Um
filme de Federico Fellini
"Amarcord" é o termo que no
dialecto romano corresponde a "recordo-me". Eis um título que diz
tudo acerca do filme que abarca: a reminiscência e o regionalismo. Na verdade Amarcord é gerado e construído a partir
da tese cujo enunciado diz que a memória se prende a elementos tão concretos, e
mesmo comezinhos, que perde os critéridos considerados normais de
narratividade, tese cara e fundamental a todo o cinema de Fellini, que costuma
circular quase sempre em torno de recordações dos anos da sua vida anteriores à
fase adulta, um material que tem como essência mais a imaginação do que o
realismo, porque a memória é sempre difusa e nela a realidade confunde-se com o
desejo. Amarcord é, logo à partida,
um filme com a marca pessoal de Fellini porque pertence a essa família de obras
sobre reminiscências pessoais e intransmissíveis dos dias passados, tal como 8 1/2, Giulietta degli Spiriti e Roma.
Ver assim o cinema de Fellini,
enquanto uma explosão da fantasia motivada pelas efabulações próprias da
memória, anula duas especulações que geralmente se fazem em torno dele: que é
um cinema auto-biográfico, e que todos os filmes são uma constante repetição do
mesmo. Não é auto-biográfico porque Fellini, sabendo que a essência do cinema é
a verosimilhança e não o verismo e que demasiadas vezes a primeira, não o
parecendo, é uma forma de ludibriar o segundo, procede a uma notável
mistificação: nunca é para nós seguro, de todas estas memórias, quais são as
vividas e as inventadas, sendo muito mais provável que tudo não passe de uma
fantasia tão à margem dos factos quanto as suas encenações. Quanto à ideia de
uma tautologia felliniana a perpassar em todos os seus filmes, ela é
inequivocamente desmentida, se for prestada atenção ao facto de em cada uma das
suas obras haver uma significativa alteração de ponto de vista: Giulietta degli Spiriti era uma
reconstrução do mundo a partir do interior de uma personagem, Roma é uma reconstrução imaginário da
cidade, tal como Amarcord, por seu
lado, supera o espaço para se deter nas modalidades de convivialidade. Como o
ponto de vista é, de facto, o grande conteúdo de um filme temos assim que as
diferenças são mais acentuadas do que as semelhanças, apesar das aparências -
uma questão interessante entre obras tão coniventes com uma ideia de aparência.
Embora organizando-se de forma a
contornar os critérios clássicos que estabelecem a narrativa, Amarcord assenta numa ordem descritiva.
Composto por quadros, que são outros tantos flagrantes de pequenos pormenores
do quotidiano, não se entrevê uma relação hierárquica ou trágica entre eles:
todos estão disposto numa linha dramaticamente contínua cuja progressão,
desdenhando uma qualquer ideia de evolução, está centrada nos personagens. É no
fundo em torno dos acontecimentos recordados pelo jovem Titta - quer por tê-los
visto, quer por tê-los ouvido falar - que tudo se passa, não havendo nisto,
ainda, qualquer intenção de construir psicologicamente as figuras humanas, mas
antes de as sugerir como tipos. O curioso, afinal, em Amarcord é o modo como Fellini contorna o simplismo inerente a tal
modelação arquetípica dos seus personagens e consegue atribuir-lhes uma
densidade humana deveras notável. Acontece isto porque tais personagens, apesar
de se tomarem mais pelo lado do significado do que pelo do ser, ou seja, por
virem representar qualquer coisa em vez de serem eles mesmos, acabam por ser
convocados e trazidos à tela como evocadores daquilo que foi determinante para
Titta. Nesta perspectiva, a tabaqueira
não é um monstro de feira exposto de maneira impúdica para provocar um efeito
de chacota alarve, mas é a representação consumada do desejo sexual
adolescente, descontrolado e ansioso - o que constitui um dos segredos do
cinema de Fellini, esta amabilidade sob a deformidade.
Mas este sistema de relações e de
forças tão próprias do cinema de Fellini - que são uma forma dele interpretar
e, até, de alargar as regras da construção cinematográfica - mais do que ser
verificado pela veemente dinâmica gráfica das suas imagens, assenta nelas de um
modo, ao mesmo tempo singular e perfeitamente adequado - ou justo, se se quiser
inscrever esta proposta numa ordem ética. Que se tratam de episódios dispersos,
colados por um fil-rouge
memorialista, já se sabe; mas que tais sequências dependem de uma construção de
cada plano como uma iluminura, é o que se vê. E vê-se sobretudo em Amarcord na tão monumental como efémera
- ambos são indissociáveis neste caso - cena do paquete Rex que todos se
dispõem a ir ver, para isso dedicando um dia inteiro a fazerem-se ao mar acabando
o navio por apenas passar por eles, indiferente e altivo, durante alguns
escassíssimos segundos. Outro qualquer realizador, desentendendo-se com a ideia
crucial desse plano, cairia na tentação de prolongar o momento do encontro,
querendo aumentar a sua espectacularidade e a sua densidade, ao passo que
Fellini age com a necessária pirotecnia: tudo se desenrola de modo a a que nada
seja cabalmente apreendido, porque estamos no perfeito domínio das visões.
Como nos sonhos, ou seja, como nas
recordações, ou seja, como no cinema.
José Navarro de Andrade
(Folhas da Cinemateca Portuguesa)
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