(Vincent Gallo, The brown bunny, EUA, 2003)
A coisa que mais impressiona em The Brown Bunny, assim como em alguns dos mais estimulantes filmes vistos recentemente, é a atribuição de sentimentalidade a objetos ou paisagens filmados que originalmente não se prestariam muito a isso. Da high-school em Elefante de Gus Van Sant à fabulosa seqüência do desfile em Shara de Naomi Kawase, a câmera sexualiza aquilo que está à sua frente, incorpora o objeto ao sentimento do sujeito filmante (a câmera, não o diretor por trás dela) e produz um inaudito sentimento de que tal diferenciação e separação entre coisa filmada e consciência filmante jamais existiu. Em The Brown Bunny, pouco importa se o caminho da Costa Leste americana até a Costa Leste, de Ohio a Las Vegas para chegar a Los Angeles – o verdadeiro tema do filme, muito mais do que qualquer interiorização de sentimentos –, pouco importa sinceramente se aquilo tudo já está lá. De dentro da van que dirige Vincent Gallo ao longo dos Estados Unidos, toda espécie de paisagem americana de estrada adquire um significado especial, completamente diferente de tudo que já vimos anteriormente. Estamos num terreno francamente experimental de travelogue sentimental, onde o que importa exatamente não é nem como a paisagem prolonga o sentimento interior do personagem principal e tampouco como o personagem se relaciona com o mundo que vê à sua volta (duas coisas que já vimos à exaustão). Trata-se antes de uma relação fantasmática de impalpabilidade: pouco importa que estejamos diante das verdadeiras paisagens, sempre nos parece faltar alguma coisa, ou talvez até sobrar: o carro e a trip de Vincent Gallo ressignificam a paisagem que, por sua vez, está sempre lá, à espera de ser decifrada e, em última instância, desfrutada.
O fiapo de ficção que sustenta The Brown Bunny é uma viagem: Bud vai de New Hampshire à Califórnia fazer a entrega de uma motocicleta de corridas. Ao longo do caminho, ele se aproxima de algumas mulheres que, no entanto, depois das primeiras leves carícias em espaços públicos (uma loja de conveniência de beira-de-estrada, um banco de praça), abandona inexplicavelmente. O motivo nos aparece aos poucos, fugazmente: um amor também fantasmático, Daisy (Chloë Sevigny), cuja lembrança ocupa toda a atenção do personagem durante seu trajeto pelo território americano. As outras mulheres também têm nomes de flores: Lilly, Violet, Rose... Seriam elas um prolongamento de Daisy, ou antes figuras míticas de feminilidade, a grande mãe, a desequilibrada, a puta? Daisy, por sua vez, ao fim do filme, nos aparece como um pouco das três, mas ao mesmo tempo como nenhuma: tudo aquilo que vemos diante de nós, na impressionantemente bem filmada cena de briga e sexo entre os dois, não passa de um sonho/recordação de Bud deitado em sua cama de hotel. A mulher falta, a paisagem falta: The Brown Bunny realiza toda uma operação de presença/ausência de sentido para além de qualquer referente: Daisy estar ou não lá, o deserto estar ou não lá, as outras mulheres quererem acompanhá-lo ou não, isso pouco importa. A paisagem ou as mulheres afetam Bud para além de sua palpabilidade. Retrato do amor como doença fatal degenerativa ou da mente como o maior de nossos vícios, The Brown Bunny vai até o fim na entrega de seu personagem a um pesadelo de vigília muito mais estarrecedor do que qualquer sono assustador.
Para acessar de alguma forma a perdição existencial de Bud, naturalmente, é preciso dar ao filme a mesma densidade e a mesma falta de horizontes presentes em seu personagem. The Brown Bunny realiza isso prolongando todos os seus planos, dilatando como pode qualquer episódio banal a ser filmado (convém lembrar que a versão exibida em Cannes, em torno de meia-hora mais longa, prolongava ainda mais essa idéia), fusionando sem bula as experiências "reais" (as paisagens) com as "imaginárias" (Daisy, muito embora Daisy seja muito maisreal, de certa forma, do que toda outra coisa para Bud). Um mundo inteiro de imersão que Vincent Gallo consegue construir com um impecável senso de plasticidade e ritmo – malgrado as críticas à duração do filme, cada plano parece ter exatamente a duração que deve, do ponto de vista rítmico tanto quanto do ponto de vista dramático. O pesadelo dos insones é mais devastador do que qualquer sonho ruim. The Brown Bunny nos coloca nesse redemoinho e não nos dá a chave de saída. Diário de viagens, road movie, filme-experimento de duração, pornô explícito, reality show ou contemplação paisagística, todos esses gêneros se fundem aqui para constituir uma experiência inédita e estimulante de cinema contemporâneo a ser mais vivida do que compreendida. Então vivamos.
Ruy Gardnier
(Texto original: http://www.contracampo.com.br/71/brownbunny.htm)
Vincent Gallo, 07 de fevereiro de 2014, por Vera Lúcia de Oliveira e Silva
ResponderExcluirBusco a arte para me comover: sinto prazer nessa comoção que agita o córtex cerebral sem excluir as outras vísceras. É a minha moda de escapar um pouquinho do tédio que me produz a banalidade do quotidiano.
São diversas as vias pelas quais transita essa comoção: a via intelectual, a estética, a emocional, a ética – além de outras que não sei nomear. Mas uma coisa é certa: o estímulo, para mim, sempre tem algo de metáfora da experiência inconsciente.
Mesmo sem acreditar na ex-istência de um inconsciente coletivo autônomo – uma fonte transcendental da qual todos beberíamos – a clínica me demonstra que há, no inconsciente de cada um, experiências singulares, individualmente marcadas na história particular, que compartilham uma certa universalidade. Ou seja, podem ser reconhecidas entre pares, embora tão ímpares e até mesmo díspares.
O filme de Vincent Gallo – Brown Bunny – me afeta por aí: me comove.
Ele me demonstra, na sua seqüência e temporalidade arrastada, os possíveis efeitos devastadores da cena primária: a mãe estuprada, se não é, poderia ser um arquétipo junguiano, diante do qual o sujeito se imobiliza, paralisado pelo impacto do encontro com o Real.
Da cena traumática o sujeito “sai” – assim, entre aspas, porque a verdade é que, aparentemente, ele já não pode mais sair e se condena a repetir seu fantasma indefinidamente – reduzido à impotência.
E pouco importa se Daisy morreu de verdade ou se anda por aí desfolhando suas pétalas: a cena fantasmática tem vida própria e lhe é indiferente a realidade objetiva.
Quanto à associação deste filme, na exibição desta semana, com o curta “Honey Bunny”, não poderia ter sido mais acertada. O fulcro pulsional onde se apóia “Brown Bunny” – a pulsão escópica – apresenta-se em cheio na vitrine de objetos eróticos de “Honey”.
Bem à moda do inconsciente, um inocente coelhinho de pelúcia sugere que a ligação do curta metragem deva ser feita com o coelho de verdade que, no segundo filme, os pais de Daisy ainda conservam. Só para esconder o que realmente se passa por baixo (ou por trás) do pano.
http://www.eca.usp.br/caligrama/n_10/02_hassan.pdf