
uma sequência de prazeres que vem do inusitado. Seja o corte, a duração, o
enquadramento, o lugar da câmera, tudo ali tem um frescor inacreditável. A
única coisa que assisti que chegasse próximo da simplicidade e poder de captar
a essência do mundo foi Five, de Abbas Kiarostami. Assim como ele,
Cao adora a natureza – o movimento da água, das plantas, da chuva – gerando
esta estética natural-fenomenológica só possível de ser captada pelo vídeo. As
possibilidades abertas por este formato acabam sendo só mais uma dentre as suas
ferramentas. O aparato técnico para esses artistas nunca se impõe como limite,
ele é só como mais uma forma de mediação criativa entre o olhar e o mundo.
As mediações podem ser
muitas porém o toque de Cao Guimarães é sempre perceptível. O trabalho de Acidenteestá
bem próximo da sua série fotográfica Gambiarras: o “jeitinho”
inscrustrado no uso dos objetos. Neste trabalho fotográfico, é também o
banal que assume novas dimensões e adquire um sentido inexistente antes de ser
captado pela objetiva. Objetos que são reconfigurados nas suas funções ao serem
captados pela câmera, têm adicionado o seu sentido estético; é o prazer da
graça de ver transformado o improviso em arte.
O improviso da viagem,
que forma este conjunto de “acidentes”, se intensifica com a profusão de
registros e formatos. Alguns capítulos-cidade formam pequenas narrativas, como
é o caso da sequência que acompanha o dia de um bar com um observador-câmera
atrás do balcão. O tempo se arrasta e do lado de fora vemos um ônibus que está
sempre lá. A noite cai, o ônibus dá partida e quando vemos estamos dentro dele
compartilhando a visão ampliada do motorista dirigindo pela cidade.
Mini-narrativas convivem com momentos de pura contemplação, e tudo revela uma
outra forma de se olhar o banal, cercando estas pequenas coisas de um sentido
inédito, mas simples.
É com esta mesma
simplicidade que aos poucos a junção dos nomes das cidades visitadas formam um
poema. Os nomes estavam lá, só precisava alguém aparecer para juntá-los. O
trabalho de Cao Guimarães nos chama a ver as coisas com mais atenção, mostrando
que uma postura poética diante das pessoas e do mundo ainda é possível. Com
isso, ele definitivamente amplia as possibilidades expressivas do documentário
e do audiovisual ao transformar tudo o que passa pelo seu olhar em poesia.
(Texto integral: http://www.revistacinetica.com.br/caolila.htm)
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