O descobrimento da América
Dona Sônia Pediu uma Arma para seu Vizinho Alcides, de Gabriel Martins
por Raul Arthuso
"Dona Sônia quer vingança"
diz a sinopse do curta-metragem dirigido por Gabriel Martins.
A vingança é o principal motor das narrativas do faroeste. Porém, Dona Sônia... não é um faroeste moderno revisitando a iconografia e os valores do gênero, deslocando-os para o meio urbano - como, por exemplo, Taxi Driver, ainda que Martins compartilhe com Scorsese um rigor virtuoso do posicionamento de câmera, da composição de quadro, do ritmo interno dos movimentos de câmera. O gesto do filme é, na falta de um termo melhor, anterior, quase primitivo.
Pois o universo da vingança de Dona Sônia não carrega em si o peso de uma herança tanto historiográfica quanto imagética, sendo terreno praticamente virgem - não fossem as incursões exploratórias do telejornalismo e dos tablóides (ao qual o extenso título faz referência), pouco dispostos a contar uma história ou expressar uma vivência transferível a uma experiência coletiva. Desse terreno, parece sempre erigir um instinto de extrair o máximo de sangue, deixando uma produção de efeitos sem causa.
Gabriel Martins, por outro lado, se atém à vocação do cinema de cristalizar a potência dos gestos, dos singelos movimentos, da expressão impassível, mas intensa, de Dona Sônia, cuja textura se funde com a confusão urbana do cenário. É a partir do cinema que a vingança da personagem ganha existência, pois passa de simples relato a uma narrativa - uma experiência transmissível em toda sua profundidade.
E, então, a metalinguagem que atravessa o filme ganha força em sua estranheza, pois trata-se da impossibilidade de contar essa história sem atentar para a narrativa primeira que se ergue junto com o enredo daquela mulher. Nesse sentido, Dona Sônia... tem um olhar para esse mundo muito próximo de Michael Cimino, que parece sempre filmar como se fosse a primeira vez, fazendo de cada obra um novo descobrimento da América, mais especificamente do Oeste. Analogamente, Gabriel Martins filma seu próprio descobrimento: o bairro de periferia é seu oeste, Dona Sônia é seu mito em construção, as casas de tijolo à mostra são seu Monument Valley.
Dona Sônia... não dá razão à vingança, mas a aprofunda para sua existência, buscando, no impulso mais básico de contar uma história, articular e entender a fugidia, frustrante e fragmentada realidade. Não se trata de justificar o crime, mas de justiçar seu entorno.
Maio de 2012A vingança é o principal motor das narrativas do faroeste. Porém, Dona Sônia... não é um faroeste moderno revisitando a iconografia e os valores do gênero, deslocando-os para o meio urbano - como, por exemplo, Taxi Driver, ainda que Martins compartilhe com Scorsese um rigor virtuoso do posicionamento de câmera, da composição de quadro, do ritmo interno dos movimentos de câmera. O gesto do filme é, na falta de um termo melhor, anterior, quase primitivo.
Pois o universo da vingança de Dona Sônia não carrega em si o peso de uma herança tanto historiográfica quanto imagética, sendo terreno praticamente virgem - não fossem as incursões exploratórias do telejornalismo e dos tablóides (ao qual o extenso título faz referência), pouco dispostos a contar uma história ou expressar uma vivência transferível a uma experiência coletiva. Desse terreno, parece sempre erigir um instinto de extrair o máximo de sangue, deixando uma produção de efeitos sem causa.
Gabriel Martins, por outro lado, se atém à vocação do cinema de cristalizar a potência dos gestos, dos singelos movimentos, da expressão impassível, mas intensa, de Dona Sônia, cuja textura se funde com a confusão urbana do cenário. É a partir do cinema que a vingança da personagem ganha existência, pois passa de simples relato a uma narrativa - uma experiência transmissível em toda sua profundidade.
E, então, a metalinguagem que atravessa o filme ganha força em sua estranheza, pois trata-se da impossibilidade de contar essa história sem atentar para a narrativa primeira que se ergue junto com o enredo daquela mulher. Nesse sentido, Dona Sônia... tem um olhar para esse mundo muito próximo de Michael Cimino, que parece sempre filmar como se fosse a primeira vez, fazendo de cada obra um novo descobrimento da América, mais especificamente do Oeste. Analogamente, Gabriel Martins filma seu próprio descobrimento: o bairro de periferia é seu oeste, Dona Sônia é seu mito em construção, as casas de tijolo à mostra são seu Monument Valley.
Dona Sônia... não dá razão à vingança, mas a aprofunda para sua existência, buscando, no impulso mais básico de contar uma história, articular e entender a fugidia, frustrante e fragmentada realidade. Não se trata de justificar o crime, mas de justiçar seu entorno.
Texto original: http://www.revistacinetica.com.br/donasonia.htm
Vou fugir do assunto aqui e postar o texto do Vinil Verde que não rolou ler na oficina. Agradeço comments. E aguardo os do Dona Sônia.
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Entre os filmes que amamos e os que detestamos, passando por aqueles que simplesmente sabemos que são bons filmes, estão as mais diversas e aceitáveis (ou não) definições do que é o cinema.
O cinema: arte reflexiva das imagens (e sons) do mundo, reais ou inventadas –inventadas a partir da realidade, ou realizadas a partir do imaginário. Ainda: o cinema é a verdade (Godard), ou a mentira (Haneke), a 24 quadros por segundo. Ou é simplesmente uma sucessão de imagens criando uma ilusão de movimento (Lumière). O cinema é, inclusive, qualquer coisa entre o real o e imaginário (Méliès), a 24, 30, 60 ou 3 quadros por segundo (Godard, Marker). O cinema é este movimento de coisas do mundo. Fantasia, contos de outros cantos - como canta Silvério Pessoa em ‘Vinil verde’, de Kleber Mendonça Filho (2004).
Trata-se um filme que fala, acima de tudo, de cinema. Não nos esqueçamos de que este é um filme feito por um crítico, trabalho que precede o de cineasta na vida do realizador. É tarefa árdua falar de filmes de um crítico, cujo trabalho por vezes se confunde, ou se completa. O que diferencia uma coisa da outra é a definição básica do gesto, mas sua visão de mundo (e de cinema) estará impregnada em qualquer manifestação de sua expressão.
(Mas também, esqueçamo-nos de que este é um filme feito por um crítico, e pensemos em ‘Vinil verde’ como um bom filme de um bom realizador. O bom cineasta não deixará de colocar o cinema acima de tudo. O bom filme pensa o cinema o tempo inteiro).
‘Vinil verde’ é uma obra construída a partir de conflitos: é uma adaptação de uma fábula russa que, sem abandonar o caráter intrínseco de fantasia, se desenrola num universo bastante real e específico: uma casa de classe média no bairro de Casa amarela, no Recife. O tratamento das imagens fotográficas, próximos a algo que estamos acostumados a chamar de “amador”, reforça o caráter de realidade, ao mesmo tempo em que permite que a personagem apareça ‘faltando um braço’. A isso se soma a narração que nos coloca no universo da recepção da tradição oral, das histórias que ultrapassam gerações, e cuja chave de interpretação não é a da veracidade ou possibilidade dos fatos. No nível narrativo, as contraposições encontram-se no atrito constante entre doçura e crueldade, infância e vida adulta, segurança e violência, norma e transgressão.
A escolha por fotografias faz parte de um jogo complexo de completar, ou aceitar, as lacunas. É uma espécie de sinédoque, em que o fragmento dá conta do todo, pois completamos os fotogramas faltantes para chegar aos 24 quadros por segundo, aceitamos o sumiço das partes do corpo, especulamos sobre como a mãe chegou pela ultima vez à grade, imaginamos quem organizou o funeral, nos indagamos porque a filha foi dormir sozinha no apartamento. E nesse jogo, voltamos aos truques tecnológicos de Méliès, ou ainda, às experiências de Muybridge para saber se o cavalo tirava as quatro patas do chão ao mesmo tempo. A imagem de um passo depois do outro nos revela o mecanismo do movimento dos seres do mundo. Kleber soma a isso dois elementos imprescindíveis: a fusão, que costura uma imagem à outra, e o trabalho de som, bastante evidente e fora dos padrões do cinema em geral. As fusões emulam não só os movimentos dos personagens e objetos, mas movimentos de câmera e de lentes, como o zoom no rosto da filha quando é apresentada ao disco verde.
[parte 1/2]
[parte 2/2]
ExcluirA construção do horror no filme se completa no âmbito da superfície das imagens, com a “sujeira” da imagem digital atuando como textura do assustador – notadamente no momento em que a mãe chega em casa sem o primeiro braço. A isso somam-se imagens icônicas como as bonecas sem cabeça, os espinhos no muro do lado de fora da casa, a expressão dúbia no rosto da criança durante o funeral. O perigo é constante, está fora e dentro de casa, e fora e dentro das pessoas. Mas ao final, depois do ataque das luvas, não há a morte (sugerida pela ausência de imagem e presença do som), mas uma continuidade que é própria do cinema: a filha “cresceu, se apaixonou, teve filhos, e para eles deu todos os seus medos e mais profundas aflições”. O envolvimento do cinéfilo com o cinema é similar a este processo do crescimento, da perda da inocência: é ir onde não deveríamos ir, ver as imagens proibidas, desejar a morte, a violência e as transformações mais traumáticas. A menina, como o espectador, é curiosa sobre a ‘aparência alterada de uma mulher’, seja a mulher maquiada, seja a mulher amputada. É curiosa com o aparelho analógico, ainda que seu universo esteja no âmbito do digital. Ela está deliberadamente entregue aos perigos e consequências irremediáveis que este mecanismo sombrio e encantador pode lhe trazer. A relação da menina com o vinil é nossa relação com este primeiro cinema (o da película, ou o primeiro cinema de nossas vidas). A imagem do disco verde em movimento é sempre acompanhada dos grãos de película gasta.
Assistindo a ‘Vinil verde’, somos deslocados ao que existe de mais elementar no cinema: as imagens em movimento, o poder da sugestão pelo som ou pela negação das imagens, o poder do mistério, a construção do impossível (luvas que voam), e perpetuação das histórias do mundo (própria da fábula), adaptadas aos contextos mais diversos. (Este é o motivo pelo qual, inicio oficinas de cinema para crianças com a exibição deste filme). Em ‘Carmen’, Godard nos diz que não importa o que ou quando, mas os clássicos sempre funcionam. Isso porque contar histórias é só uma desculpa para que todo nós, realizadores, críticos, cinéfilos ou espectadores casuais, nos envolvamos com o mistério que ronda o mecanismo destas imagens e sons em movimento.
Cristiane Senn
nov/2013
Notas sobre o texto da Cristiane:
Excluir1 - Chega chegando. Começa expondo um questionamento e conclui oferecendo uma resposta numa estrutura de moldura que parte do cinema para o filme e depois volta para o cinema.
2 - Se não me engano, quem falou primeiro que o cinema é a mentira a 24 quadros por segundo foi o Brian De Palma no "Uma viagem pelo cinema americano com Martin Scorsese: http://www.youtube.com/watch?v=8NnLOhyxFGY (10:37)
3 - Meu pontos prediletos: a) Gostei muito da entrada no filme a partir da citação da música; b) O texto integra muito bem a informação na análise; c) Concordo com o conflito entre universal e específico. Realmente o filme tira muito dessa relação; d) Excelente a associação entre a menina e o espectador e entre o vinil e o cinema.
Grande prosa e grandes idéias :D
Miguel Haoni
antes do de palma o fassbinder ja tinha dito (descobri agora). de qualquer forma, qualquer um dos dois era exemplo melhor que o haneke. obrigada por comentar.
ResponderExcluirParabéns pelo texto Cristiane Senn, as referências já ganharam o meu coração “amador”, gostei muito. E bem legal o seu projeto com as crianças, eu dou aula de língua portuguesa na Federação de Ginástica e desenvolvi a produção de um curta com as meninas desde o roteiro até a pós-produção, foi uma experiência encantadora ver o interesse delas como se estivessem descobrindo um mundo novo e realmente estavam :D Sucesso com as suas oficinas e criticas :)
ResponderExcluirAqui está meu texto sobre Dona Sônia... Se detonarem vou ser obrigada a mentir que estava muito bêbada e que não me lembro dessa postagem ;)
ResponderExcluirBjos.
ISSO NÃO É UMA MANCHETE DE JORNAL
“Dona Sônia Pediu uma Arma para seu Vizinho Alcides” não é uma manchete, mas poderia ser, não é a toa que vários roteiros se inspiram em noticias que passam rapidamente ao olhar do leitor que consome sangue nas páginas de jornais, considerando esses eventos distantes de suas vidas, como vemos na cena em que o estranho da classe média entra na cozinha de dona Sonia. Em uma sociedade prisioneira do medo, um jovem assassinado durante a noite não é motivo para reflexão, é motivo para a afirmação do “óbvio”: não é certo sair à noite, se estava fora de casa é porque fazia coisa errada. Gabriel Martins usa o movimento da câmera para se relacionar com o mundo, focando a câmera para a sua criação.
Uma mãe com sede de vingança é a escolha do cineasta para a sua representação do caos natural do mundo enquadrado na cozinha da dona Sônia, bagunçada por louças quebradas pelo chão e plantas pelas paredes, que certamente crescem com o desejo de vingança da protagonista. A reação de dona Sônia quebra a rotina do sofrer calado. Daí em diante o que poderia ter sido uma nota despercebida de qualquer noticiário policial, torna-se arte pelo olhar da câmera de Gabriel Martins.
Já sabemos que as imagens em movimento proporcionam ao cinema a oportunidade de contar as mesmas histórias de maneiras diferentes. Karim Aïnouz produziu dois filmes partindo da mesma notícia de jornal: o curta-metragem, Rifa-me e o longa mais conhecido, O Céu de Suely. A história de uma mãe que procura superar a perda de um filho assassinado, provavelmente, já foi contada muitas vezes, mas a dona Sônia habita uma tela, cujos enquadramentos lhe dão peculiaridades tão intimas fazendo com que apertemos o gatilho da arma junto com a mãe sem filho.
A personagem dialoga conosco por meio de imagens, ela lava a louça suja, mas a água não consegue levar o sangue da tragédia, ela vê vídeos caseiros do filho e nos coloca no tempo anterior ao conflito responsável pelo desfecho. O discurso linguístico se torna desnecessário até o momento de libertação de dona Sônia em que cumpre seu destino escrito pela câmera. Livre do sentimento de vingança ela já não deve satisfações a nós, agora ela vai acertar as contas com Deus, cantando uma canção religiosa. Trata-se de um filme que não abafa os sussurros com gritos, ele não espetaculariza e sim expressa a dor.
A mesa vazia com um vaso de flores já no inicio do filme dando a ideia de um altar pronto para receber o morto é cenário para que dona Sônia finalize seu plano de justiça, feito isso estamos prontos para deixar a história, com as saudades de cada plano que se foi...
Uma questão preliminar sobre o texto da Aline: "Gabriel Martins usa o movimento da câmera para se relacionar com o mundo, focando a câmera para a sua criação." Como e onde?
ExcluirBom questionamento, seria interessante falar do afastamento/ aproximação da câmera, como no ínicio em que a câmera está distante de dona Sonia (a história é contada) e depois nos aproximamos do seu rosto cansado e sofrido e reconhecemos a história que ouvimos? É por aí?
ExcluirObrigada :)
É por aí sim. É importante estabelecermos sempre um diálogo pendular entre a interpretação do filme e o que o filme nos dá. Não devemos perdê-lo nunca de vista e apesar de ser absolutamente favorável à superinterpretação (não que seja esse o caso, é só um exemplo) não devemos fugir do horizonte que o filme oferece (o que já é muito amplo).
ExcluirOu seja: não existe regra pronta e cada texto é um texto.
ExcluirMiguel
Fico feliz com os ótimos comentários, com certeza vão agregar muito na reescrita do texto, muito obrigada =*
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