sexta-feira, 7 de agosto de 2015

AMARCORD / 1973


Um filme de Federico Fellini


"Amarcord" é o termo que no dialecto romano corresponde a "recordo-me". Eis um título que diz tudo acerca do filme que abarca: a reminiscência e o regionalismo. Na verdade Amarcord é gerado e construído a partir da tese cujo enunciado diz que a memória se prende a elementos tão concretos, e mesmo comezinhos, que perde os critéridos considerados normais de narratividade, tese cara e fundamental a todo o cinema de Fellini, que costuma circular quase sempre em torno de recordações dos anos da sua vida anteriores à fase adulta, um material que tem como essência mais a imaginação do que o realismo, porque a memória é sempre difusa e nela a realidade confunde-se com o desejo. Amarcord é, logo à partida, um filme com a marca pessoal de Fellini porque pertence a essa família de obras sobre reminiscências pessoais e intransmissíveis dos dias passados, tal como 8 1/2, Giulietta degli Spiriti e Roma.

Ver assim o cinema de Fellini, enquanto uma explosão da fantasia motivada pelas efabulações próprias da memória, anula duas especulações que geralmente se fazem em torno dele: que é um cinema auto-biográfico, e que todos os filmes são uma constante repetição do mesmo. Não é auto-biográfico porque Fellini, sabendo que a essência do cinema é a verosimilhança e não o verismo e que demasiadas vezes a primeira, não o parecendo, é uma forma de ludibriar o segundo, procede a uma notável mistificação: nunca é para nós seguro, de todas estas memórias, quais são as vividas e as inventadas, sendo muito mais provável que tudo não passe de uma fantasia tão à margem dos factos quanto as suas encenações. Quanto à ideia de uma tautologia felliniana a perpassar em todos os seus filmes, ela é inequivocamente desmentida, se for prestada atenção ao facto de em cada uma das suas obras haver uma significativa alteração de ponto de vista: Giulietta degli Spiriti era uma reconstrução do mundo a partir do interior de uma personagem, Roma é uma reconstrução imaginário da cidade, tal como Amarcord, por seu lado, supera o espaço para se deter nas modalidades de convivialidade. Como o ponto de vista é, de facto, o grande conteúdo de um filme temos assim que as diferenças são mais acentuadas do que as semelhanças, apesar das aparências - uma questão interessante entre obras tão coniventes com uma ideia de aparência.

Embora organizando-se de forma a contornar os critérios clássicos que estabelecem a narrativa, Amarcord assenta numa ordem descritiva. Composto por quadros, que são outros tantos flagrantes de pequenos pormenores do quotidiano, não se entrevê uma relação hierárquica ou trágica entre eles: todos estão disposto numa linha dramaticamente contínua cuja progressão, desdenhando uma qualquer ideia de evolução, está centrada nos personagens. É no fundo em torno dos acontecimentos recordados pelo jovem Titta - quer por tê-los visto, quer por tê-los ouvido falar - que tudo se passa, não havendo nisto, ainda, qualquer intenção de construir psicologicamente as figuras humanas, mas antes de as sugerir como tipos. O curioso, afinal, em Amarcord é o modo como Fellini contorna o simplismo inerente a tal modelação arquetípica dos seus personagens e consegue atribuir-lhes uma densidade humana deveras notável. Acontece isto porque tais personagens, apesar de se tomarem mais pelo lado do significado do que pelo do ser, ou seja, por virem representar qualquer coisa em vez de serem eles mesmos, acabam por ser convocados e trazidos à tela como evocadores daquilo que foi determinante para Titta. Nesta perspectiva,  a tabaqueira não é um monstro de feira exposto de maneira impúdica para provocar um efeito de chacota alarve, mas é a representação consumada do desejo sexual adolescente, descontrolado e ansioso - o que constitui um dos segredos do cinema de Fellini, esta amabilidade sob a deformidade.

Mas este sistema de relações e de forças tão próprias do cinema de Fellini - que são uma forma dele interpretar e, até, de alargar as regras da construção cinematográfica - mais do que ser verificado pela veemente dinâmica gráfica das suas imagens, assenta nelas de um modo, ao mesmo tempo singular e perfeitamente adequado - ou justo, se se quiser inscrever esta proposta numa ordem ética. Que se tratam de episódios dispersos, colados por um fil-rouge memorialista, já se sabe; mas que tais sequências dependem de uma construção de cada plano como uma iluminura, é o que se vê. E vê-se sobretudo em Amarcord na tão monumental como efémera - ambos são indissociáveis neste caso - cena do paquete Rex que todos se dispõem a ir ver, para isso dedicando um dia inteiro a fazerem-se ao mar acabando o navio por apenas passar por eles, indiferente e altivo, durante alguns escassíssimos segundos. Outro qualquer realizador, desentendendo-se com a ideia crucial desse plano, cairia na tentação de prolongar o momento do encontro, querendo aumentar a sua espectacularidade e a sua densidade, ao passo que Fellini age com a necessária pirotecnia: tudo se desenrola de modo a a que nada seja cabalmente apreendido, porque estamos no perfeito domínio das visões.

Como nos sonhos, ou seja, como nas recordações, ou seja, como no cinema.

José Navarro de Andrade

(Folhas da Cinemateca Portuguesa)

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