sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Potência do mal-estar


Trabalhar Cansa, de Juliana Rojas e Marco Dutra (Brasil, 2011)

A estréia em longa-metragem da dupla Juliana Rojas e Marco Dutra tem algo de diferente no panorama do cinema brasileiro atual. Enquanto a tendência geral é colocar a afetividade no centro, em geral com certa doçura inocente ou uma afirmação positiva das relações, como se o afeto fosse capaz de salvar as pessoas da tragédia do mundo, Trabalhar Cansa é um filme político, no sentido mais puro que a palavra pode ter – já que o termo “cinema político” desgastou-se como uma grife nos últimos 40 anos – pois coloca as relações humanas como centro de sua problemática, mostrando uma crise. É um filme de pessoas no mundo: pessoas em conflito, o homem como ser social, como um animal num mundo que lhe é hostil e cuja existência harmônica lhe parece estranha. O mal-estar na civilização.
As relações são mediadas por uma mistura dos sentimentos e dos papéis sociais: a empregada que mora em casa, mas quer a carteira registrada; o marido que perde o emprego enquanto a esposa vira dona de estabelecimento comercial; a mãe que se acha patroa da empregada da filha por extensão; a funcionária que joga do lado tanto dos colegas quanto da patroa. Todas as personagens têm essa “dupla função”, resultado do embate entre os desejos e o racional: jogam com seus sentimentos em relação ao outro, mas também com os interesses (às vezes, os mais baixos possíveis). Essa pulsão que move as relações só se faz possível, enquanto dramaturgia, pelo tom preciso do filme, que transita da observação seca à doçura, do drama existencial ao cômico, da comédia à tragédia, sem deixar marcada as fronteiras que separam um momento do outro. Sai daí uma fruiçãohawksiana, que se move pelos momentos sem deixá-los ser apenas fragmentos de múltiplas idéias, mas sim partes orgânicas de um todo pulsante.
O filme certamente será abordado pelo seu lado sobrenatural evidente, ainda mais que este aspecto perpassa a obra da dupla desde seu primeiro curta-metragem. Contudo, se antes esse elemento era uma metáfora de algum aspecto psicológico da personagem (e isso é trazido para a frente em As Sombras), aqui o terror é antes de tudo uma materialização do estado de mal-estar das personagens, derivados de seus insucessos e suas frustrações (que explodirão no incrível momento de libertação de Otávio, personagem de Marat Descartes). Pois se o caminho era criar uma imagem “psicológica” nos curtas, agora as imagens têm uma relação física. Aliá-lo ao cinema de terror é reduzir sua potência e ignorar o que há de mais evidente em sua misè-en-scene: pessoas interagindo no espaço. Pois, Trabalhar Cansa é um filme físico. A obra se faz no nível do homem, tanto por negar uma metafísica no jogo das relações, quanto por se preocupar em filmar os atores e seus mínimos gestos – e é sintomático que seja um filme com tão poucos planos de passagem. É filme feito de carne e osso, louças, papel, tesoura, marreta, pano, correntes e vassouras. E isso é o que há de efetivamente fantástico nele.

Raul Arthuso
(Texto original:
http://www.revistacinetica.com.br/trabalharcansa.htm)

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