sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Bom Trabalho, de Claire Denis


Beau Travail, França, 1999

Claire Denis declarou ter se inspirado diretamente no trabalho tardio de Herman Melville (especialmente na novela Billy Budd, Foretopman e em dois de seus poemas The Night March e Gold in the Mountain) para realizar seu Beau Travail. Sinto-me impelido a dividir com os leitores um trecho da crítica de Jonathan Rosenbaum que procura justificar, emprestando a estas referências um papel legítimo, as conexões sugeridas pela declaração de Denis: "estes não são tanto trabalhos a se adaptar ou lugares a serem explorados quanto são talismãs pessoais, afrodisíacos estéticos, pontos de referência inspiradores, encantamentos". Rosenbaum soma aos escritos de Melville dois filmes decisivos da Nouvelle Vague, que tratavam diretamente da guerra da Argélia: Le Petit Soldat, de Godard e Muriel, de Resnais.
De fato, ao largo de uma tentativa de adaptação, todas estas obras emergem em Beau Travail servindo à nobre causa inspiradora, mas também como estruturas de base, instâncias organizadoras da narrativa e indicadores de leitura para um filme que parece em princípio tão desligado da experiência contemporânea quanto a própria Legião Estrangeira, que lhe serve de palco, de tema, de obsessão.
A referência ao filme de Godard é evidente na presença de Michel Subor como o capitão Bruno Forestier (personagem homônima do protagonista de Le Petit Soldat), a cujo passado brilhante, mas obscuro, o sargento Galoup (Denis Lavant) alude em suas memórias como objeto máximo de devoção e respeito. Servindo como referencial histórico, na medida em que situa o filme como expressão unicamente possível do período pós-colonial, mas também como comentário ao atual estado de coisas do cinema francês (as bases da relação Galoup e Forestier / Lavant e Subor podem ser entendidas, por extensão, como uma proposta de diálogo vivo com a Nouvelle Vague), as remissões ao filme de Godard ampliam de forma considerável o campo de atuação de Beau Travail, elevando a condição de seu universo intimista e autocentrado à de consciência histórica e de declaração de princípios cinematográficos.
De Melville, Denis aproveita toda uma série de temas e situações: a coletividade organizada em oposição à figura do herói solitário, as condições adversas e o eterno conflito com a natureza, as obsessões românticas, o conflito na ordem simbólica entre destino e livre-arbítrio e uma melancolia latente. Sua inspiração, no entanto, sempre permanece livre e a recorrência destas figuras nem obedecem à lógica literária nem respeitam o estilo de Melville. Alguns procedimentos narrativos estão presentes, mas obedecem a uma ordem poética muito particular e essencialmente cinematográfica, como o tratamento brilhante dispensado à superposição de tempos (passado/presente, objetivo/subjetivo).
Beau Travail está mais próximo, na composição de seus ritmos sutis, da organização musical que da literária na maneira como soluciona o habitual impasse de dar forma cinematográfica à representação da memória; assim como seu tratamento do corpo e do espaço obedece mais às regras da dança (principalmente a contemporânea) que do teatro. Menos que um rompimento com as bases dramáticas recorrentes (no fim das contas, literatura e teatro são tão fundamentais na construção de seu universo poético quanto a música e a dança), a eleição destas categorias de expressão a um patamar tão significativo traz um quê de inusitado, mas também uma sede de experimentar e um respeito por seu objeto e, em última instância, pela forma cinematográfica que tanto falta nos cineastas contemporâneos (não apenas nos franceses, diga-se de passagem) e que insere Beau Travail na categoria tão rara de obra-prima.

Fernando Veríssimo
(Texto original: 
http://www.contracampo.com.br/22/bomtrabalho.htm)

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